Capa da publicação Internação psiquiátrica compulsória: análise constitucional
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Análise constitucional da relação entre saúde pública e internação psiquiátrica compulsória

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31/12/2017 às 14:00
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Para proteção dos usuários, sua saúde e suas vidas, a internação compulsória deve existir, tem fundamento constitucional, mas precisa ser utilizada de forma excepcional.

A cumulação do problema das drogas, questão de saúde pública, com a desigualdade e a pobreza tem levado à ocupação dos espaços públicos nas cidades por dependentes químicos.[1] Os Poderes Públicos não têm agido com eficiência para prevenir o consumo inconsequente das drogas, quando deveriam proteger e cuidar dos seus cidadãos viciados que, muitas vezes, tornam-se incapazes de determinar os rumos da própria vida. Além disso, o Estado precisa garantir os direitos de todos, ao manter o bem-estar e o controle dos espaços públicos urbanos para que a sociedade possa desenvolver-se social e economicamente. Daí porque a discussão sobre a internação psiquiátrica compulsória, determinada pelo Estado, e o seu embate com os direitos fundamentais e a organização da saúde pública, é tema fundamental que deve ser discutido em busca também de soluções jurídicas. Este ensaio serve como instrumento para a discussão do tema na XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira e espera-se ser de bom proveito para a deliberação dos painéis específicos.

A internação psiquiátrica pode ser voluntária, involuntária ou compulsória. A voluntária ocorre quando o usuário toma a iniciativa ou expressamente consente com o procedimento. A involuntária é ato médico que incide sobre paciente em momento crítico e se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro.[2] Já a internação compulsória é determinada exclusivamente por decisão do juiz competente, após o laudo médico obrigatório, quando não há o consentimento do internado e haja perigo iminente ou probabilidade de risco à integridade física do paciente ou de terceiros. Nesse caso, o juiz não pode interferir no tratamento que será determinado no laudo médico. Essas são previsões da Lei n. 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais (Lei Antimanicomial ou da Reforma Psiquiátrica).

É preciso lembrar que o projeto de lei que deu origem a referido ato normativo (PL 3657/1989), de iniciativa do Deputado Federal Paulo Delgado, previa a internação compulsória nos casos em que o médico, sob sua exclusiva responsabilidade, achasse conveniente determinar a internação. O médico deveria, então, comunicar a autoridade judiciária local e a Defensoria Pública. A previsão da Lei n. 10.216/2001 foi claramente diversa. Daí porque, atualmente, a internação compulsória de pessoas com transtornos mentais é determinada por juiz competente apenas.

Entretanto, a lei exige que se cumpram requisitos para que qualquer das modalidades da internação psiquiátrica ocorra. Nesse sentido, para a internação compulsória, que é medida residual quando a internação voluntária não puder ser cumprida, reclama-se a provocação do juízo competente com pedido instruído com laudo médico circunstanciado que ateste a necessidade da internação.[3] Segundo Gustavo Pinheiro, a internação compulsória apresenta-se como um “procedimento judicial cautelar ou de mérito”, com regras análogas à internação involuntária, pois se trata de hipótese onde o médico psiquiatra atesta que o indivíduo não tem qualquer autonomia e capacidade para cuidar de si mesmo e solicita ao juízo para que determine a internação.[4]

Essa prática passou a ser recorrente nos casos de usuários de drogas e dependentes químicos, impondo-se como alternativa à aplicação da pena restritiva de direitos se for comprovado o transtorno mental do condenado penal que retire a sua autonomia.[5] Com o tempo, a prática dos tribunais veio a consolidar entendimento de aplicação da lei, especialmente em casos individualizados, como denota recente decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

 No caso, o TJDF confirmou sentença que impôs a internação compulsória do réu viciado em álcool e em crack. Este já havia se evadido de quatro comunidades terapêuticas e o médico, por isso, recomendara a internação compulsória. Em apelação, o Distrito Federal alegou que a internação constrangeria a liberdade individual do réu, violando a Constituição, o que não foi aceito pelos julgadores. Estes argumentaram que a internação compulsória do réu se justificava para resguardar o seu direito à saúde e o seu direito à vida, pois em “situações dramáticas nas quais a pessoa não tem condições de decidir sobre a sua própria existência digna, a internação involuntária, longe de vulnerar os princípios da legalidade e da liberdade individual, vai ao encontro do postulado da dignidade humana e é indispensável para a restauração da autodeterminação.”[6]

