“Só admito uma distinção individual, que torne exceção um
ou mais membros da sociedade: o ter gênio.
Isto não se opõe à concepção de ser necessária crescente socialização
dos bens da vida e cada vez mais perfeita igualdade dos homens.”
Pontes de Miranda
Sumário:1. Princípio da Igualdade. 2. Sociedade empresária privada e sociedade empresária pública. 3. Igualdade de tratamento das obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias. 4. Sociedades empresárias públicas prestadoras de serviços públicos e Sociedades empresárias públicas que atuam em regime de livre concorrência. 5. Jurisprudência. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.
1. Princípio da Igualdade
A Constituição Federal do Brasil tutela diversos bens, valores e princípios jurídicos, tais como: a liberdade, a propriedade, a democracia, a segurança jurídica, o pluralismo, o empreendedorismo, a igualdade, entre outros. Fernanda Duarte Lopes Lucas Silva pondera que: “A questão da igualdade ou de sua falta tem atormentado o homem desde tempos muito antigos. O problema das desigualdades internas, inerentes ao ser humano, bem como o problema das desigualdades externas têm fornecido material para reflexão e investigação, nas mais diversas áreas do conhecimento humano. E, inclusive, gerado visões de mundo da mesma forma diferentes, que repercutem em organização social e sistemas políticos distintos”.[1]
O princípio republicano é um princípio constitucional sensível (Constituição Federal de 1988, artigo 34, inciso VII) e tem como consequência a responsabilidade dos agentes públicos, a temporalidade dos mandatos, a eletividade dos governantes e a igualdade de todos perante a Lei. Segundo Geraldo Ataliba: “República é o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente”.[2]
O princípio da igualdade é multissecular e as diversas previsões contidas na Constituição Federal devem ser obedecidas. Ademais: os “princípios cristãos sobre a igualdade atuaram sobre a sociedade, como um fermento que, aos poucos, vai levando toda a massa. Na Idade Média, não obstante, ainda, a existência de várias categorias sociais, já se nota a influência da tese em apreço. Sumamente ilustrativa, a esse respeito, é certa passagem do Dom Quixote, obra que, como se sabe, constitui a sátira, de parte de um homem renascentista, contra as tradições que melhor caracterizavam a era medieval. Pois bem, são da referida obra as seguintes palavras: “Para que vejas, Sancho, o que bem encerra a andante cavalaria ... quero que te sentes ao meu lado e que estejas tal como eu, que sou teu amo e natural senhor; que comas no meu prato e bebas por onde eu beber, porque da cavalaria se pode dizer o mesmo que se diz do amor: todas as condições iguala”. Aliás, nessa época, afirmara Gregório, o Grande: “Omnes namqui homines natura aequales sumus”.”[3] Além disso, o princípio da legalidade deve ser uma constante a ser atingida pelos Três Poderes Republicanos – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Consoante Cármen Lúcia Antunes Rocha: “O princípio jurídico da igualdade deixou de ser diretriz exclusiva destinada ao legislador, deixou de ser limite negativo de atuação do Poder Público; antes, tornou-se uma obrigação positiva do governante em face do indivíduo. Fez-se direito deste não apenas no sentido de que não pode ser contrariado por alguma norma que venha a ser elaborada, mas uma obrigação que vincula o governante em suas condutas públicas no sentido de igualar, por uma facção jurídica, as condições de vida para que cada qual possa buscar o seu desenvolvimento pessoal em consonância com as suas peculiaridades, a sua forma singular, única e distinta de ser”.[4]
Sob o signo da liberdade de exercício de qualquer atividade econômica e isso independentemente de autorização de quaisquer órgãos públicos (salvo nos casos estabelecidos em Lei), a Constituição Federal é categórica ao estabelecer que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios: (a) da soberania nacional; (b) propriedade privada; (c) função social da propriedade; (d) livre concorrência; (e) defesa do consumidor; (f) defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (g) redução das desigualdades regionais e sociais; (h) busca do pleno emprego; (i) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
O exercício da exploração direta da atividade econômica pelo Estado brasileiro, ressalvados os casos Constitucionais, só será considerada legítima e permitida pela ordem jurídica nacional quando for necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, também definidos em Lei.
