O opúsculo de Hugh J. Flemming foi recentemente publicado com tradução para o português pela Editora Monergismo. Essa pequena-grande obra vem colmatar uma lacuna na literatura bioética brasileira quanto ao tema das origens remotas da arte e prática médica, sob o enfoque cultural e, no seio deste, religioso.
Logo no prefácio, Hélio Angotti Neto, chama a atenção para a importância da recuperação da tradição médica (e por que não, de outras profissões e atividades), tendo como marco a sacralidade da vida humana, isso porque o esquecimento induzido ou incauto dessas tradições milenares tem conduzido, nos últimos tempos, a uma “queda do ser humano do estado de grande dignidade ao de bestialidade”. [1]
Flemming apresenta, logo na introdução, o mal e o grande perigo do gradual abandono pela profissão médica da “tradição hipocrática” e do “fundamento ético judaico – cristão”. [2] Esse abandono tem deixado tristes traços históricos como, por exemplo, ocorreu com a aceitação da eutanásia e do aborto na medicina norte – americana, numa visão meramente utilitarista do homem, culminando no genocídio nazista alemão. [3] O secularismo humanista jamais cumpriu suas promessas de redenção da liberdade e da ativação do potencial da humanidade. Transformou-se sim, invariavelmente, em “barbárie e superstição”.
O item número 1 da obra trata do “Período Bíblico”, chamando a atenção para aquilo que fez surgir o conceito de “pessoa”, centrado na especial “dignidade humana”, algo desconhecido no mundo pagão. Essa concepção surge com a doutrina cristã da “imago Dei”. [4] Ao reverso do que se apregoa, o reconhecimento do homem, qualquer ser humano, pela só condição de sua humanidade, como pessoa, sujeito de direitos inalienáveis e de dignidade, não surge com o Iluminismo no século XVIII. Na verdade, trata-se de uma apropriação e adaptação secularista de uma doutrina originalmente cristã. [5]
Como destaca o autor, há atualmente uma tendência de ataque veemente à doutrina da “imago Dei”, taxando-a, como faz Peter Singer, de mera “bobagem religiosa”. [6] E abrindo mão de toda essa “bobagem” (sic), chega-se à “brilhante” conclusão de que o homem é um animal dentre outros, sendo sua especial dignidade, constante, inclusive, em tratados sobre os chamados “Direitos Humanos”, a manifestação de um “preconceito odioso”, semelhante ao racismo, ao qual se dá o nome de “especismo”. Ou seja, o simples fato de pertencer à espécie humana não nos deve conceder qualquer privilégio em uma avaliação ética. [7]
Já a tradição cristã, que inaugurou na antiguidade a recepção dos doentes, a criação dos hospitais, a abnegação em prol do semelhante, sem a preocupação sequer de preservar a própria saúde, é a responsável pela conformação do amor ágape (desinteressado, sem relação de reciprocidade e até mesmo em prejuízo próprio). A divindade funde a cura e a salvação (o autor ilustra isso com as curas de Jesus Cristo, enquanto símbolo de amor e salvação). Mas, tudo isso, partindo de um reconhecimento do ser humano como detentor de uma dignidade ou status especial. A arte médica surge então nesse contexto e se desnatura no materialismo biologista ou até mesmo zoologista. [8]
O item 2 trata do “Período da Igreja Primitiva”, que vai do século I até Santo Agostinho (100 – 430 d. C.). Novamente o marco do cristianismo e do amor ágape vem desfazer uma noção de “filantropia” que somente tinha por base a reciprocidade, ou seja, cuidar ou fazer o bem, esperando algo em troca, fosse a fama, a retribuição nos cuidados, riquezas etc. Nas palavras do autor:
“Ágape é o espírito que diz: ‘Não importa o que alguém faça comigo, jamais farei mal a essa pessoa; jamais me lançarei em busca de vingança; buscarei só o seu maior bem – estar”. [9]
Essa conduta beneficente de acolhimento do próximo e cuidado, a despeito do lucro de qualquer espécie e mesmo arrostando o perigo e o prejuízo, é a base ética da arte médica em seus primórdios. Essa base deveria ser conservada, mas vem sendo devastada pelo materialismo, pela ganância, pela vaidade, pelo egoísmo, pelo relativismo, pelo utilitarismo, pelo pragmatismo etc.