Apesar da prática judicial dos últimos anos, a questão do uso indevido das drogas, e das consequências sociais que ela acarreta para a sociedade, remete ao dever constitucional do Estado de proteger a saúde dos seus cidadãos principalmente nas situações de prevenção. O modo como age o Estado para cumprir com esse dever pode levar à colisão de direitos fundamentais. Viu-se que casos individualizados são comuns. Mas, e se a situação fática exige que haja a internação psiquiátrica coletiva de dependentes químicos? A Cracolândia, em São Paulo, é o reiterado exemplo de operações estatais de retomada do espaço público habitado por viciados em drogas onde há tensão explícita entre direitos fundamentais.

Nessa senda, é preciso levantar questionamentos sobre se a Constituição Federal permite a internação compulsória; se a internação compulsória pode ser coletiva, de forma que o Estado recolha os dependentes químicos para depois, em futura análise de caso a caso, determinar o melhor tratamento; e se há clara colisão entre o direito fundamental à saúde e o impacto da internação compulsória de dependentes químicos no Sistema de Saúde Pública do Brasil.

De início, entende-se que a internação compulsória é constitucional. A Constituição assegura a liberdade de ação a partir de um sistema de legalidade legítimo (art. 5º, II) e protege a liberdade de locomoção (art. 5º, XV) que contempla o direito de ficar e de permanecer, sem necessitar licença ou autorização nos espaços públicos. Esses direitos fundamentais são precipuamente exercidos na dimensão de direitos de defesa, onde o Estado não pode restringi-los sem justificativa constitucional. De modo que as exceções às liberdades individuais são permitidas pelo ordenamento jurídico se forem veiculadas por lei proporcional e de maneira especificada, com estrito cumprimento dos requisitos acaso impostos.

Por isso que, a “liberdade não é, pois, exceção, é, sim, a regra geral, o princípio absoluto, o direito positivo; a proibição, a restrição, isso sim é que são as exceções, e que por isso mesmo precisam ser provadas, achar-se plenamente pronunciadas pela lei, e não por modo duvidoso, sim formal, positivo; tudo o mais é sofisma. Em dúvida, prevalece a liberdade, porque é o direito, que não se restringe por suposições ou arbítrio”, de acordo com Pimenta Bueno.[7]

Daí porque é possível aceitar os termos da Lei n. 10.216/2001. Este diploma é exclusivamente voltado para garantir direitos das pessoas acometidas por transtornos mentais, onde, em situações excepcionais, e cumprido o requisito do laudo médico circunstanciado, é possível determinar judicialmente a internação compulsória. A lei se fundamenta especificamente no direito fundamental à saúde e na dignidade da pessoa humana do internado, de modo a buscar sua reinserção social a partir do tratamento digno em estabelecimento clínico com suporte médico, e não asilar.

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu ser possível a aplicação da internação compulsória em 2010, quando, no julgamento de habeas corpus, entendeu que é medida excepcional que, ao cumprir com os direitos fundamentais à saúde e à vida, serve para o resguardo da saúde da pessoa com transtorno mental e de terceiros a ela relacionados.[8]

Não existe, contudo, previsão legal e específica para dependentes químicos que seja atual e contemporânea ao progresso da ordem jurídica democrática e da doutrina médica. Existe, é verdade, o Decreto 891/1938, editado pelo autoritário Estado Novo varguista. Conhecido como Lei de Fiscalização de Entorpecentes, esse ato normativo tem sido utilizado como justificativa em projetos de lei na Câmara dos Deputados, dos quais se falará adiante, que preveem a atuação única do Poder Executivo no ato da internação compulsória.[9]

Dessa maneira, a prática jurisdicional tem sido a de aplicar a Lei n. 10.216/2001 juntamente com a Lei n. 11.343/2006 (Lei das Drogas). Nesse sentido, é comum o cumprimento de requisitos como o laudo médico circunstanciado e a análise multidisciplinar de equipes multiprofissionais para determinar a possibilidade da internação compulsória do dependente químico.