Além disso, deve existir igualdade entre as empresas da iniciativa privada e as empresas públicas e sociedades de economia mista, sob pena de se criar um mercado artificial, onde a eficiência econômica e o desempenho sejam apenas armas de uma retórica onde a efetividade da Constituição Federal mostre-se inócuo. Assim, quando o legislador afasta as empresas públicas e as sociedades de economia mista que não prestem serviços públicos stricto senso do regime próprio das demais empresas privadas, age em descompasso com a Constituição Federal, pois tal comportamento é contrária a “vedação consolidada na ordem jurídica referente ao tratamento desigual tem como escopo justamente inviabilizar “desequiparações fortuitas ou injustificadas”, sendo certo que a pertinência lógica entre o fator de discrímen e a desigualação consequente, hábil a tornar válida a diferenciação, deve ser concreta, vale dizer, “aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional”, o que não se verifica, na espécie”.[5]
A Lei 9.637/1998 instituiu o programa para desconcentração de atividades e serviços não exclusivos do Estado, isto é, serviços que podem perfeitamente serem executados pela iniciativa privada, tais como o ensino, a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico, a proteção e preservação do meio ambiente, a cultura e a saúde. Na visão do STF tal experiente possibilitou a transferência de tais atividades econômicas “para entidades de caráter privado e, portanto, submetendo-os a um regime mais flexível, mais dinâmico, enfim, mais eficiente”.[6]
A Constituição Federal determina que a Lei deverá estabelecer o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre, dentre outros pontos, sua sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Não fosse o suficiente, o parágrafo segundo ao artigo 173 repete a norma estabelecida no inciso II, do parágrafo primeiro, do artigo 173 da Carta Magna, asseverando que as “empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”.
2. Sociedade Empresária Privada e Sociedade Empresária Pública.
Consoante a Constituição Federal, a ordem econômica brasileira é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Deverão ser observados os seguintes princípios: (a) soberania nacional; (b) propriedade privada; (c) função social da propriedade; (d) livre concorrência; (e) defesa do consumidor; (f) defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (g) redução das desigualdades regionais e sociais; (h) busca do pleno emprego; (i) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. A Constituição Federal assegura a qualquer um do povo – na conformidade do que estiver estabelecido em Lei - o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos e a Lei ficou a tarefa de, com base no interesse nacional, disciplinar os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros.
No âmbito do Distrito Federal, estabelece a Lei Orgânica, em seu artigo 158, que a ordem econômica do Distrito Federal é fundada no primado da valorização do trabalho e das atividades produtivas, em cumprimento ao que estabelece a Constituição Federal, tem por fim assegurar a todos existência digna, promover o desenvolvimento econômico com justiça social e a melhoria da qualidade de vida, observados os seguintes princípios: I – autonomia econômico-financeira; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – proteção ao meio ambiente; VII – redução das desigualdades econômico-sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – integração com a região do entorno do Distrito Federal; X – fomento à inovação, dando-se prioridade à pesquisa em desenvolvimento científico e tecnológico superior e, principalmente, ao ensino técnico profissionalizante. Assegura a Carta Distrital ser assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Também no artigo 159 da LODF há previsão de ausência do dirigismo econômico ao estabelecer que o Poder Público só participará diretamente na exploração da atividade econômica nos casos previstos na Constituição Federal e, na forma da lei, como agente indutor do desenvolvimento socioeconômico do Distrito Federal, em investimentos de caráter estratégico ou para atender relevante interesse coletivo.
A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias, repete a LODF nos parágrafos 1º e 2º estabelecem que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais que não sejam extensivos às do setor privado. Tal previsão constitucional tem por finalidade atingir a igualdade de competição no mercado de trabalho e tal princípio “não só consagrado na Lei Fundamental brasileira mas próprio à concepção mesma de Estado de Direito, a isonomia constitui “pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental”.”[7]
Conforme antevisto, o princípio da igualdade é direcionado a todos os Poderes da República e também é de importância ímpar, pois impede a prática de concorrência desleal[8] entre as empresas públicas e sociedades de economia mista – por intermédio de várias benesses entregues sob o mote do “superior interesse público”, “razões de Estado” ou expressões similares – em detrimento da iniciativa privada, com o esmagamento do capital de origem particular, com impactos nefastos à livre concorrência que, no linguajar de Miguel Reale configura-se como “o ‘princípio econômico’ segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de ato cogente da autoridade administrativa, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado”.[9] Por isso deve existir igualdade entre as empresas públicas e sociedades de economia mista e as demais pessoas jurídicas de direito privado, expressão genuína do exercício da livre concorrência.
