RESUMO: O presente trabalho objetiva revisitar o tratamento dogmático conferido à problemática da reserva do possível na experiência jurídica brasileira, sugerindo uma proposta constitucionalmente adequada de sua conceituação. Nesse passo, entende-se que a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy é a que melhor compatibiliza a máxima efetividade dos direitos fundamentais sociais com as limitações orçamentárias e jurídicas ao seu reconhecimento individual, na medida em que compreende aquelas normas como direitos prima facie, com a estrutura de princípios, sujeitos ao sopesamento fronte aos direitos sociais da coletividade e aos princípios da competência decisória do legislador e da separação de poderes. Conclui-se, pois, que, em leitura alexyana, a reserva do possível expressa tanto a exigência de ponderação dos direitos fundamentais de segunda dimensão quanto se identifica com as condições fáticas e jurídicas nas quais aqueles sucumbem diante do feixe de princípios com eles colidentes.
Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais. Reserva do possível. Robert Alexy. Direitos prima facie. Regra da proporcionalidade.
SUMÁRIO: Introdução – 2. A reserva do possível em perspectiva histórica e sua problemática recepção pela práxis jurídica brasileira – 3. As divergências em torno da natureza jurídica da reserva do possível – 4. Da impropriedade da identificação entre a reserva do possível e a dimensão do custo dos direitos – 5. A reserva do possível sob a ótica da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy – Conclusão
INTRODUÇÃO
A impossibilidade fático-jurídica de atendimento de prestações positivas pelo Estado tem sido aventada em profusão para obstaculizar o reconhecimento de direitos subjetivos sociais pelo Poder Judiciário. Nota-se, não raras vezes, que a denominada reserva do possível assume nítida expressão de reserva de consciência, posta como um álibi a afastar de modo irracional o embate argumentativo travado em torno do dever estatal de garantir o mínimo necessário para uma existência digna.
Nesse diapasão, malfere-se significativamente o disposto no art. 5º, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, expressão do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, a abarcar, por óbvio, os direitos de segunda dimensão. Os ensinamentos de Canotilho retratam à perfeição essa problemática, a qual é referenciada como justificativa do presente estudo:
Quais são no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt des Moglichen) para traduzir a idéia de que os direitos só podem existir se existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob ‘reserva dos cofres cheios’ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica.[1]
Não obstante o problema da escassez deva ser levado a sério, a bem, inclusive, dos demais direitos fundamentais postos em jogo, sua discussão deve ser balizada por limites argumentativos promanados do texto constitucional, o que exige adequada compreensão sobre a natureza jurídica da reserva do possível, bem como de suas hipóteses de verificação.
Aspecto mais impactante relacionado à temática em apreço diz respeito à oponibilidade da reserva do possível à concretização de direitos sociais pelo Poder Judiciário. Esse será, pois, o problema nuclear enfrentado por esta pesquisa, para cuja abordagem perscrutar-se-ão com profundidade as questões abaixo elencadas, visando à análise da constitucionalidade do emprego da reserva do possível como óbice ao atendimento de pretensões individuais fincadas em direitos de segunda dimensão, bem assim dos limites acaso existentes a tal proceder, isto é, se existiria um núcleo essencial dos direitos sociais frente ao qual seria incabível o acatamento da alegação de impossibilidade fático-jurídica enfeixada pelo Poder Público.
O desvelamento das pré-compreensões tangentes à discussão sobre a existência de um direito subjetivo definitivo a prestações e, de outra parte, à temática da reserva do possível, especialmente entendida como garantia às demais pretensões originárias de direitos sociais, mostra-se de imensurável relevância para que a Constituição seja levada a sério, afinal, conforme pontua Bonavides:
Contemporaneamente, os direitos sociais básicos, uma vez desatendidos, se tornam os grandes desestabilizadores das Constituições. Tal acontece sobretudo nos países de economia frágil, sempre em crise. Volvidos para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da ordem social, esses direitos se inserem numa esfera de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre precária a obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime. Alojados na própria Constituição concorrem materialmente para fazê-la dinâmica, sujeitando-a ao mesmo passo a graves e periódicas crises de instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania e as instituições.[2]
Assim, o objeto central deste trabalho é a investigação sobre os limites constitucionais à oponibilidade da reserva do possível como óbice à concretização de prestações positivas originárias fulcradas em direitos fundamentais sociais. O problema em tela divide-se, fundamentalmente, em três questões, quais sejam: (i) se a reserva do possível afigura-se como um limite constitucionalmente adequado aos direitos subjetivos fundamentais de segunda dimensão; (ii) se existem limites às restrições por ela acaso impostas (“limites dos limites”) e quais são eles; (iii) se há um mínimo existencial indene à afetação operada pela reserva do possível.