Ademais, o Ministério da Saúde criou e regulamentou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) para substituir os hospitais psiquiátricos e para promover a integração social das pessoas portadores de transtornos mentais graves. Dessa forma, existem os CAPS AD que são específicos para acolher dependentes de drogas, o que foi regulamentado pela Portaria n. 615/2013. Os CAPS AD são compostos por diversos profissionais, como médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, que atendem o usuário de droga de maneira a auxiliá-lo em sua reinserção à sociedade, antes mesmo do encaminhamento às comunidades terapêuticas.

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem determinado a internação compulsória de dependentes químicos economicamente hipossuficientes às custas do Município ou do Estado, tendo em vista a responsabilidade solidária dos entes federados, de acordo com a interpretação conjunta da Lei Antimanicomial com a Lei das Drogas. Também os acórdãos se fundamentam nos artigos 1º, III; 6º e 196, da Constituição Federal, isto é, na dignidade da pessoa humana, no direito fundamental social à saúde, e no dever de proteção da saúde pelo Estado em seu sistema de acesso universal.[10] Enfim, são práticas que, até o momento, têm sido aceitas como legais e constitucionais e que, se atendidos os pressupostos de respeito aos direitos fundamentais, permitem a ação do Estado para a proteção do direito à saúde do internado em detrimento da relativa compreensão do seu direito à liberdade.

Embora esses casos individuais sejam cada vez mais recorrentes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a prioridade nas ações e serviços comunitários com características voluntárias ao lembrar que as internações compulsórias devem ser utilizadas somente nos casos estritamente excepcionais, como é previsto em lei. Isto porque a linha tênue que separa a autonomia e a dependência dos usuários de drogas é algo que só pode ser determinado pelo médico especialista, que lavrará o laudo exigido para permitir a internação. Os laudos médicos geralmente são fundamentados na ameaça à vida do dependente químico e, muitas vezes, das pessoas próximas a ele, razões que têm sido seguidas pelas decisões judiciais.

Dessa maneira, a prática dos tribunais tem considerado a liberdade individual como fundamento do Estado Democrático de Direito e enfrentado a ponderação entre ele e os direitos à vida e à saúde do usuário e, por isso, tem exigido o parecer técnico especializado que propicie a restrição do direito fundamental. Somente assim consegue-se fundamentar a internação compulsória não como sanção, mas como tratamento.

Segundo a Nota Técnica 86/2014, do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde, colacionada nos autos de AI 1.0338.14.003238-8/001 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, levado à discussão no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “dependentes químicos necessitam de cuidados clínicos e psicológicos contínuos em longo prazo. Não existe protocolo único. E nem sempre uma abstinência temporária de drogas por motivos alheios à vontade do paciente é sinônimo de tratamento efetivo. Portanto, o projeto terapêutico deve obrigatoriamente ser individualizado.”

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Isso significa que cada caso de internação compulsória é um caso, o que restringe a análise estatal, seja do governo, seja do juiz, em procedimento coletivo. Não pode o Poder Executivo, e muito menos o Poder Judiciário, por si mesmos, determinar quando e em que momento a pessoa perde o discernimento do convívio social com prejuízo para a sua própria autonomia. Daí porque é imprescindível que se cumpra com a análise de caso a caso pelo médico antes da decisão judicial, seja ela em tutela provisória de urgência antecipada, seja ela definitiva em sentença. O contrário disso seria violação à norma legal e ativismo judicial desnecessário.

O que aqui se tem discutido até agora leva à discussão sobre a internação compulsória coletiva, como já se tentou realizar em São Paulo, por exemplo. O simples recolhimento de usuários de droga de modo geral, sem individualização, não corresponde ao cumprimento do tratamento digno que qualquer pessoa deve merecer na condução do Estado, ainda que detenha pouca capacidade cognitiva e, por isso, haja perda relativa da sua capacidade jurídica, como previsto no art. 4º do Código Civil: “Art. 4o  São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico”.  