O autor apresenta exemplo histórico da praga que, em meados do século III arrasou o Império Romano. A atuação dos cristãos primitivos foi o acolhimento do doentes, morrendo muitos cristãos contaminados pela praga, enquanto as próprias famílias, sob a perspectiva de uma consciência ética diversa, simplesmente abandonavam os doentes. [10] Será que o atual secularismo com suas defesas de eutanásia, aborto, seletividade, infanticídio e eugenia não é um retrocesso ao pensamento pagão selvagem? Um retrocesso que nos é apresentado como se fosse um avanço, um progresso histórico!?
O item 3 trata da “Idade Média”, chamando a atenção para o preconceito ignorante de grande parte das pessoas, inclusive supostos “historiadores”, a respeito dos fatos reais que iluminam a impropriamente chamada “Idade das Trevas”. Muito bem afirma o autor:
“O termo ‘Idade das Trevas’ é um conceito vago que qualquer um pode definir de acordo com os próprios preconceitos”. [11] E mais adiante, citando George Sarton, apresenta o esclarecimento quanto ao fato de que a “Idade das Trevas” nunca “foi tão tenebrosa quanto é nossa ignorância acerca dela”. [12]
Nessa época, novamente destaca o autor que é com o surgimento do cristianismo que emerge a “compaixão para com os enfermos”, princípio que ao menos deveria ser basilar para o médico de todos os tempos. Esse princípio que hoje se chama de “solidariedade”, “humanidade” ou qualquer outro nome, não era conhecido na “ética médica greco – romana”. Por isso a Igreja surge como a criadora dos primeiros hospitais e outras instituições caritativas, dando abrigo e cuidado até mesmo aos “leprosos” que eram até então simplesmente abandonados à própria sorte, desamparados, sem esperança e "proscritos da sociedade”. [13]
O modelo de “imitação de Cristo” é o paradigma para os médicos. Flemming chama a atenção para as menções de Santo Agostinho em seus sermões acerca do “Christus Medicus”, enquanto “o curador de todas as doenças espirituais da humanidade”. De forma similar, deveria o médico humano, adotar o espírito do amor ágape, praticando uma compaixão semelhante à de Cristo, quanto aos seus cuidados para com os enfermos e, em especial, para com os mais pobres e carentes. Nessa ética não há espaço para que prevaleça o intento de “recompensa ou medo de contágio”. [14]
É com base nessa compaixão que se pode observar em Santo Agostinho uma orientação bioética no sentido de preservar, amar e cuidar de todas as crianças, sejam elas sadias ou doentes, inteligentes ou mentalmente debilitadas, oriundas de que espécie de relação for. Aquilo que hoje se acena como grande conquista iluminista e/ou hodierna, habitando, por exemplo, nossa Constituição e nosso Código Civil, já era anunciado por Santo Agostinho, ao reprovar qualquer espécie de preconceito ou repúdio a uma criança nascida na prostituição, no adultério ou em qualquer circunstância. Dizia o filósofo e teólogo que nada disso a tornava “menos criatura de Deus que qualquer outra”. [15]
A opção supostamente “bioética” (sic) de alguns autores e ativistas da atualidade, pelo simples descarte da pessoa humana e sua redução a objeto, não se desenvolveria nem um pouco no solo da tradição. Conforme demonstra Flemming:
“Quase desde o princípio, os cristãos primitivos, e mais tarde a igreja no início da Idade Média, tornaram conhecido o fato de haver uma alternativa ao infanticídio e aborto dos nascituros. A alternativa, no caso, consistia no fato de os cristãos levarem as crianças indesejadas para suas casas. Os registros monásticos indicam que as crianças deficientes e indesejadas eram deixadas muitas vezes aos cuidados da igreja”. [16]
Novamente se percebe que o suposto “grito de liberdade revolucionário” que ecoa com conceitos como “vida digna e qualidade de vida”, propostas de infanticídio e aborto, de eutanásia, de eugenia disfarçada em benevolência, nada mais são do que um repúdio a uma tradição benfazeja e um retrocesso histórico em relação ao tratamento dado à dignidade dos seres humanos.
