3-O CRIME DE BIGAMIA: BEM JURÍDICO TUTELADO E (I)LEGITIMIDADE FRENTE ÀS MUTAÇÕES DO “DIREITO DAS FAMÍLIAS”
3.1-O BEM JURÍDICO PENAL COMO LIMITE AO DIREITO PUNITIVO
A partir do reconhecimento do chamado “Princípio da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos” pelo Direito Penal, não mais é possível admitir a promoção de uma determinada conduta em infração penal se tal opção político – criminal não estiver amparada na tutela de um bem jurídico com dignidade penal.
De acordo com essa concepção, reinante no Direito Penal hodierno, o Direito Penal não é instrumento adequado para tutelar a moral, funções administrativas governamentais, alguma ideologia ou religião, entre outras coisas, mas, exclusivamente, “os bens jurídicos mais relevantes”.[16]
Conforme ensinamento de Estefam e Gonçalves, pode-se atribuir a Feuerbach, considerado por muitos como o “pai do Direito Penal Moderno”, a originalidade da visão, centrada numa concepção contratualista, segundo a qual o crime seria encarado como “uma ofensa a um direito subjetivo individual”. No seguimento, Birnbaum teria recuperado tal tese, defendendo, contudo, que não seria missão do legislador a criação de bens jurídicos, mas apenas a função de sua garantia. Por seu turno, Binding, em finais do século XIX, leva a questão ao patamar onde hoje se acha, postulando que cabe ao Direito Penal tutelar bens jurídicos. De acordo com Binding, “o bem seria o interesse juridicamente tutelado e a norma o meio (eficaz) para sua proteção, em face da ameaça de pena”.
Restava, porém, determinar o que seria exatamente um “bem jurídico”, e mais, quais bens jurídicos teriamdignidade de proteção por intermédio do Direito Penal. Franz vonLizst, no começo do século XX, afirma que os bens jurídicos seriam “interesses juridicamente protegidos”, seja de caráter individual ou coletivo. O conceito de Lizst é submetido à crítica, especialmente tendo em consideração a dificuldade de determinar de forma genérica e cabal quais seriam os interesses humanos dignos de proteção penal. Seria necessário buscar um critério mais objetivo e menos variante para a orientação da dogmática.
No seio do neokantismo, Mayer e Honig, na primeira metade do século XX, sustentam que é o legislador quem “cria” os bens jurídicos de acordo com as circunstâncias e conveniências culturais e sociais em que se acha imiscuído. Não havia ainda, contudo, uma noção clara do bem jurídico penal como um limitepara a produção de normas penais. Já com o finalismo, tendo como grande expoente, na década de 1930, Hans Welzel, continua prevalecendo a função do Direito Penal de tutelar bens jurídicos, mas já surge uma preocupação com o delineamento de limites quanto à atividade do legislador na seleção desses bens considerados dignos de proteção penal. Ali já se aponta a necessidade de que, para merecer a tutela específica do Direito Penal, um bem jurídico deve ser “vital” para a coletividade ou para os indivíduos.
Atualmente, no bojo do século XXI, impõe-se uma concepção “constitucionalista do Direito Penal, com suas características de subsidiariedade e fragmentariedade. Dessa maneira, o bem jurídico não pode deixar de ser “a expressão de um valor constitucional”. [17]
Percebe-se que o nascimento do conceito de bem jurídico, assim como todo seu desenvolvimento, apontam para uma finalidade de limitação e não de legitimação ou fundamentação genérica com relação ao “ius puniendi” estatal. [18] Trata-se de um conceito “negativo”, que visa conter a arbitrariedade ou a subjetividade do legislador no momento da criação de tipos penais. [19]
Não obstante se tenha, já hoje, clara a noção de que o bem jurídico serve como limite ao poder de punir estatal, e que esse limite deve ser buscado nas normas constitucionais a indicarem quais são os interesses coletivos e individuais dignos de proteção, há que destacar o escólio bem posto de Paschoal, quanto ao fato de que é preciso adicionar a tudo isso a observação de que um bem jurídico deve ser objeto de proteção penal, não somente porque esteja previsto como um interesse social ou individual na Constituição, mas porque, de acordo com a proporcionalidade, a subsidiariedade e a fragmentariedade, seja necessária a proteção especificamente criminal daquele bem. E suas palavras:
“Eventual necessidade de tutela penal não pode resultar de uma análise meramente formal, ou seja, não é razoável propugnar que o legislador está obrigado a criminalizar exclusivamente em função do reconhecimento de um determinado bem jurídico (ou direito fundamental) por parte da Constituição Federal, mas, sim, em razão da carência efetiva de tutela de tal natureza”. [20]
O autor lusitano Figueiredo Dias também aponta para a conformação “subsidiária (ou de ‘ultima ratio’) de bens jurídicos dotados de dignidade penal”. Destaca, entretanto, que essa noção do que seja efetivamente um bem jurídico penal, muito embora básica para a configuração do Direito Penal hodierno, não ensejou, até agora, uma determinação nítida e segura (e pode ser que nunca venha a ter essa característica de segurança ou determinação). Há ingente dificuldade em tornar a noção de bem jurídico penal um “conceito fechado e apto à subsunção”, com capacidade de delineação, afastada qualquer dúvida razoável, de uma ”fronteira entre o que legitimamente pode e não pode ser criminalizado”.[21]
Contudo, é fora de qualquer dúvida o fato de que atualmente não é concebível a criação, ou mesmo a manutenção, de condutas incriminadas sem que haja a possibilidade de identificar um bem jurídico a ser tutelado por meio da repressão criminal.