Com efeito, se houver um estado de instabilidade social representado pelas “cracolândias” seria preciso seguir um caminho para se garantir os direitos fundamentais: i) o município deve realizar a identificação das pessoas que compõem esse ambiente, individualizando-os; ii) após, deve realizar o diagnóstico singular desses usuários de drogas de modo a instruir o procedimento administrativo e conhecer a real autonomia privada e discernimento da pessoa. Para isso, será preciso mobilizar pessoal de acolhimento, assistência social e médicos psiquiatras.[11] Nesse ínterim, as situações emergenciais, com problemas de saúde grave e risco de morte, devem ser atendidas excepcionalmente com a remoção direta e imediata para hospitais, sob o resguardo do direito à vida; iii) individualizados e diagnosticados os usuários, cumpre buscar convencê-los sobre a necessidade da internação voluntária, com possibilidade de formulação de defesa pela pessoa abordada que se recusa a aceitar a internação; iv) com a recusa, ou se não houver a possibilidade de obter qualquer resposta coerente do indivíduo, e em havendo a situação de perigo e de risco à saúde e/ou à vida, todo o processo referente àquela pessoa deve ser encaminhado para a procuradoria do município que redigirá o pedido, já instruído com o laudo médico circunstanciado, em busca da autorização judicial para a internação compulsória.

Esse deve ser o caminho básico para se permitir a internação compulsória, não sendo recomendada sua inversão, ou seja, quando se dá o recolhimento com apoio policial e a internação prematura com posterior laudo do médico e avaliação da assistência social. Nem todos os dependentes químicos ostentam transtorno mental de forma a se enquadrarem na hipótese da internação. Se houver a limitação da liberdade anteriormente ao laudo circunstanciado, está configurada a violação a direito fundamental da pessoa.

É óbvio que para que tal política seja integralmente implementada é preciso, anteriormente ao pedido, existir vagas e/ou leitos nos Centros de Atenção Psicossocial ou em outros centros de acolhimento, públicos ou privados, que possam atender os dependentes químicos. As vagas nos centros privados, quando preenchidas por economicamente hipossuficientes devem ser mantidas pelo Poder Público por força do art. 196, da Constituição. O juiz deve considerar a existência de todos esses pressupostos antes de deferir a decisão que excepcionalmente limite a liberdade do cidadão.

Dito isso, pode-se ressaltar que o bloco de constitucionalidade brasileiro não permite medidas coletivas ou genéricas de restrição da liberdade. Daí se pode retirar previsões, por exemplo, como o da proibição à expulsão coletiva de estrangeiros, prevista no artigo 22.9, da Convenção Americana de Direito Humano, ou também a interdição à deportação coletiva prevista na Lei de Migração (arts. 3º, XXII e 61, da Lei n. 13.445/2017).

Nesse sentido, ficou conhecida a medida realizada pela Prefeitura de São Paulo em meados de 2017 quando requereu ao juízo da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo a “busca e apreensão dos usuários (...) por equipes multidisciplinares especializadas” de pessoas vagando pela cidade. O pedido foi realizado após intervenção policial na Cracolândia e serviu para providenciar a internação compulsória coletiva das pessoas que não aceitaram a internação voluntária no primeiro momento e fugiram da ação policial.[12]

O juízo de primeira instância deferiu a internação compulsória em tutela provisória de urgência, mas tal decisão foi revertida em sede de agravo de instrumento no Tribunal de Justiça sob os argumentos contrários à medida apresentada pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público estadual. Sinteticamente, os fundamentos dos defensores e promotores foram os seguintes para se obstar a internação genérica: i) a internação compulsória é medida excepcional que requer laudo médico prévio para sua autorização. Se não há cumprimento desse pressuposto, há violação à garantia constitucional do devido processo; ii) a afronta à Lei do Sistema Único de Saúde (SUS) porque a medida não preservaria a autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; sendo iii) que o município, ao escolher dependentes químicos para recolhimento à força, agiu contra os princípios fundantes do Estado Democrático de Direito.[13] Percebe-se que a decisão monocrática do relator seguiu as diretrizes da Lei da Reforma Psiquiátrica, uma vez que prezou pelo respeito à autonomia das pessoas com transtornos mentais e entendeu que a internação compulsória deve ser medida de exceção.

O problema das “cracolândias” nas diversas cidades brasileiras, como na Av. Dom Helder Câmara no Rio de Janeiro, em pontos da região central de Curitiba ou nas imediações da Estação Rodoviária de Porto Alegre, por exemplo, reforça a discussão sobre a desigualdade, a pobreza, o problema do acesso às oportunidades e ao desenvolvimento humano[14] e o dever do Estado de oportunizar o mínimo para que o cidadão possa desenvolver-se sozinho. É prioritário que, na relativa falta de capacidade e autonomia que obstam a vida digna, o Estado, enquanto associação política de cidadãos, proteja o incapaz e hipossuficiente econômica e socialmente. Mas o dever de proteção estatal não lhe permite avançar além dos limites constitucionais.

