Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
Com o advento da Constituição de 1988 o até então acanhado Ministério Público brasileiro ganha foros de “quarto poder”, abarcando uma grande variedade de incumbências, dentre as quais, uma das mais importantes, é a de tradicional “Fiscal da Lei”.
O órgão, grandioso em termos constitucionais e legais, continuou e continua, em prejuízo da sociedade, mirrado em recursos materiais e pessoais, de modo que mal dá conta de uma mínima parcela de suas numerosas funções.
Mesmo nesse quadro, se embrenha, seja em nível estadual, seja federal, numa sanha para abarcar funções de investigação criminal. É claro que não pretendendo atender, juntamente com as Polícias Judiciárias, a toda a demanda de delitos em uma divisão equânime de trabalho, mas com a pretensão de escolher a dedo casos e criar equipes especialmente dedicadas ou as famosas “forças – tarefa”.
Assim sendo, à margem de mandamento constitucional expresso e sem qualquer base legal ordinária, por meio de Resolução, passa a “legislar” (sic) os famigerados PICs (Procedimentos Investigatórios Criminais do MP). Os fiscais da lei imprimem um duro golpe no seu objeto de proteção. Sem controle externo, nem mesmo do Judiciário, passam a realizar, por conta e risco próprio, investigações especiais de casos de repercussão.
A tática do “vamos fazer para ver no que dá” ou do “bumba meu boi”, resulta bem. Acontece que, com a escolha de casos específicos, com investigações com dedicação exclusiva, conseguem levar a Juízo episódios de alta repercussão social e midiática. É óbvio que as Polícias Judiciárias, atulhadas de casos de pequena monta, não poderiam competir com essa atuação seletiva. Nesse clima, quando a absoluta inconstitucionalidade e ilegalidade de sua atuação é posta em xeque perante o STF, aquele tribunal não tem a coragem de reconhecer a ilegalidade patente e acaba sanando os vícios de iniciativa, mediante uma nova usurpação legislativa (agora do Poder Judiciário) e uma violação à Constituição Federal em vários aspectos (processo legislativo, legalidade, atribuições constitucionais, divisão de poderes etc.). Enfim, o STF afirma que a investigação criminal pelo Ministério Público é legal! Aceita uma Resolução como regramento de processo penal! Acata uma suposta atribuição constitucional que não está escrita em lugar algum da Constituição! Afinal, ficaria mal decretar a nulidade absoluta de todas as investigações e processos delas decorrentes naquela altura do campeonato. O “troféu” tão desejado estava conquistado pelo Ministério Público, à custa do vilipêndio de sua própria função, esta sim constitucional, de Fiscal da Lei. Era agora o titular exclusivo da ação penal (titularidade esta constitucionalmente e legalmente indiscutível) e autor facultativo e seletivo de investigações criminais.
Discutir essas questões não é objetivo deste texto, o qual sequer pretende ter ares de juridicidade ou metodologia científica rígida, mas persegue um objetivo de analisar questões estritamente de fato. [1]
Na época em que tudo isso era discutido, este autor participou de uma banca de Trabalho de Conclusão de Curso, cujo aluno defendia a prerrogativa do Ministério Público de investigar diretamente na área criminal. Dentre os vários temas discutidos na seara jurídica, houve um questionamento, levantado por este subscritor, que fugia da área estritamente acadêmica para adentrar ao mundo dos fatos e da experiência prática. Dizia ao novato estudante, e recebia naquela ocasião o reconhecimento de um então Procurador de Justiça, hoje Desembargador, presente na banca, que o Ministério Público não estava levando em conta um fator muito importante nessa decisão, a meu ver, impensada, de imiscuir-se no âmbito da investigação criminal direta. Isso independente do mérito legal e constitucional, jurídico enfim, da questão.