3.2-O BEM JURÍDICO TUTELADO NO CRIME DE BIGAMIA: BREVE EXCURSO PELA DOUTRINA
O crime de Bigamia, previsto no artigo 235, CP, está localizado no Título VII – Dos Crimes Contra a Família, Capítulo I – Dos crimes contra o casamento. A família e, por consequência, o casamento, bem como outras formas de constituição da família (v.g. união estável), são dotados de dignidade constitucional, conforme disposto no artigo 226 e parágrafos, CF. Por isso, desde logo, Celso Delmanto e outros, vislumbram no crime de bigamia legitimação constitucional pela proteção da “organização da família”.[22]
Segundo Nucci, o interesse estatal tutelado no crime de bigamia seria a “preservação do casamento monogâmico”. [23]
Na mesma toada, o ensinamento de Damásio, ao aduzir que no crime de bigamia, “a lei penal tutela a ordem jurídica matrimonial, assentada no princípio do casamento monogâmico". [24]
Para Greco, o bem juridicamente protegido na bigamia seria “a instituição do matrimônio, relativa ao casamento monogâmico”, embora também não se deixe de proteger “a família” (grifos no original). [25]
Bitencourt aponta como bem jurídico tutelado na bigamia o interesse estatal na proteção da organização jurídica do matrimônio, tendo em destaque o chamado “princípio monogâmico”, que “é adotado, como regra, nos países ocidentais”. [26]
Finalmente apresenta-se o escólio de Mirabete e Fabbrini:
“Com a incriminação da bigamia protege-se, como objeto jurídico, no âmbito geral da organização familiar, o casamento monogâmico, regra na quase totalidade dos países da civilização cristã ocidental. A poligamia, e nesta a poliandria, atacam a ordem jurídica nas suas fundamentais exigências referentes às formas de convivência social estabelecidas pelos termos culturais vigentes”. [27]
Considera-se desnecessária a exposição de mais manifestações doutrinárias acerca do bem jurídico tutelado pelo crime de bigamia, podendo-se afirmar, com segurança, que é consenso tratar-se da proteção da família e do casamento monogâmico.
3.3-BIGAMIA E BEM JURÍDICO TUTELADO EM FACE DA LEGITIMAÇÃO JURÍDICA DE UNIÕES POLIAFETIVAS
Como já frisado na introdução do presente trabalho, independentemente das convicções morais dos autores e de qualquer pessoa, fato é que está em andamento uma dinâmica alteração e ampliação do conceito de família no Brasil e no mundo ocidental em geral. Trata-se de fato empírico que não comporta ser ignorado pelo mundo jurídico, sob pena de que esse mundo jurídico torne-se alienado e estéril diante da realidade que se lhe impõe. É evidente que essa alteração do conceito de família tem direta influência na noção e no regramento da instituição do casamento civil, bem como no reconhecimento das mais diversas formas de uniões estáveis.