De fato, hoje é possível encontrar diversos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que contemplem a internação obrigatória dos usuários sem a necessidade da autorização judicial. É o caso dos PL 3450/2012, 5251/2016 e 7206/2017 que tornam obrigatória a internação, pelo Poder Público, de dependentes químicos (sejam crianças e adolescentes, sejam adultos) que estejam em situação de risco, mesmo que não possuam família. O PL 7206/2017, por exemplo, prescinde de autorização judicial, bastando apenas o informe ao juízo competente e ao Ministério Público, concedendo, em verdade, mais poderes ao Executivo do que o próprio Decreto n. 891/1938, de Getúlio Vargas.

Entende-se que são respostas de parlamentares para a busca de solução rápida do problema do consumo de drogas que afeta o espaço público das municipalidades. Mas o atropelamento de direitos fundamentais que tais dispositivos normativos ocasionariam requer maior estudo e discussão da sociedade em busca do respeito simultâneo à liberdade do usuário e ao direito dos demais cidadãos da sociedade.

Ocorre que a manutenção desse sistema custa ao Estado e à toda sociedade. O Sistema Único de Saúde (SUS) é, por dever constitucional, obrigado a atender universalmente todos os cidadãos, contribuintes ou não, a configurar grande bem comum e público da sociedade brasileira. Dessa maneira, como se viu na prática dos tribunais, o Estado está obrigado a arcar com as despesas da internação compulsória daquele que não tem capacidade econômica para custear seu tratamento consolidado conforme previsto nos atos normativos do Ministério da Saúde.[15] São despesas que somente se intensificam se o Estado não atua para prover educação e prevenção, especialmente às parcelas mais pobres da sociedade, sobre os riscos à saúde física, social e à condição econômica do usuário devido ao consumo de drogas.

O problema mundial das drogas deve ser combatido não mais como nas últimas duas décadas, com perseguição policial aos usuários, pois essa ação se demonstrou ineficiente e maléfica especialmente para a política pública do sistema prisional brasileiro. O usuário não deve ser visto como criminoso e é urgente a adoção de critérios objetivos, e não subjetivos, que apartem o consumidor do traficante.

É preciso adotar política de redução de danos com combate simultâneo à desigualdade social, o que implica o Estado continuar a atender os casos graves de perigo à vida dos dependentes químicos, como tentativas de suicídio e surtos psicóticos; a viabilizar atendimentos nos CAPS AD; e a internar os dependentes nas comunidades terapêuticas. Ademais, é preciso continuar acompanhando o paciente para além da internação.

Muitos não possuem vínculos familiares, têm dificuldade em obter trabalho ou sequer possuem o mínimo de qualificação técnica para serem empregados após a saída da internação, o que, geralmente, os levam ao consumo e às cracolândias das cidades.[16] Esse ciclo vicioso não resolve o problema do consumo e intensifica os gastos na saúde pública que poderiam ser revertidos para ações mais eficientes, abrangentes e preventivas no SUS.

Portanto, para proteger as pessoas, sua saúde e suas vidas, a internação compulsória deve existir, tem fundamento constitucional, mas precisa ser utilizada de forma excepcional. O cumprimento do laudo médico circunstanciado e individualizado é essencial para obstar possíveis abusos do Poder Público que pretende resolver, a partir de poucos atos administrativos, um problema complexo e de saúde pública que se estende há muitos anos nas grandes cidades do Brasil.

É tempo de o país intensificar as ações governamentais que têm atendido à reinserção social dos dependentes químicos, agora com maior eficiência e atenção para evitar a reiteração na doença, com ação policial voltada prioritariamente para o combate ao tráfico e ao crime organizado.  Não atendidos os direitos fundamentais, infelizmente qualquer política pública com suporte na boa-fé e no atendimento à organização do espaço público poderá beirar a políticas higienistas do começo do século XX.

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Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Análise constitucional da relação entre saúde pública e internação psiquiátrica compulsória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5296, 31 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62670. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Texto elaborado para a XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira.

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