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Paralisação da Polícia Militar no ES: repercussões jurídicas e alternativas constitucionais

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Analisam-se as repercussões jurídicas do movimento de paralisação da Polícia Militar no estado do Espírito Santo em fevereiro de 2017 e propõe alternativas de conciliação entre os direitos fundamentais em conflito, de forma a maximizar sua proteção.

 

1.Do contexto fático relacionado à paralisação e das justificativas apresentadas

As notícias sobre os fatos ocorridos no Estado do Espírito Santo a partir de 04 de fevereiro de 2017 em decorrência da paralisação das atividades dos policiais militares preocuparam e continuam a preocupar o Brasil[1] [2], com cenas estarrecedoras de crimes praticados na rua sem qualquer contenção policial: homicídios, latrocínios, roubos, incêncios e furtos. As prateleiras dos supermercados ficaram quase vazias, seja por causa dos saques[3], seja em razão da falta de reposição dos estoques em razão da insegurança para os transportes. Nos sete primeiros dias de greve, foram registradas 121 mortes violentas (homicídios e latrocínios), contra 122 homicídios em todo o mês de fevereiro de 2016[4]. Apenas em um dia, 06 de fevereiro, foram registrados aproximadamente 200 roubos de veículos e no dia anterior dois ônibus foram incendiados[5].

Em 04 de fevereiro de 2017, familiares dos policiais distribuíram-se nas entradas e saídas dos quartéis, de forma a supostamente impedirem a entrada e saída dos militares, com isso gerando a ausência da Polícia Militar nas ruas[6]. Ao serem questionados, já que a Constituição Federal proíbe-lhes a greve por questões de primazia da segurança pública (art. 42, § 1º, c/c o art. 142, § 3º, IV, ambos da CF/88), os policiais militares alegaram que o movimento é de seus familiares, e não dos policiais a rigor; assim, eles não estariam fazendo greve, apenas estariam sendo impedidos de trabalhar. E cruzaram os braços por vários dias seguidos, tendo em vista o suposto bloqueio das portas dos quarteis.

 

2. Da fragilidade das justificativas e do enquadramento jurídico das condutas praticadas

Contudo, uma análise mais profunda revela que tais justificativas não se sustentam:

  1. O movimento dos familiares está reivindicando benefícios para os policiais militares, ou seja, as pessoas que estão nas portas dos quarteis não reivindicam direitos próprios e individuais, mas direitos alheios e tipicamente coletivos em sentido estrito, ou seja, de toda a categoria dos policiais militares do ES. Se vierem a ser concedidos, tais benefícios constituirão direitos de toda a classe dos policiais e os seus familiares apenas serão beneficiados em razão do parentesco com o militar;
  2. Justamente por isso, apesar de os familiares dos policiais terem, como qualquer pessoa, o direito à liberdade de expressão individual prevista na Constituição, a defesa coletiva dos direitos dos policiais por seus familiares não é muito apropriada juridicamente, o que se confirma pela norma do art. 5º, XXI, da CF/88, a qual determina que as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente. Ou seja, tanto no caso de uma ação judicial para beneficiar toda a categoria de militares, quanto em reivindicações feitas por outros meios (fora do Poder Judiciário), a legitimidade pertence, em regra geral, às entidades associativas dos militares, e não a coletividades sem personalidade jurídica. Sem dúvida o ordenamento jurídico pode estabelecer e estabelece legitimidade judicial e extrajudicial coletiva para coletividades sem personalidade jurídica (como por exemplo o condomínio edilício), entidades privadas (como os Sindicatos), órgãos estatais (como o Ministério Público e a Defensoria Pública) e entidades públicas (como as Pessoas Jurídicas de Direito Público), mas isso não ocorre de forma expressa para coletividades despersonalizadas como o grupo dos familiares dos policiais. Assim, a única possibilidade de se embasar juridicamente a atuação coletiva dos familiares em prol dos policiais – apenas extrajudicialmente – seria por meio do direito fundamental da liberdade de expressão individual, de cunho genérico e amplo, não sendo possível embasar a legitimidade judicial coletiva do grupo de familiares sem uma lei específica estabelecendo-a, por exigências do Direito Processual Civil;
  3. Não é crível que batalhões inteiros, cada um com centenas de policiais militares, de fato sejam e se sintam impedidos de saírem dos quarteis para trabalhar por uma dezena ou por algumas dezenas de pessoas na porta de cada quartel, como tem sido noticiado na mídia nacional. Muito menos quando se sabe que os membros da Polícia Militar são treinados sob os princípios da hierarquia, disciplina e sincronicidade operacional de ação (basta lembrar da marcha da tropa), dentre outros, e que dispõem de vários meios para desocupar de forma pacífica e sem agressões físicas uma via pública ocupada ilegalmente. Para citar apenas três, existem: a) o diálogo, na forma de negociação, em que um negociador treinado para situações de “gerenciamento de crise”, conversa de forma humana e empática com o interlocutor oposto, a fim de convence-lo sobre os prós de ele cessar a atividade ilícita e os contras de ele continua-la, sempre lembrando-o de algum tipo de benefício para o caminho da licitude (ex.: a conduta cooperativa será levada em consideração pela Justiça posteriormente na apuração dos ilícitos praticados); b) falhando o diálogo, há a formação de soldados conhecida como “tartaruga”, que herdamos do exército da Roma antiga, que se desloca sincronicamente com escudos à frente, dos lados e acima, e é usada no Brasil para afastar grupos hostis que ocupam alguma via pública, sem todavia agredir tais grupos; c) há ainda o uso de recursos dissuasivos de efeitos moral, como gás de pimenta e gás lacrimogênio, os quais, apesar de causarem desconforto físico temporário, não geram lesões físicas, e poderiam ser usados em último caso, se alternativas anteriores não fossem eficazes e os familiares iniciassem agressões físicas contra os militares.

Ora, já que os Policiais Militares se recusaram a usar dos meios não agressivos de que dispunham para que pudessem desbloquear as portas dos quarteis (até porque não se defende aqui qualquer violência contra seus familiares), mesmo diante do caos que reinou no estado, ficou evidente que estavam se utilizando do falso argumento acima apontado na tentativa de reivindicarem os benefícios que entendem devidos e ao mesmo tempo se livrarem de eventuais punições disciplinares e criminais. 

Nesse sentido, confira-se a fala da antropóloga Jacqueline Muniz:

Nenhum familiar impede policial nenhum de sair. Se eles não estão saindo é porque estão aquartelados. Essa é uma manifestação simbólica que busca produzir dois efeitos: o primeiro é buscar a simpatia e a adesão da população, porque mulheres e crianças você não vai retirar à força, já que são civis desarmados. O segundo é que, como a greve dos PMs é ilegal, esta é uma maneira de contornar a ilegalidade disso e colocar os familiares e poder dizer para a Justiça: ‘olha, eu estou querendo ir trabalhar, mas estou sendo impedido. E não posso bater na minha própria mulher, espancar meu filho’.[7]

Assim, claro é que a paralisação da PMES constitui um ato conjunto entre policiais militares e seus familiares[8], de forma que os policiais, com tal conduta, praticaram o crime militar de motim[9], previsto no art. 149 do Código Penal Militar, com pena de reclusão de 4 a 8 anos e aumento de 1/3 para os cabeças, enquanto aqueles familiares que obstruíram de início os quarteis praticaram, a princípio, o crime militar de aliciação para motim, previsto no art. 154 do Código Penal Militar, com pena de reclusão de 2 a 4 anos, se eventualmente atraíram ou influenciaram os militares a praticarem o motim, ou cometeram o crime militar de motim (do art. 149, caput, do CPM) na condição de partícipes (figura prevista no art. 53, § 3º, do CPM), quando prestaram, com sua conduta de bloqueio dos quarteis, auxílio moral (encorajamento/instigação) aos militares que já tinham em mente a ideia do motim. [10]

