Mais um dia internacional da mulher foi comemorado, e com ele afloraram discussões jurídicas relacionadas à igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Um destes debates diz respeito ao prazo internupcial constante do art. 1605º do Código Civil português, aprovado no contexto do Estado Novo e concebido por uma sociedade patriarcal, que embora já engatinhasse nas questões de igualdade de gêneros, tinha ainda na mulher o espelho-arquétipo da “fada do lar”.
Sobreveio a Constituição de 1976, que cuidou timidamente de direitos da mulher trabalhadora, mas somente com a quarta revisão constitucional de 1997 se fez inserir no art. 9º da Lei Maior a promoção da igualdade entre homens e mulheres como tarefa fundamental do Estado (alínea h).
Mas o art. 1.605º, ainda que singelamente alterado, permanecia e permanece rijo como rocha obsoleta no contexto do direito de família, impondo à mulher divorciada o ônus de aguardar por 300 dias para poder casar-se novamente, ao passo que para o homem o prazo se reduz a apenas 180 dias.
Noutras palavras, na hipótese de novo relacionamento após a ruptura da comunhão, a vida pessoal e sentimental do homem divorciado pode ser resolvida com certa brevidade.
Não a da mulher.
Justificativas não faltam para defender tal discriminação aparentemente dissonante do mandamento constitucional da igualdade, envernizada com uma suposta luz de proteção não solicitada. Mas como numa vagarosa procissão de paradigmas mendicantes, as mesmas justificativas vieram a se tornar cada vez mais despidas de razão.
Como aponta Abílio Neto (CC Anotado, 1995), o prazo internupcial foi erigido como uma espécie de luto oficial ou legal pelo fim do relacionamento. Um “tempus lugendi” que se justifica em relação a ambos os cônjuges por razões de ordem moral e decoro. A rigor: ressalvadas questões burocráticas e documentais, o Estado admite se imiscuir na vida privada do cidadão porque não considera “correcto” divorciar-se e casar-se novamente em tão curto espaço de tempo.
Mas a justificativa para um prazo alargado para a mulher e breve para o homem, embora tecnicamente rigorosa, não deixa de causar desconforto a sectores da sociedade.
Nos dizeres da doutrina, “à mulher, há outra razão, que é a de evitar a chamada turbatio sanguinis, isto é, evitar dúvidas relativamente à paternidade de um filho nascido após a celebração do segundo casamento” (op. cit.), muito embora no atual contexto estejam à disposição uma série de mecanismos médico-legais que permitem a aferição rigorosa da paternidade.
Tanto assim que o mesmo dispositivo prevê que a mulher poderá se valer do mesmo prazo do homem caso obtenha declaração judicial de que não está grávida. Um autêntico constrangimento.
Mas a lei está prestes a evoluir. Ainda que com um “delay histórico”, o prazo internupcial do art. 1.605º, nº 1, do Código Civil, é agora colocado em discussão.
Com efeito, ingressou na Assembleia da República de Portugal, em 07/03/2017, o Projeto de Lei nº 436/XIII, que visa dar fim à diferenciação.
No texto da proposta é trazida à memória a fundamentação à época utilizada por Antunes Varela e Pires de Lima, juristas que influenciaram a redação do Código Civil e que assim diziam:
“Por um lado, tanto em relação à mulher, como relativamente ao marido, sobretudo no caso de viuvez, há uma razão de decoro social que exige, como um mínimo de respeito pela memória do outro cônjuge e pelas convenções sociais, o estabelecimento de uma dilação entre a dissolução do casamento anterior e a celebração de novo matrimónio. É, no caso de viuvez, uma espécie de luto oficial imposto por lei (…) e, no caso de divórcio, uma atitude de conveniência social ou moral, igualmente exigida por lei”.
Diziam mais que:
“(...) entre os cento e oitenta e os trezentos dias posteriores ao acto da concepção, o filho nascido após cento e oitenta dias posteriores à celebração do segundo casamento, mas dentro ainda dos trezentos dias subsequentes à dissolução do primeiro, tanto poderia ter sido gerado pelo primeiro, como pelo segundo marido, de acordo com os critérios legais”.
Estampado o caráter masculinizado da construção da lei, e em que pese já se tenha iniciado a discussão com vistas a extinguir totalmente a figura do prazo antenupcial, neste momento, pretende-se com o Projeto de Lei nº 436/XIII suavizar a discriminação que incide sobre as mulheres, para igualar os prazos antenupciais masculino e feminino.
Em sendo aprovado, o novo artigo 1.605.º do Código Civil passará a adotar a seguinte redação:
Artigo 1605.º (…)
1 - O impedimento do prazo internupcial obsta ao casamento daquele cujo matrimónio anterior foi dissolvido, declarado nulo ou anulado, enquanto não decorrerem sobre a dissolução, declaração de nulidade ou anulação, cento e oitenta dias.
Mas o debate não se encerra com a questão da discriminação, cabendo ainda a reflexão sobre duas questões:
(1) Se a Constituição já consagra a igualdade entre homens e mulheres, não estaria o dispositivo obsoleto desde, pelo menos, a quarta revisão constitucional?
(2) Uma vez que a Lei nº 9/2010 de 31 de maio alterou o Código Civil para permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mesmo com a possibilidade de adoção (abertura ocorrida em 29 de fevereiro de 2016, pela Lei nº 2/2016), e considerando ainda que o art. 6º da Lei n.º 32/2006 de 26 de julho, permite às mulheres casadas entre si o recurso à procriação medicamente assistida, como conformar a justificativa do “turbatio sanguinis” em se tratando de divórcio entre duas mulheres civilmente casadas?
A pouca discussão sobre o tema demonstra que é dia de desejar ao mundo um feliz dia internacional da mulher, mas também de melhor refletir sobre a necessidade de haver uma legislação arquitetada de forma igualitária, tal como manda a Constituição.
Por homens e por mulheres.