A metodologia adotada consistiu em pesquisa bibliográfica, tendo como base, em um primeiro momento, autores da filosofia do direito e da hermenêutica constitucional, visando a sedimentar o marco teórico adotado para o estudo dos direitos fundamentais, e, em momento seguinte, autores dedicados especificamente à análise da concretização dos direitos sociais pelo Poder Judiciário e aos limites impostos pela reserva do possível. Como marco teórico, elegeu-se a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, a qual apresenta o modelo aplicativo dos direitos sociais que melhor alinha à conclusão alcançada por este trabalho acerca da reserva do possível. A abordagem científica encartada privilegiou o pensamento tópico-problemático[3], ao sustentar razões favoráveis e contrárias aos pontos de vista ora expendidos, em um jogo de suscitações orientado à compreensão do instituto pesquisado.
1. A RESERVA DO POSSÍVEL EM PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA PROBLEMÁTICA RECEPÇÃO PELA PRÁXIS JURÍDICA BRASILEIRA
A positivação dos direitos sociais verificada a partir do constitucionalismo social inaugurado no século XIX trouxe consigo a problemática em torno da eficácia dessas normas constitucionais. De uma postura político-jurídica de indiferença, os textos constitucionais assumem, de pouco em pouco, o reconhecimento dessa segunda dimensão de direitos fundamentais, atribuindo-lhes, contudo, o estatuto de norma programática, cuja eficácia plena estaria submetida à interposição do legislador.
Com as constituições do pós-guerra e os reclamos de um efetivo estado de bem-estar social por elas trazidos, principia-se a advogar sua aplicabilidade imediata, a qual se assentaria em direitos públicos subjetivos a prestações promanados originariamente do texto constitucional, passíveis, portanto, de vindicação judicial. As crises econômicas do final do século XX não tardaram, porém, a afrontar essa situação designada por alguns como utópica, despertando a atenção de doutrina e jurisprudência para a problemática da limitação dos recursos para o atendimento de todas essas demandas, com todos os seus consectários jurídicos.
Decerto, a peculiaridade das normas de direitos fundamentais consagradoras de direitos sociais assenta-se precisamente em seu denominado status positivus. A exigência preponderante de uma prestação positiva do Estado, coloca a eficácia e efetivação dos direitos sociais na dependência dos recursos econômicos disponíveis, cogitando-se, por isso, de uma regra da relevância econômica a diferençar os direitos individuais e políticos dos direitos de segunda dimensão.
Nesse passo, conquanto extreme de dúvidas a existência de direitos fundamentais subjetivos de índole social, exsurge a problemática da reserva do possível, tema desta pesquisa, a qual, a despeito das escorreitas ponderações de Galdino[4], apenas tem sido ventilada para objetar a concretização de normas fundamentais de segunda dimensão, embora induvidosa a também existente projeção econômica dos direitos de defesa.
A reserva do possível aparece pela primeira vez explicitada no discurso de aplicação do direito na denominada decisão numerus clausus do Tribunal Federal Constitucional alemão, proferida em 1972. Naquela oportunidade, discutia-se se a limitação do número de vagas nas universidades, com restrições calcadas no princípio do mérito, violava o direito à liberdade de escolha de profissão e o princípio do Estado Social, garantindo aos candidatos preteridos o direito subjetivo constitucional de acesso ao ensino superior, assentado diretamente na Lei Fundamental (direito a prestações originárias). A Corte entendeu, à luz da reserva do possível, que inexistia o direito subjetivo à criação de vagas adicionais, porquanto faticamente inviável o oferecimento de postos a todos os cidadãos alemães. Nesse sentido, apenas uma limitação desproporcional ao ingresso nas universidades, ou a oferta diminuta de vagas, gerariam o direito à prestação positiva do Estado, hipóteses em que caberia à Corte seu reconhecimento judicial, com a conseguinte mobilização de recursos pela Administração Pública.
Com efeito, a definição atribuída à referenciada cláusula pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, atrelada “àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade”, foi inicialmente recepcionada pela doutrina brasileira como mera referência aos custos dos direitos, cuja reles alegação seria bastante para, aprioristicamente, excluir uma prestação positiva subjetiva do âmbito normativo de um direito fundamental social. A comprovação da inexistência de dotação orçamentária específica para atendimento da pretensão individual veiculada em juízo corporificaria, nessa ordem de ideias, óbice intransponível a um provimento de procedência, porquanto imposição inarredável da indigitada reserva do possível.
2. AS DIVERGÊNCIAS EM TORNO DA NATUREZA JURÍDICA DA RESERVA DO POSSÍVEL
À tormentosa incorporação da reserva do possível no discurso jurídico brasileiro, subjaz aguerrido debate doutrinal acerca da posição teórica ocupada pela cláusula na dogmática dos direitos fundamentais sociais. Destarte, as divergências doutrinárias começam pela definição de sua natureza jurídica, ponto que, sob a ótica deste trabalho, tem implicação decisiva na maior ou menor racionalidade das decisões judiciais tangentes à concretização de direitos prestacionais, impactando diretamente no grau de realização do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, conforme será desenvolvido em tópico posterior. Antes disso, porém, cumpre compendiar as principais posições relacionadas ao problema que se coloca.