Diz-se “a princípio” pois, apesar de o art. 124 da Constituição estabelecer que “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, e o art. 9º, incisos I e III, “a”, do CPM (que é a lei referida) deixar claro que o civil pode praticar crime militar, especialmente quando não houver crime semelhante na legislação comum (como no presente caso) ou o crime for cometido contra as instituições militares e contra a ordem administrativa militar (que também é o caso em análise), o art. 125, § 4º, da mesma Constituição dispõe que “compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei (...), ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil (...)”, isto é, não prevê a competência da Justiça Militar estadual para julgar os civis pelos crimes militares que cometerem.

A Jurisprudência então, chegou à conclusão de que, se somente a Justiça Militar pode julgar crimes militares (com a ressalva da competência do júri para os crimes militares dolosos contra a vida de civis), mas a Justiça Militar estadual não pode julgar os civis que pratiquem crimes militares, então nenhum outro Juízo poderá julgar os civis pelos crimes militares cometidos na esfera estadual. Como solução paliativa, para evitar que haja impunidade, interpretando o art. 9º, III, do CPM, chegou à conclusão de que a Justiça Comum Estadual poderá julgar os civis pelos ilícitos cometidos contra as Instituições Militares, sempre que as suas condutas possam ser enquadradas em algum crime comum, isto é, previsto no Código Penal ou em alguma outra lei penal aplicável aos cidadãos em geral.[11]

Mas não se diga, aqui, que as condutas praticadas pelos civis restaram atípicas na esfera jurídica do Direito Penal Militar. Elas são típicas (ou seja, se enquadram em todos os elementos dos tipos penais dos crimes militares em análise, recepcionados pela Constituição, nos termos dos referidos arts. 9º, I e III; 149 c/c 53, § 3º; 154, todos do CPM, c/c o art. 124 da CF/88), ilícitas (não estão protegidas por nenhuma excludente de ilicitude, como legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito) e culpáveis (foram praticadas por pessoas que não estavam em um estado tal de perigo certo e atual que justificasse o sacrifício de bens jurídicos de valor a princípio superior, como a segurança e a ordem públicas; foram praticadas por pessoas  maiores de idade, em pleno juízo de suas capacidades mentais, as quais não estavam sendo coagidas a fazerem aquilo nem estavam obedecendo ordens superiores), recaindo sobre tais pessoas o juízo de reprovação social que constitui a culpabilidade. E sendo tais condutas típicas, lícitas e culpáveis, configuram crimes militares.

O problema, como explicado, é que por uma lacuna da Constituição, a única Justiça que pode processar e punir tais crimes não pode punir civis. Trata-se de caso de impunibilidade, portanto, e não de atipicidade. Os crimes militares praticados continuam existindo na ordem jurídica violada. A punibilidade não constitui elemento do crime. Ela é consequência dele. Uma vez praticado o crime (fato típico, ilícito e culpável na lei penal), deve incidir sobre o seu autor a punibilidade estatal, afinal, todos são iguais perante a lei e responsáveis civil e criminalmente pelos seus atos, salvo nas exceções legais, não aplicáveis ao presente caso. E é justamente por isso que, como atualmente vigora a impunibilidade dos civis por crimes militares praticados na esfera estadual, criou-se a sua punibilidade, na Justiça Comum Estadual, por crimes comuns equivalentes.