Ainda sobre o medievo, Flemming desmente as costumeiras alegações superficiais a respeito da oposição entre a Igreja e o exercício da medicina. Desmente com dados históricos de fontes primárias (ou seja, pesquisas em documentos originais da época e não falatórios ou boatos), a alegação de que o estudo da anatomia seria proscrito sob a máxima eclesiástica de que “ecclesia abhorret a sanguine” (“à igreja aborrece o derramamento de sangue”).
Tendo por referência a pesquisa séria de C. H. Talbot, expõe o fato de que a máxima acima transcrita nunca passou de um “fantasma literário”, ou seja, uma afirmação cuja fonte não é jamais encontrada. A pesquisa em todos os documentos da Igreja, inclusive naqueles que são citados por supostos “historiadores” como origem de tal assertiva, revela que não se encontra sequer um resquício dessa fala eclesiástica em local ou documento algum. [17] Portanto, no mínimo um equívoco, na realidade, uma clara e evidente fraude para chamar a atenção de um público ávido por escândalos. Nesse passo só é possível lamentar que supostos historiadores se pareçam mais com repórteres de tabloides à cata de factoides para vender.
No item 4, ocupa-se Flemming da “Era Moderna”, voltando ao tema do mito da Igreja como obstáculo para o estudo da anatomia, sendo o mais alardeado o caso do estudioso Vesalius. No entanto, com sustento nos estudos de Mary N. Alston, afirma:
‘O fato é que no final da Idade Média e início do Período Moderno, as dissecações receberam pouca interferência da Igreja; em alguns casos, as autoridades religiosas até permitiram Vesalius a usar edifícios eclesiásticos como cenários anatômicos”. [18]
Flemming ilustra, ainda, a questão em debate com o caso do uso do clorofórmio em cirurgias, o que realmente sofreu alguns obstáculos com argumentos de índole teológica. No entanto, mesmo autores como Andrew Dickison White, ardoroso crítico da Igreja, admitem que a questão teve desfecho favorável ao pioneirismo de James Young Simpson (precursor do emprego do clorofórmio), devido basicamente à sua defesa por um teólogo presbiteriano escocês de nome Thomas Chalmers. [19]
Acrescente-se a esclarecedora assertiva de Koestler, desmistificando estórias repetidas qual papagaios por muitas pessoas:
“A razão por que Copérnico adiou a publicação de sua teoria até o fim de sua vida não foi medo da Igreja católica (que o protegeu e encorajou), mas medo do ridículo perante seus colegas astrônomos. O conflito de Galileu com a Igreja poderia ter sido provavelmente evitado se ele tivesse sido dotado de menos paixão e mais diplomacia; mas, muito antes do início do conflito, ele já gozava de hostilidade implacável dos (cientistas) aristotélicos ortodoxos, que ocupavam posições – chaves nas universidades italianas”. [20]
Na esteira de Kuhn, que apontava a dureza dos “modelos” ou “paradigmas” da assim denominada “ciência normal”, ou seja, aquela vigente como a “communis opinio doctorum” em dada época, é possível vislumbrar o poder coercivo do “argumento de autoridade” que transforma tais “paradigmas” em “paradogmas”. [21]
A verdade é que:
“a ciência, por participar do destino de todas e quaisquer instituições sociais, sofre também das mesmas enfermidades, o que é muito mau, mas contém também os mesmos impulsos vitais, o que é muito bom. (...). Porque descobrimos uma ciência, em virtude de seu ‘nascimento em pecado’, viciada pelas mesmas obsessões inquisitoriais que ela denunciou nas organizações eclesiásticas”. [22]
Flemming cita, com propriedade, o escólio de Van Inwagen, quando assevera:
“Existe pouca perseguição da ciência pela Igreja. Não há nada na história das relações entre a ciência e o cristianismo que se possa comparar à era Lysenko na biologia soviética ou na condição da ciência na Alemanha nazista...Eu sugeriria que a cosmovisão cristã da Alta Idade Média produziu o clima mental que possibilitou o nascimento da ciência”. [23]
A Era Moderna é marcada pelo surgimento do Iluminismo (século XVIII), o qual acaba se apropriando de muitas construções do cristianismo, procurando apenas secularizá-las e trocando a fé no transcendente pela fé na onipotência da capacidade do homem. Dessa maneira, o Iluminismo e suas consequências (reducionismo, materialismo, determinismo, cientificismo, engenharia social, utopismo messiânico materialista etc.) não passa de uma nova forma de religião.[24]