Como adverte Cruet, não se pode aderir à “ilusão do legislador” de que pode “criar todo o direito” e nem à “ilusão do juiz que quer tirar todo o direito da lei”. [28]
É bem verdade que, como aduz Goyard – Fabre, o mundo do Direito tem uma face autopoiética, tal qual bem demonstraram Willke e Luhmann, apropriando-se do conceito de autopoiese,criado na década de 1970, pelos biólogos Francisco Varela e Humberto Maturana, para se referirem à capacidade de sistemas biológicos fechados produzirem-se a si mesmos.[29]Efetivamente o Direito se autoproduz, mas isso não lhe concede o apanágio de ignorar ou desprezar o contexto em que se encontra inserido. Como bem destaca Neves, o autopoiese do Direito encontra limites no fato de que também sofre influências externas em sua conformação, fenômeno este que o autor denomina de “alopoiese”. A “alopoiese” incapacita o Direito com relação a uma “autoprodução consistente ou fechamento operativo”, ou seja, não pode se manter infenso às influências filosóficas, sociais, econômicas etc.[30]
No que tange ao casamento e às uniões estáveis, já vimos o reconhecimento da homoafetividade. Como já demonstrado neste texto, embora haja entendimentos de que a questão da homoafetividade teria nuances importantes que a distinguiriam das uniões poliafetivas, e que seriam fatores impeditivos de um mesmo percurso evolutivo, é perfeitamente imaginável, e até mesmo prognosticável, que as uniões poliafetivas hetero e homoafetivas acabem, com o tempo, ganhando terreno em termos de reconhecimento jurídico, sendo, inclusive, capazes de ensejar alterações no próprio conceito de casamento exclusivamente monogâmico, conforme previsto no Código Civil e tutelado penalmente pelo Código Penal.
A questão sobre a distinção entre “requisitos de validade” e “elementos de existência” do ato jurídico pode, perfeitamente, ser contornada por uma interpretação conforme a Constituição e, especialmente, por uma alteração legislativa no nível ordinário, ajustando o Direito posto à realidade social.
Nesse quadro de possibilidades não é desprezível a hipótese de que, num futuro, as uniões estáveis poliafetivas sejam permitidas e reconhecidas e que, num segundo passo, alterações legislativas ampliem a possibilidade do casamento para o modelo poliafetivo ou poligâmico.Como já visto neste trabalho, o chamado “Princípio Monogâmico” não tem assento constitucional, sendo fruto da regulamentação do casamento no nível da legislação ordinária.
Nessa situação, em que se considerem legais as uniões poliafetivas e também o casamento poligâmico, a alteração dos conceitos civis necessariamente afetará a questão penal no que tange à incriminação da bigamia. Na verdade, o reconhecimento inicial das uniões estáveis poliafetivas, já começará a minar a legitimidade das proibições civis do casamento restrito ao modelo monogâmico e, consequentemente, também iniciará uma erosão quanto à legitimação da punição criminal da bigamia.
Ao reverso do que propõe Simão, para quem a admissão da poligamia, como uma forma de família legítima, dependeria de revogação do Código Penal (Crime de Bigamia) e do Código Civil (impedimento e nulidade), [31] na realidade, seria a mudança social e de costumes que influenciaria na deslegitimação da legislação antes referida e provocaria sua alteração.
É preciso atentar para a observação de Hironaka em uma abordagem transdisciplinar entre o Direito Civil e o Direito Penal quanto à proteção da família:
“Os mecanismos do Direito Penal postos à disposição da asseguração desta proteção incumbida ao Estado, portanto, devem ver e entender o conceito de família tal qual ele se apresenta hoje, reescrito em múltiplos modelos, para além do tradicional modelo matrimonializado e patriarcalista, como por exemplo, a família informal, a família monoparental, a família anaparental, a família hetero ou homoafetiva, a família biológica ou socioafetiva, a família mosaico ou reconstituída, entre tantos outros arranjos familiares. Esta é a nova feição da família: plural, democrática, igualitária, afirmando-se o seu caráter instrumental e tornando-se meio de promoçãoda pessoa humana, à busca de seu projeto pessoal de felicidade. A família eudemonista, enfim”. [32]
Com fulcro numa interpretação segundo a Constituição, já é possível, na atualidade mesmo, encontrar entendimentos que deslegitimam, desde logo, o crime de bigamia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a defesa do reconhecimento das uniões poliafetivas. Neste sentido Vecchiatti:
“Dessa forma, considerando que o princípio da igualdade veda diferenciações jurídicas desprovidas de fundamentação lógico-racional que as justifiquem com base nos critérios diferenciadores erigidos, entendemos ser inconstitucional a criminalização da bigamia (art. 235 do Código Penal) e também inconstitucional o impedimento matrimonial ao casamento civil entre pessoas casadas (artigo 1.521, VI, do Código Civil), por inexistente motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento jurídico às famílias conjugais poliafetivas que não gerem a opressão de um cônjuge relativamente ao(s) outro(s)”.[33]
Sob o prisma penal e de acordo com o “Princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos”, a admissão de uniões poliafetivas por si só, com a consequente erosão da monogamia como modelo familiar, ou mais, com a alteração das regras do casamento, admitindo-se a poligamia, restaria totalmente dizimada a legitimação da incriminação da bigamia. Afinal, o bem jurídico tutelado teria simplesmente desaparecido do contexto social e até mesmo jurídico. A família poligâmica seria admitida e também as uniões estáveis e o casamento poliafetivo. Dessa forma, os bens jurídicos apontados hoje pela doutrina de forma consensual se desvaneceriam totalmente.