Dessa forma, aqueles familiares que praticaram o crime militar de aliciação para motim ou revolta, previsto no art. 154 do CPM, devem responder pelo delito de incitação ao crime previsto no art. 286 do Código Penal. Aqueles, por sua vez, que com sua conduta apenas prestaram auxílio moral ao movimento da paralisação, uma vez que com o bloqueio visual das portas dos quarteis reforçaram e estimularam a ideia criminosa de motim já contida na mente dos militares, por criarem supostas justificativas para a paralisação sem punições, devem responder pelo crime de prevaricação (art. 319, do CP – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal), na modalidade de participação por instigação, afinal os militares também são funcionários públicos para a lei penal (vide o art. 327 do CP) e a conduta deles se enquadraria no art. 319 do CP caso não se enquadrasse no CPM. Os familiares não são funcionários públicos e por isso não são autores da prevaricação, que é crime próprio do servidor contra a administração pública, mas assim como quaisquer particular, podem contribuir para a prevaricação influenciando o servidor a prevaricar. Foi o que ocorreu. A especificidade do tipo penal militar de "descumprir ordem superior" ou de agir em detrimento da ordem ou disciplina militares encontra-se refletida, na legislação penal comum, nos verbos retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, contra disposição expressa de lei (já que a ordem e a disciplina militares estão previstas nas leis e regulamentos castrenses). Já os “interesses pessoais” descritos no tipo penal da prevaricação são justamente os interesses individuais dos militares que, apesar de serem coletivos, são usufruídos individualmente e foram colocados acima dos valores superiores e públicos da hierarquia e disciplina militares, e dos valores nacionais e estaduais da segurança e da ordem públicas. Logicamente que, como a conduta do partícipe é acessória, seria necessária a condenação dos militares pelo crime de motim para que os civis pudessem ser condenados pela participação em prevaricação.

Lembre-se, ainda, que o julgamento dos civis por participação em prevaricação é plenamente possível, uma vez que, como visto, a solução de que sejam julgados pela Justiça Comum foi dada pela própria Jurisprudência nacional. Assim, como os militares são julgados pelos crimes militares (como o motim) na Justiça Militar Estadual, a participação dos civis somente pode ser punida com base em um crime equivalente da legislação penal comum. Esse crime então seia uma base abstrata para se julgar a participação.  

Trata-se da solução jurídica possível para o caso, de forma que as condutas ilícitas do civis não resultem impunes: os civis praticam crimes militares, mas são apenas puníveis nos termos da lei penal comum.  

Por fim, mas não menos importante, considerando que, sempre que os policiais e seus familiares unem-se pacificamente e sem porte de armas e promovem a paralisação das forças de segurança pública, praticam o crime militar de motim em concurso de agentes com partícipes civis, sendo possível também o enquadramento, no crime de aliciamento para motim, daqueles civis e militares que atraírem os demais policiais para o motim, caso se encontrem tais pessoas em flagrante delito, nos termos do art. 244 do Código de Processo Penal Militar e do art. 302 do Código de Processo Penal Comum, quaisquer outros militares – estaduais ou federais – que tomem conhecimento dos crimes terão o dever de prenderem os seus autores, sob pena de responderem por suas omissões (art. 243 do CPPM). [12]

 

3. Da suposta colisão entre os direitos fundamentais envolvidos

Mas a questão não é tão simples assim. Não basta concluir que crimes militares estão sendo praticados. Isso pois há milhões de pessoas que tem direitos constitucionais e que estão sendo afetadas nesse processo social-político que se desdobra no Espírito Santo, e por outro lado, há direitos coletivos dos policiais militares que estão sendo desrespeitados.

A concepção contemporânea do Direito Constitucional postula que os direitos fundamentais (previstos para as pessoas na Constituição Federal), sempre que numa situação concreta estejam em conflito, devem ser ponderados, sopesados pelo operador jurídico, para que se alcance a solução que permita a máxima efetividade e a menor restrição possível dos direitos envolvidos, buscando-se ainda a concordância prática entre eles, ainda que alguns venham a ser restringidos em prol de outros, cujo peso valorativo seja mais forte no caso em análise[13].