Vejamos, porém, que espécie de religião é aquela sustentada no paradigma do Iluminismo materialista imanentista. Flemming dá uma excelente mostra com o trabalho de “bioética” (sic) de título “Should the Baby Live: The problem of Handicapped Infants” (“O bebê deve viver? O problema das crianças deficientes”), de autoria de Peter Singer e Helga Kushe. [25]
Aqui é preciso dizer que o autor expõe claramente um retorno deletério de uma eugenia negativa crudelíssima, sob as vestes maltrapilhas, o travestismo hediondo e tosco de suposta base “bioética” (sic). Apontar para Singer e Kushe e dizer que são neonazistas que não saíram totalmente do armário, apenas por uma questão semântica, ou seja, de não se dizerem, intitularem-se “nazistas”, não é um chamado argumento “ad hominem”.
Não se trata de atacar diretamente a pessoa quanto ao seu caráter, sem avaliar o conteúdo de suas proposições. Trata-se de tão somente constatar a verdade, apontar a natureza ínsita exatamente às suas proposições, que não podem, neste caso, serem separadas de suas subjetividades, de seu caráter. Efetivamente, trabalhar com a exposição da verdade, com a sinceridade e apresentando os argumentos às claras, pode parecer ofensivo, mas é apenas e tão somente honesto. É que, como ensina a parábola:
“A Verdade visitava os homens sem roupas e sem adornos, tão nua quanto o seu nome. Por isso, todos os que a viam viravam-lhe as costas, de vergonha ou de medo, e ninguém lhe dava as boas – vindas. (...). A verdade é que os homens não gostam de encarar a Verdade nua; eles a preferem disfarçada”! [26]
Como demonstra Flemming, Singer e Kushe não têm o menor pudor em afirmar literalmente:
“Cremos que algumas crianças com severas deficiências deveriam ser mortas”. [27]
Isso já bastaria para comprovar a eugenia negativa ao estilo nazista. Mas, há mais. Os autores afirmam que:
“A recomendação pode ofender em particular aos leitores nascidos com alguma deficiência, talvez as mesmas que agora discutimos” (grifo nosso). [28]
Perceba-se que nem mesmo um critério quanto à “severidade” das deficiências que devem, em seu raciocínio homicida, servir de base moral para o assassinato, pode ser encontrado. Ora, se os leitores de uma obra de suposta “bioética” (sic) com pretensões filosóficas, podem ser aqueles “selecionados” para morrer, então não se está falando sequer de alguma “severa” deficiência que inviabilize o que chamariam de uma “vida plena” ou “digna de ser vivida”, de acordo com seus critérios doentios! Um cego, lendo o livro de Singer e Kushe em braile; um surdo; um paraplégico, entre outros, seriam os “eleitos” para a morte!
O retrocesso à barbárie, o temor concretizado de retorno de algo similar ao holocausto, conforme aduz Bauman, é algo nítido em um texto abominável como esse. São palavras de Bauman:
“O regime nazista de há muito desapareceu, mas seu legado venenoso está longe de morto. Nossa persistente inabilidade para chegar a um acordo sobre o significado do Holocausto, nossa incapacidade de desmascarar e desarmar a armadilha homicida, nossa disposição de continuar brincando de história com os dados viciados da razão que descarta os clamores da moralidade como irrelevantes ou loucos, nossa submissão à autoridade do cálculo custos – benefícios como argumento contra os mandamentos éticos – tudo isso evidencia a corrupção que o Holocausto expôs, mas fez pouco, ao que parece, para desacreditar”. [29]
Conforme destaca Flemming:
“O impulso da obra é o repúdio absoluto da tradição ética hipocrática/judaico – cristã unido à exaltação do tipo de ética médica praticada no mundo pagão antes do surgimento do cristianismo, incluindo-se o aborto, o infanticídio e eutanásia. Aprovam-se as culturas praticantes do infanticídio nos limites da moralidade ética. Kushe e Singer afirmam o caráter desvirtuado da tradição judadico – cristã”. [30]
A inversão de valores é nítida. A ética judaico-cristã e a tradição hipocrática de valorização da vida humana, que geraram em seu ventre benfazejo o próprio conceito de “dignidade humana”, “Direitos Humanos”, é apresentada como “desvirtuada”, enquanto que uma visão utilitária, ou melhor ainda, pragmática, retrocedendo às culturas primitivas, é exposta como a panaceia para a busca da felicidade da humanidade.