A questão é que o Ministério Público era, até então, um órgão que estava preservado, praticamente blindado do convívio direto com o submundo criminoso. Recebia autos de Inquéritos Policiais concluídos e lidava com a realidade em forma de papéis, quase nunca se envolvendo diretamente com pessoas ou circunstâncias impróprias ou duvidosas. Ao ingressar na seara da investigação direta o Ministério Público, ainda que seletivamente, começava a pisar numa lama à qual seus sapatos brilhosos não estavam habituados. E é impossível aproximar-se da lama sem misturar-se aos porcos de alguma forma, ainda que aparentemente. Entrava em risco a tão cara imagem imaculada do Ministério Público. Porque uma grande verdade é aquela que se fala sobre a aparência da “mulher de César” (“não basta ser honesto, é preciso parecer honesto”). Ora, as Polícias em geral, incluindo a Judiciária, já estão e sempre estiveram calejadas em enfrentar suspeitas sobre suas ações e inações, de andar no fio da navalha entre o abuso e a prevaricação, de aguentar, com paciência infinita, suspeitas e insinuações de corrupção e, inclusive, de conviver com casos reais de corrupção que vêm a público, já que a lida com o submundo é direta. O Ministério Público nunca foi habituado a nada disso. E mesmo a corrupção, que certamente sempre existiu no órgão, os desvios que são comuns a qualquer entidade humana, acabavam camuflados porque não havia uma atividade de maior exposição, tratava-se de uma atuação restrita a gabinetes. Nessa situação, mesmo os casos de efetiva corrupção são menos visíveis e o órgão como instituição é preservado.
Acontece que a atividade de investigação criminal direta implica em atuação de maior proximidade com o submundo e de muito maior exposição. Parece que meu comentário, feito numa banca de faculdade interiorana, nunca gerou qualquer efeito, como era de se esperar. Mas, os fatos, a realidade, se impuseram e, hoje, vemos, não um Promotor interiorano, mas o Procurador Geral da República sentado num boteco “pé sujo” em conversa que gera suspeitas com um advogado envolvido em caso de grande repercussão. A foto mostra o Procurador trajando vestes informais, com óculos escuros, com toda a aparência do estereótipo de um investigador dos anos 1960 ou 1970, frequentando locais de nível duvidoso para encontros com informantes das mais variadas espécies (criminosos, prostitutas (os) etc.). Só faltaram as correntes e pulseiras de ouro e camisa com os botões entreabertos no peito. Ele falava com um advogado, é verdade, mas era um causídico envolvido em um caso rumoroso, o qual acaba de gerar um escândalo acerca de uma delação que já era objeto de crítica generalizada e envolvia a corrupção (em tese) de um outro Procurador da República, braço direito do Procurador Geral em questão. A alegação é de uma conversa sobre “banalidades” e de um “encontro casual” naquele local. Mas, e a “mulher de Cesar”? E a imagem imaculada do Ministério Público? Para onde foram? Como serão recuperadas?
E é de se notar que o Ministério Público, especialmente o Federal, não lida com a criminalidade comum, está em um nível de “White Collar Crime”, mas mesmo assim consegue se enlamear. Imagine se realmente tomasse para si, a sério, sem seletividade, a investigação criminal direta. Se mesmo em casos de colarinho branco consegue se expor de tal forma, imagine-se numa situação em que atuasse como verdadeiro investigador, não como este que escolhe quando quer atuar, quando não quer, qual criança caprichosa que diz, disso eu quero brincar, disso não!
Onde a alvura parecia grassar praticamente sem limites, agora surgem manchas por todos os lados, mesmo quando se atua de forma totalmente seletiva. Como afirma Zagrebelsky, “até mesmo assumir responsabilidades pode ser um ato irresponsável”. [2] E a responsabilidade de manter a imagem imaculada de uma instituição, mergulhando-a na investigação criminal é algo que somente num ato de plena e absoluta irresponsabilidade se pode assumir. Fato é que o Ministério Público teve o que desejava e é preciso mesmo ter cuidado, muito cuidado com o que se deseja!
REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O papel do Inquérito Policial no Sistema Acusatório: O modelo brasileiro. Disponível em www.jusbrasil.com.br, acesso em 11.09.2017.
ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Trad. Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2012.
[1] A discussão mais aprofundada da ilegitimidade do Ministério Público para investigar já foi objeto de nosso estudo: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O papel do Inquérito Policial no Sistema Acusatório: O modelo brasileiro. Disponível em www.jusbrasil.com.br, acesso em 11.09.2017.
[2] ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Trad. Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 126.