No último dia 2 de maio, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu por conceder, por três votos a dois, ordem de Habeas Corpus em favor do ex-ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, condenado em primeira instância e cujo recurso está pendente de julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Com a decisão, a prisão preventiva de Dirceu fica revogada, aguardando-se a decisão de segunda instância em liberdade. Não é objetivo deste texto realizar abordagens de cunho político, mas uma análise da decisão a partir do voto do relator, ministro Edson Fachin, e do voto que abriu a divergência, do ministro Dias Toffoli.
A decisão do juízo de primeira instância, de 27 de julho de 2015, está calcada, na visão do magistrado, na existência de robusta prova de materialidade de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, e de autoria em relação a José Dirceu. Tais provas demonstrariam, segundo o juízo de primeira instância, um “quadro de corrupção sistêmica, nos quais ajustes fraudulentos para obtenção de contratos públicos e o pagamento de propinas a agentes públicos, bem como o recebimento delas por estes, passaram a ser pagas como rotina e encaradas pelos participantes como a regra do jogo, algo natural e não anormal. Nem mesmo a notoriedade das investigações da Operação Lava Jato, com prisões cautelares de dirigentes da Petrobras e das empreiteiras envolvidas, parece ter sido suficiente para frear o impulso criminoso [...]”. Assevera, ainda, que “as provas, em cognição sumária, são no sentido de que estava envolvido no esquema criminoso que vitimou a Petrobras enquanto já respondia, como acusado, a Ação Penal 470, e que persistiu recebendo vantagem indevida durante toda a tramitação da ação penal, inclusive durante o julgamento em Plenário, o que caracteriza, em princípio, acentuada conduta de desprezo não só à lei e à coisa pública, mas igualmente à Justiça criminal e a Suprema Corte.” Ao final, a decisão do juízo de primeira instância, impugnada perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, prolatou sentença condenatória fixando a pena de 23 anos e 3 meses de reclusão e, ao final, impondo a pena de 20 anos e dez meses de reclusão pela prática dos delitos de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e pertinência à organização criminosa, mantendo-se a prisão preventiva.
Num primeiro momento, o ministro relator invoca a impossibilidade de valoração e de reexame de fatos e provas, já que o Juiz de primeira instância formou a sua convicção mediante uma análise exauriente do conteúdo processual. Portanto, não caberia ao Supremo Tribunal Federal, mas ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a revisão da decisão prolatada.
Divergindo do relator, o ministro Dias Toffoli argumenta que a sentença condenatória manteve o fundamento da garantia da ordem pública, consubstanciada no risco de reiteração delitiva e na gravidade da conduta, anteriormente exposta. Deve ficar clara a distinção entre o caráter cautelar da privação de liberdade nessa fase processual. Qualquer alusão a reexame fático-probatório depõe contra a presunção de inocência, pois admite verdadeira execução da pena imposta em primeira instância. É inviável justificar a prisão cautelar utilizando como fundamento a formação da convicção do magistrado por meio de cognição exauriente. A profundidade no exame da matéria deve se limitar ao mérito da causa e não para demonstrar a necessidade de instrumentos processuais de natureza cautelar. A restrição da liberdade deve ser a última medida cautelar a ser adotada pelo magistrado como garantia da ação estatal no processo penal. Aliás, o Código de Processo Penal, no seu artigo 319, elenca medidas cautelares diversas da prisão.
O relator confirma a necessidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública baseada no fundado receio da prática de outros delitos. Contudo, o voto não destaca elementos fáticos que pudessem ensejar a necessidade da custódia. Qual seria o grau de influência do ex-ministro da reiteração de práticas delitivas nas circunstâncias atuais? Certamente a resposta a este questionamento deve ser apresentada. As práticas atribuídas ao ex-ministro são de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Contudo, a sua liderança está completamente mitigada dada as circunstâncias políticas atuais que demonstram a incapacidade de José Dirceu exercer influência no aparelho estatal. Neste rumo, pendente decisão condenatória em segunda instância, não pode perdurar a prisão cautelar. Prudente ao caso seria a adoção de medida cautelar baseada no artigo 319 do Código de Processo Penal, como, por exemplo, a monitoração eletrônica.
A população brasileira mostra-se descrente com a política e com os agentes públicos. Espera que os políticos tenham comportamento probo e transparente. Assim, clama por uma ação enérgica do Estado e aplicação de punições rígidas e exemplares. Todavia, o processo deve observar disposições elementares de índole constitucional que viabilizem o amplo direito de defesa, o exercício do contraditório judicial e a fiel observância do devido processo legal. Todos os cidadãos, sem exceção, devem ter garantidos esses direitos que são inerentes à dignidade do ser humano. No caso envolvendo o ex-ministro José Dirceu, o desejo da maioria das pessoas em vê-lo preso, vai de encontro àquilo que se pode chamar de processo penal democrático, característico em um Estado Democrático de Direito. A manutenção da privação de liberdade constituiria uma verdadeira antecipação de tutela penal, algo vedado pela Constituição da República (artigo 5º, inciso LVII), e que atinge cerca de 40% da população carcerária nacional, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).
Não se busca fomentar qualquer discussão política sobre a temática – como salientado no início - mas alertar que toda e qualquer persecução criminal deve estar balizada pelas garantias constitucionais. Infelizmente esta é uma realidade que está longe de ser alcançada, dado o discurso punitivista que está presente na nossa sociedade.