Isso corresponde exatamente ao que Angotti Neto muito bem denominou de “Disbioética”. Trata-se de uma conformação de bioética muito mais voltada “ao erro que à ética adequada”. [31]
Flemming traz à baila o ensinamento de William H. E. Lecky, que aponta para o dever primordial dos cristãos (dever este que constitui seu credo) de olhar para os demais homens como seus semelhantes, assumindo sua sacralidade e assim desenvolvendo “a ideia cristã de santidade de toda vida humana”. Um dos maiores méritos do cristianismo, segundo o autor, foi a afirmação, definitiva e dogmática, da “pecaminosidade de toda destruição da vida humana na qualidade de divertimento ou de simples conveniência”. [32]
Realmente, não se pode esperar que espíritos frios, egoístas, cruéis e bárbaros, que sequer percebem o retrocesso histórico a que se submetem sob as vestes falseadas de um pensamento “progressista”, possam considerar adequada uma ética ou bioética que valoriza a vida e o ser humano, independentemente de suas qualidades, a não ser o fato de se tratar de uma vida humana. Para tais pessoas, como Singer e Kushe, só lhes parece “bioético” (sic) aquilo que, na verdade, é “disbioético”.
Singer e Kushe escrevem com maestria, argumentam, demonstram conhecimento erudito e inteligência acima da média. Mas isso nada mais faz do que comprovar que a assertiva de Unamuno estava perfeita:
“Porque uma pessoa pode ter um grande talento, o que chamamos de grande talento, e ser um estúpido do sentimento, e, até, um imbecil moral”. [33]
Aliás, considerando o raciocínio de Singer e Kushe, possivelmente seus abortamentos não estariam justificados, eis que ainda não teriam demonstrado suas deficiências, mas certamente sua eliminação sumária já na fase adulta, poderia ser defendida, se fossem medidos de acordo com seus próprios critérios, pois que sofrem de uma séria deficiência de percepção moral, “cegueira moral”. E muito pior do que a cegueira física, a “cegueira moral” é perigosa, pois que contagiosa e de fácil alastramento em um mundo dominado pelo relativismo.
A legitimação de qualquer orientação ética no mundo da ciência, seja a médica ou qualquer outra atividade, está onde sempre esteve: na beneficência. Como aduz Alves:
“Já que a ciência não pode encontrar sua legitimação ao lado do conhecimento, talvez ela pudesse fazer a experiência de tentar encontrar seu sentido ao lado da bondade. Ela poderia, por um pouco abandonar a obsessão com a verdade e perguntar sobre seu impacto sobre a vida das pessoas: a preservação da natureza, a saúde dos pobres, a produção de alimentos, o desarmamento dos dragões (sem dúvida, os mais avançados em ciência!), a liberdade, enfim, essa coisa indefinível que se chama felicidade. A bondade não necessita de legitimações epistemológicas. Com Brecht, poderíamos afirmar: ‘Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana’” (grifos no original). [34]
E não é em raízes disbioéticas apregoadas com ares libertários que se vai encontrar o caminho do exercício da bondade, da beneficência, da caridade, da real valorização da vida humana, independente de contingências. Essa orientação somente surge, e se mantém, com a medicina nos moldes hipocráticos e a ética judaico – cristã. [35] Tudo o mais que se criou fora desse padrão tradicional resultou em morticínio.