Na hipótese de o Estado afrontar a Constituição Federal e criar preferencias, benefícios, prerrogativas ou privilégios as empresas públicas e sociedades de economia mista diversos das balizas previstas e recalcitrem no sujeitar-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, possibilita a criação de um imenso passivo obrigacional, em especial o de ordem trabalhista. A edição de Leis que impedem a aplicação do regime privado para a jornada de trabalho de jornalistas[14], médicos[15], pesquisadores[16] e advogados[17] indicam tal afirmativa.
Nesse contexto, não perdeu tempo o Poder Executivo Federal para criar distinções não admitidas pela Constituição Federal e ferir de morte a determinação constitucional que veda que empresas públicas e sociedades de economia mista que atuem em regime de livre concorrência venham a gozar de benefícios inexistentes a iniciativa privada e com o claro intuito de esvaziar os comandos constitucionais.
Tal conduta proibida pela Constituição Federal foi logo driblada com a edição da Medida Provisória 1522-2/96 que retirava dos advogados de empresas públicas e sociedades de economia mista, de forma generalizada, as disposições insertas no Capítulo V, Título I, do EOAB; a Medida Provisória foi atacada pela ADI 1552 que acabou sendo extinta por perda superveniente do objeto.
Sem perder tempo, o Poder Executivo editou a Medida Provisória 1595-14/1997 que foi convertida na Lei 9.527/1997 que dispôs: “Art. 4º As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista”. O dispositivo que afasta o regime do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – Capítulo V – foi novamente atacado em ação direta de inconstitucionalidade, número 3396, que questiona a supressão de tais direitos dos advogados-empregados públicos.
Outro exemplo que faz letra morta da inteligência da Constituição Federal é o disposto no inciso I, do artigo 2º da Lei de Recuperação de Empresas e Falência, ao prever que tal lei não se aplica às empresas públicas e sociedades de economia mista, ainda que atuem em regime de livre concorrência no mercado.
As disposições legais acima mencionadas são patentemente inconstitucionais, pois criam ou elastecem benefícios, privilégios e prerrogativas do Poder Público para as empresas públicas e sociedades de economia mista, ainda que não sejam prestadoras de serviços públicos, fato extraordinário que autorizaria, consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, afastar-se dos princípios e regras aplicáveis a todas as empresas que atuem na exploração do mercado.
No primeiro exemplo decerto pretendeu o legislador criar, artificialmente, uma justificativa para afastar as empresas públicas e as sociedades de economia mista, ainda que em regime de livre competição no mercado, dos encargos e ônus decorrentes do regime jurídico dos advogados privados e agindo para afastar das aludidas instituições aquilo que não convém no íntimo dos governantes, criando dois pesos e duas medidas e esquecendo que há um princípio lógico do determinismo, no sentido de que “ou uma coisa é ou não é. Inexiste espaço para mesclagem e conclusão sobre uma terceira situação jurídica”.[10]
Não há o menor sentido a edição de normas jurídicas que visam a retirada dos ônus, obrigações, deveres e responsabilidades das empresas públicas e sociedades de economia mista que exerçam atividade econômica não-monopolista, por força normativa constitucional, criando distinções (=privilégios) que não são autorizadas pela Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal já deixou assentado em sua jurisprudência que os “privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas”[11] não se mostrando legítima ou razoável as disposições contidas no artigo 4º da Lei 9.527/1997, pois viola o princípio da igualdade que deve existir entre o segmento privado e o público, criando uma competição desigual no mercado, pois afastado pela Lei o equilíbrio. Inexiste razão constitucional para manutenção dos termos do artigo 4º da Lei 9.527/1997, pois “Para que a discriminação não importe em ofensa ao princípio da igualdade, deve existir “um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”.[12]
As empresas públicas e as sociedades de economia mista que não prestem serviço público stricto senso, a míngua do que dispõe o famigerado artigo 4º da Lei 9527/1997, devem ser submetidas ao regime próprio das empresas privadas, não havendo se falar em afastamento do regime jurídico dos advogados, bem como de qualquer outro empregado.
Todas as sociedades empresárias, nesse contexto, devem ser tratadas de forma igualitária, pois do contrário seria contemporizar com uma discriminação odiosa, o que é vedado por lei. Desta forma, os “privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (ELETRONORTE) não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição)”.[13]