Autores como Flávio Galdino[5] e Gustavo Amaral[6], por exemplo, na esteira do pensamento de Cass Sunstein e Stephen Holmes[7], propugnam que a dimensão do custo integra o próprio conceito de direito subjetivo a uma prestação social. Assim, a existência do direito mesmo está condicionada à possibilidade fático-financeira de sua realização. Se o substrato fático não comporta a concretização daquele direito, sequer há que se falar em sua verificação. Tratar-se-ia, outrossim, de conclusão decorrente da adoção de uma teoria interna dos direitos fundamentais, defendida por aqueles que, como Friedrich Müller[8], sustentam a existência de limites imanentes, dados pelo âmbito da norma. Desta feita, a reserva do possível caracterizaria um limite interno aos direitos fundamentais sociais, os quais, somente existiriam onde e quando houvesse recursos disponíveis para seu atendimento.
Noutro giro, Ana Carolina Lopes Olsen[9] e Ingo Wolfgang Sarlet[10] sustentam, a partir da teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, que a reserva do possível se apresenta como limite externo aos direitos fundamentais sociais. De acordo com esse posicionamento, prima facie, todas as prestações decorrentes do espectro semântico dos dispositivos definidores de direitos sociais estariam abarcadas por seu âmbito normativo. Em um segundo momento, ter-se-ia de confrontar aquele feixe de prestações com as possibilidades fáticas e financeiras e, a partir desse cotejo, exsurgiriam os direitos definitivos.
À problemática aventada, subjaz a discussão sobre se a reserva do possível caracterizaria um limite imanente aos direitos fundamentais sociais, na esteira da teoria interna de Friedrich Müller[11], ou se configuraria um limite externo a eles, resultante da colisão com outros princípios constitucionais, consoante a tese de Robert Alexy.
Em apertada síntese, os defensores da teoria interna, destacadamente aqueles filiados à teoria dos custos dos direitos, ponderam que seu posicionamento tem a vantagem de levar a sério o problema da escassez, compatibilizando de maneira mais adequada o atendimento das pretensões individuais com a globalidade representada pelas outras demandas por direitos sociais e conferindo maior dignidade ao orçamento público e às competências dos Poderes Executivo e Legislativo, mais aptos a processarem as alocações de recursos em nível macroeconômico.[12]
Os corifeus da teoria externa, lado outro, asseveram que a caracterização da reserva do possível como um limite fático e jurídico dos direitos sociais prima facie garantidos, ou como uma condição da realidade, conforme Olsen, privilegiaria o princípio da máxima efetividade dos direitos sociais, na medida em que sempre sujeitaria a restrição supostamente decorrente da reserva do possível ao controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, a partir da regra da proporcionalidade.[13]
Discute-se, outrossim, se a reserva do possível seria um princípio, uma regra, uma cláusula ou uma condição fática, percebendo-se, por vezes, um emprego das expressões “cláusula” ou “postulado” sem qualquer justificação. Ademais, conforme salienta Sarlet, o que se designa por reserva do possível desdobra-se em uma dimensão tríplice, abarcando: a efetiva disponibilidade fática dos recursos para satisfação dos direitos fundamentais; a disponibilidade jurídica de tais recursos; e, por último, a proporcionalidade da prestação no que concerne à sua exigibilidade do corpo social.[14]
Sobre a oponibilidade da reserva do possível à concretização de direitos fundamentais sociais divisam-se, em classificação não exauriente, três posicionamentos na doutrina pátria. O primeiro deles, encampado, entre outros, por Andreas Krell, advoga que a reserva do possível seria uma falácia, decorrente de transposição equivocada do direito alemão e que, no que respeita peculiarmente às prestações positivas vinculadas à saúde, a solução seria atender a todos os casos, realocando-se recursos destinados a outras áreas.[15] De outra parte, Sarlet argumenta que a reserva do possível seria objetável apenas àquelas prestações que não se situem no cerne do denominado mínimo existencial, entendido pelo autor como as condições indispensáveis para uma existência digna. Nesses casos, tratar-se-ia de direitos subjetivos definitivos, impassíveis de afastamento pela aludida condição da realidade.[16] Nas demais situações, porém, a prevalência ou não da reserva do possível deverá ser determinada a partir da ponderação dos princípios colidentes, conforme proposto por Alexy.[17] Por último, ressalte-se o posicionamento de Gustavo Amaral[18] e de Flávio Galdino[19], consoante o qual sempre, e em qualquer situação, a problemática dos limites financeiros-orçamentários deverá ser considerada e, constatada a real impossibilidade fático-jurídica, poderá justificar até mesmo a negativa de prestações situadas na esfera do chamado mínimo existencial.
A seguir, passa-se a esboçar o posicionamento adotado neste acerca da problemática em apreço, isto é, sobre a definição emprestada à reserva do possível e seu enquadramento constitucionalmente adequado na dogmática dos direitos fundamentais sociais.