Temos de um lado, o direito de liberdade de expressão (previsto no art. 5º, inciso IV, da CF/88) dos familiares dos policiais, pleiteando novos direitos para a categoria; alguns direitos sociais/coletivos de toda a categoria dos militares que estariam sendo desrespeitados cf. noticiado (falta de equipamentos de segurança em número suficiente; frota sucateada; jornada de trabalho excessiva por falta de regulamentação etc., o que ofende, além das normas legais e regulamentares, o princípio da dignidade humana previsto no art. 1º, inciso III, da CF/88); outros interesses sociais/coletivos da categoria que ainda não existem como direitos e por isso estão sendo reivindicados (pagamento de ticket alimentação, adicional noturno e adicionais de periculosidade e insalubridade, plano de saúde dentre outros, que dependem de inovação legislativa e aporte financeiro-orçamentário), sob a inspiração do princípio da dignidade humana.[14]

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Do outro lado, temos os direitos de praticamente toda a população do estado do Espírito Santo. Segundo estimativa de 2014 feita pelo IBGE a pedido do Tribunal do Contra da União (a última contagem nacional da população ocorreu em 2007), a população do ES naquela época seria de 3.885.049 habitantes[15]. Atualmente, pode-se estimar que a população esteja em torno de no mínimo 4 milhões de habitantes.

E que direitos seriam esses, de toda a população capixaba? Seriam os direitos que as forças de segurança pública visam a tutelar e que os policiais militares juraram proteger: os direitos à dignidade humana, à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança, à ordem pública e à paz social, previstos nos Artigos 1º, inciso III; 5º, caput; 144, caput, todos da CF/88.

No processo de ponderação entre direitos, há todavia que se identificar se os direitos estão sendo exercidos de forma lícita (constitucional e legal), pois somente assim haverá um conflito real entre eles. Afinal, a Lei Maior e as leis ordinárias fixam limites para o exercício dos direitos, e conforme a lição clássica de Kant, a liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro. Caso o direito esteja sendo exercido de forma abusiva ou ilícita, não haverá conflito real com o outro direito fundamental afetado, que prevalecerá se estiver sendo exercido licitamente.

Então se deve fazer a pergunta: podem algumas dezenas de pessoas civis na porta de cada um dos batalhões da Polícia Militar, a pretexto de exercerem direitos de liberdade de expressão, e os policiais militares, a pretexto de defenderem seus direitos sociais/coletivos desrespeitados e reivindicarem novos direitos, paralisarem juntos as atividades da Polícia Militar do Espírito Santo, em detrimento dos direitos à vida, à propriedade, à liberdade (pois os cidadãos ficaram “presos” em suas casas diante da insegurança nas ruas), à segurança, à ordem pública e à paz social de todos os demais habitantes do estado do Espírito Santo, uma vez que tais direitos restaram completamente desprotegidos?

A resposta é triplamente negativa, pois: a) a greve (sinônimo de paralisação voluntária em busca de melhores condições de trabalho) dos policiais militares é vedada expressamente na Constituição; b) na prática os policiais e seus familiares ao realizarem tais condutas praticam crimes, e como já decidiu em várias vezes o Supremo Tribunal Federal[16], os direitos fundamentais não podem ser usados como salvaguarda para prática de ilícitos; c) o art. 144, caput, da Constituição, deixa expresso que a segurança pública é dever do Estado, “direito e responsabilidade de todos”, ou seja, todos os cidadãos do País são responsáveis pela manutenção da segurança pública, inclusive os familiares dos policiais.

A responsabilidade do cidadão, aqui, não se confunde com os deveres das Polícias. Isso pois não se pode exigir que os cidadãos adotem as condutas de prevenir e reprimir a criminalidade, uma vez que isso cabe às forças de segurança estatais previstas no art. 144 da CF/88. Por outro lado, o dispositivo que prevê a responsabilidade dos cidadãos para com a segurança pública não pode ser um preceito vazio de obrigatoriedade jurídica, nos termos do princípio da força normativa da Constituição, defendido pelo alemão Konrad Hesse[17] e adotado pelo Direito Constitucional contemporâneo brasileiro[18]. De acordo com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, correlato ao da força normativa, deve-se buscar uma interpretação adequada para o dispositivo em questão, a qual deve ser, no mínimo, a de que todos os cidadãos brasileiros não policiais, sem que corram risco pessoal, tem o dever positivo de ajudarem (ex.: prestando informações quando solicitados, cooperando com fiscalizações e blitzes etc.) bem como o dever negativo de não atrapalharem os serviços de segurança pública, estando impedidos diretamente pela Constituição de adotarem qualquer conduta danosa a esta atividade fundamental para toda a sociedade.