Outro princípio constitucional limitador do direito de punir estatal entraria em jogo. Trata-se do “Princípio da Alteridade ou da Transcêndência”, bem delineado por Feinberg ao chamá-lo de “HarmPrinciple” e dividi-lo em “Harmtoothers” e “Offensetoothers”, distinguindo-os de “Harmto self” e Harmlesswrongdoing e deixando bem evidenciada a diferença entre o dano ou a ofensa a terceiros, o dano a si próprio e a conduta simplesmente imoral.[34] Fato é que a partir do momento que sejam reconhecidas as uniões poliafetivas, e até mesmo o casamento, essa opção somente dirá respeito aos envolvidos, não havendo interesses de terceiros tuteláveis. Qualquer espécie de reprovação à conduta terá caráter moral, o que não pode ser objeto de repressão jurídico – penal.
Com o esvaziamento do bem jurídico tutelado pelo crime de bigamia na atualidade, em eventual mudança do quadro na área cível, também passará tal ilícito a infringir o “Princípio da Lesividade, da Ofensividade ou do Direito Penal do Dano”, uma vez que passaria a constituir uma conduta incriminada sem que houvesse lesão a qualquer bem jurídico ou interesse jurídica e socialmente digno de tutela. Na realidade, a incriminação da bigamia configuraria uma desarmonia sistemática entre o que se entenda por ilícito civil e ilícito penal, sendo inadmissível que algo que seja considerado lícito nos campos civil ou administrativo, possa ser, ao mesmo tempo, um ilícito penal. De acordo com a lição de Figueiredo Dias:
“As causas de justificação não têm de possuir caráter especificamente penal, antes podem provir da totalidade da ordem jurídica e constarem, por conseguinte, de um qualquer ramo do direito. Esta verificação (...) é compreensível e, ao menos numa larga medida, indiscutível: se uma ação é considerada lícita (conforme ao ‘direito’) pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude – ou ausência de ilicitude – tem de impor-se a nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um ilícito penal”.[35]E prossegue o autor, apresentando, em reforço, a formulação de Merkel: “sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível”. [36]
Observe-se que o antigo crime de adultério sofreu revogação, mesmo permanecendo como ilícito civil por violação do dever de fidelidade inerente ao casamento. O que dizer então, em um projetado futuro em que as uniões poliafetivas e, quiçá, os casamentos poligâmicos sejam admitidos, com relação ao atual crime de bigamia? As razões que apontavam para a eliminação do adultério como crime, permanecendo apenas como ilícito civil, se multiplicam imensamente no que diz respeito à questão da poliafetividade.
É claro que a bigamia, ou poligamia, que se imagina aceitável diante de uma nova ordem como lícita sob os prismas civil e penal, seria, necessariamente, aquela em que todos os envolvidos têm plena ciência das circunstâncias da união e a aceitam. A bigamia, por exemplo, às ocultas de um dos envolvidos ou de mais de um deles – assemelhando-se às “famílias paralelas” -, certamente viola o dever de “lealdade”, de forma que poderia subsistir como ilícito penal, ou somente civil, em uma nova ordem. O que nos parece é que, tal qual o adultério, essa espécie de violação do dever de “lealdade” no casamento ou união estável poliafetivos deveria reduzir-se a mero ilícito civil, tal qual hoje ocorre com o adultério. A diferença seria que para quem optasse pelo casamento ou união estável monogâmicos, haveria o ilícito civil por violação do dever de “fidelidade”, enquanto que no casamento ou união estável poligâmicos, o ilícito civil decorreria da infração à “lealdade”.