A união homoafetiva e a perspectiva de alteração de expressões obsoletas

20/03/2017 às 02:49
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Retrato crítico de expressões presentes no sistema normativo e sua necessidade de alteração de acordo com novos anseios sociais.

Determinadas expressões legais tem sobre si a influência das circunstâncias em que foram concebidas, como o contexto histórico ou político, por exemplo. Desse ponto de vista é que por décadas se ignorou a necessidade de um olhar mais atento para os anseios gays, como quando de sua união estável regularizada, por exemplo, que, na porcentagem majoritária dos casos, já acontecia informalmente mesmo antes do advento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 de 2011 que, junto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconhecem as uniões estáveis homoafetivas, garantindo, por analogia, todos os direitos conferidos às uniões estáveis entre homem e mulher.

Aqueles que enxergam de fora a temática talvez não imaginem a relevância que uma simples palavra alterada na lei possa causar. Pode ser o início de um novo tempo, de maior compreensão e aceitação, pode sinalizar para a mudança gradual de um sistema legal que, em diversos pontos, não só no que diz respeito à união homoafetiva, carece de uma repaginada, mesmo do ponto de vista gramatical.

O fato é que, com a aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça, o projeto de autoria da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) e relatado pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR), pode alterar pontos do Código Civil, que atualmente classifica como entidade familiar "a união estável entre o homem e a mulher".

Pelo projeto, essa definição fica alterada para "união estável entre duas pessoas". Trechos da lei que se referem a "marido e mulher" são alterados para "duas pessoas" ou "cônjuges".

O projeto foi aprovado em caráter terminativo (sem necessidade de ir ao plenário, a não ser que algum senador recorra), mas ainda passará por um turno suplementar de votação na própria comissão. – provavelmente na sessão seguinte da CCJ, na próxima semana (este artigo foi editado originalmente em 12/03) antes de ser encaminhado para a Câmara dos Deputados.

Em tempos de grande intolerância e preconceito, uma alteração desta importância tem a função de preconizar um futuro em que os cidadãos possam se ver mais aliviados para tomar suas iniciativas pessoais, para assumir e ter sua decisão chancelada pelo Estado. É interessante olhar para esta pauta da alteração do texto de lei e reforçar a ideia de como, não só no âmbito legislativo, mas no cotidiano, a forma de expressão, por simples que pareça, pode mudar o sentido, o significado e, mais drasticamente, a hermenêutica do que se pretenda comunicar. Determinadas expressões que foram cunhadas em épocas em que não pareciam discriminatórias, em tempos contemporâneos, são confrontadas com a sensibilidade e seriedade de uma sociedade pós moderna que não acolhe mais certas expressões e nomenclaturas, especialmente com uma Suprema Corte cada vez mais neoliberal que, a despeito da ADPF 54 que admitiu o aborto em casos de feto anencéfalo e que promoveu a analogia supra citada, se mostra cada vez mais moderna, compreensiva. Os tribunais e instituições de elevado escalão nada mais fazem do que refletir a necessidade de uma nova era, a necessidade de não permitir que pairem dúvidas sobre qualquer expressão e que a intenção do legislador fique cada vez mais cristalina conforme os entendimentos vão sendo firmados e os textos normativos vão sendo refinados com um teor mais sensato.

Já ficou visível, por exemplo, no debate que se principiou nas vésperas do carnaval de 2017, em que se discutia acerca de expressões de marchinhas clássicas, que, para os tempos de hoje, mesmo que cantadas com a mesma inocência de 20 ou 30 anos atrás já não são mais pertinentes dada a conjuntura social reinante. Fica evidente que ridicularizar mulheres, negros ou outras minorias, já não é mais um modo de entretenimento do qual se possa desfrutar confortavelmente. Os tempos mudam e as expressões evoluem também de acordo com as necessidades.

Por isso, mais do que nunca, é imprescindível a alteração do texto de lei em questão e, se observado o ritmo dos requerimentos sociais e das pressões populares, está longe de ser uma exclusividade dos gays. Uma expressão tão conhecida na língua portuguesa quanto na inglesa parece estar com os dias contados também. Quando se fala em humanidade é comum dizer "o homem explorou a lua", todavia, no que depender das feministas, pelo menos na América, a mudança já está em pleno vapor. Em inglês há a inversão de history (história) que poderia ser interpretado como his (dele), isto é, história dele (s) para herstory, ou seja, her, dela (s), o oposto, para confrontar propositalmente os homens. Seria adequado também, seguindo a lógica, que a língua vernácula de cada país, conforme a sua gramática própria, permitisse que ateus escrevessem Deus com d minúsculo, afinal, exatamente como se força um gay a ler "homem e mulher" a entidade na qual não se crê é empurrada goela abaixo sem haver a chance de quem não concorda poder contestar já que a gramática o condena. São reflexões sobre pontos de aparência simples mas que fazem diferença. Assim como a pressão feminista desempenha seu papel para que as mulheres tenham seu reconhecimento merecido em vários aspectos, do ponto de vista do que a nova lei promete, a turma dos peregrinos do êxodo rumo ao lado de fora do armário pode se alegrar pela conquista de mais uma novidade.

Uma vez que este dispositivo seja definitivamente alterado, aprovado em todas as instâncias necessárias, ficará selada mais uma etapa no avanço que diz respeito à literatura legal, dada as consequências que gerará, será um avanço mais significativo, até, que o da expressão legal que considerava adultério crime e, seria interessante, sobretudo, que abrisse o precedente para que mais palavras fossem substituídas ou extirpadas, em diversos âmbitos, como o famigerado "Deus seja louvado" das notas, que só não é mais antiquado que o extinto "mulher honesta".

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Sobre o autor
Saulo Oliveira Silva

Acadêmico de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Contato: (41) 98736-1265.

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