Posto isto, uma forma de resolver o conflito entre os direitos fundamentais envolvidos, que se demonstrou ser apenas aparente, seria a seguinte:

Pelos crimes militares em andamento, os policiais e seus familiares que forem identificados deverão ser presos em flagrante ou, caso cessada a flagrância, indiciados e processados por motim perante a Justiça Militar (os primeiros) e por incitação ao crime e/ou participação em prevaricação perante a Justiça Comum (os últimos), permitindo a lei processual penal comum, aplicável por analogia à luz do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF/88), que durante o andamento do processo, não só os familiares como também os policiais fiquem em liberdade provisória (prevista no art. 320 do CPP), mas sujeitos a medidas cautelares alternativas à prisão (art. 319, do CPP) e advertidos das consequências da prática de novos crimes no futuro (como a decretação da prisão preventiva pelo risco reiterado à ordem pública)[19] [20]. As forças de segurança pública devem normalizar o seu funcionamento o mais rápido possível, para restaurarem a ordem pública e a paz social perdidas.

Os familiares dos policiais podem exercer os seus direitos de liberdade de expressão em qualquer lugar, desde que não impeçam a livre circulação e o exercício das atividades de Segurança Pública. Dessa forma, preserva-se tanto o direito fundamental de liberdade de expressão dos manifestantes quanto os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade e à segurança dos cidadãos.

Já os policiais militares podem cobrar os seus direitos coletivos/sociais desrespeitados judicialmente, por meio de suas associações, sem paralisar suas atividades. Dessa forma, preservam-se seus direitos sociais/coletivos que efetivamente existem em lei, sem prejudicar a segurança pública e os demais direitos fundamentais da população do estado do Espírito Santo.

Para os novos direitos, que sem dúvida têm merecimento, mas ainda dependem de lei, os policiais militares dependerão de negociações ulteriores com o Governo estadual, mas sempre através de suas entidades associativas, que efetivamente representam a categoria. Para os novos direitos que exigem aporte financeiro, todavia, será necessário também haver aumento das receitas de arrecadação, sob pena de comprometimento do equilíbrio fiscal do estado. Em um contexto de recessão econômica, é algo que se deve esperar com muito trabalho policial, governamental e comunitário e confiança nos seus frutos. Pode-se dizer, de certa forma, que o lema da bandeira do estado do Espirito Santo (“trabalha e confia”) envolve todos os atores sociais, e serve de exemplo para todo o Brasil.

Explica-se: em havendo apoio político e estrutural do governo (pois as políticas públicas de segurança pública, educação/cultura e esportes/saúde são complementares e precisam ter prioridade na agenda do governo), atividade preventiva de integração das polícias militar e civil com as comunidades locaispoliciamento militar ostensivo e investigação criminal pela polícia civilpode-se reduzir efetivamente a criminalidade, restaurando-se a ordem pública e a paz social, permitindo-se que a população se desenvolva com dignidade e cresça educada, culta e saudável, com efetivas oportunidades de trabalho, propiciando-se assim as condições para o crescimento da economia, o que então possibilitará o aumento da receita estadual de forma a viabilizar a concessão legal dos benefícios reivindicados legitimamente pelos militares, bem como a melhoria de outros serviços estatais.   

 

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Sobre o autor
Eduardo Pereira Nogueira da Gama

Delegado de Polícia Civil do DF, Professor de Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Processual Penal, Mestre em Direito Público (UERJ-2003), Especialista em Gestão de Polícia Civil (UCB-2010), Bacharel em Direito (UFES-1997)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAMA, Eduardo Pereira Nogueira. Paralisação da Polícia Militar no ES: repercussões jurídicas e alternativas constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4977, 15 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55801. Acesso em: 24 nov. 2024.

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