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Dano qualificado e os carimbadores malucos

10/05/2018 às 10:30
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Discute a questão dos carimbos, em cédulas, constando "Lula Livre", bem como carimbos sobrepostos e eventual configuração dos crimes de dano qualificado e de apologia de criminoso.

Com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio da Silva, conhecido como “Lula”, surgiu um movimento em que pessoas vêm carimbando cédulas de dinheiro nacional com um rosto simbolizando o mencionado político e os dizeres “Lula Livre”.

Doutra banda, em reação, opositores já sugerem a aposição de um carimbo sobreposto com uma grade e também, para determinados grupos, a inscrição de “Bolsonaro 2018”, em alusão a candidato à presidência.

Tem sido questionado se tais condutas não configurariam o crime de “Dano Qualificado”, nos estritos termos do artigo 163, Parágrafo Único, III, CP, já que o papel-moeda seria pertencente ao Banco Central e, portanto, configuraria patrimônio da União, na medida em que cédulas rabiscadas, alteradas etc. teriam de ser trocadas com despesas ao erário.

De acordo com Botelho:

“A moeda pertence à União e o seu valor intrínseco ao particular, nos exatos termos dos artigos 98 e 99 do Novo Código Civil. Assim, se a própria pessoa rasga, suja, destrói, inutiliza, papel-moeda ou metálica, ainda que seja de sua propriedade estará configurado o crime de dano qualificado, previsto no artigo 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal Brasileiro.”. [1]

No mesmo sentido se pronuncia Alcântara, valendo-se, ainda, das lições de Heleno Fragoso:

“Rasgar dinheiro é crime (destruição, inutilização), riscar dinheiro ou escrever em nota também é crime (deterioração). Se  o próprio agente (particular), rasga, suja, inutiliza ou destrói (uma cédula de dinheiro pode ser destruída literalmente pondo fogo sobre ela, por exemplo), papel-moeda ou metálico, ainda que seja de sua propriedade,  configura-se o crime de dano qualificado, previsto no artigo  163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal, segundo a doutrina majoritária. A pena para o delito é de detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Na lição de Heleno Fragoso, “dano é a alteração prejudicial de um bem; a destruição ou diminuição de um bem; o sacrifício ou restrição de um interesse jurídico.” (Lições de direito penal: a nova parte geral, 1985, p. 173). [2]

Entretanto, segundo notícias veiculadas na imprensa, recentemente, o Banco Central informou que as notas carimbadas podem ser recebidas e circular como outras quaisquer. O órgão informou que o ato de rabiscar ou carimbar notas não é recomendável, mas não invalida o papel-moeda, nem ocasiona perda de seu valor nominal. [3]

Outra afirmação corrente é a de que os comércios e a rede bancária poderiam simplesmente se negar a receber tais cédulas carimbadas. Isso, não somente devido à informação já exposta pelo Banco Central, mas também por causa da legislação brasileira da economia popular e do consumo, não é viável. As notas carimbadas têm de ser aceitas normalmente, sendo ilícita a sua recusa por quem quer que seja.

A recusa de recebimento de moeda em curso legal no país constitui Contravenção Penal prevista no artigo 43, LCP.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), em seu artigo 39, IX, impede a recusa de venda de bens ou prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los, mediante pronto pagamento. E ainda constitui crime contra a economia popular, previsto no artigo 2º., I, da Lei 1521/51 a recusa individual, em estabelecimento comercial, à prestação de serviços essenciais à subsistência, a sonegação ou recusa de venda de mercadoria a quem esteja em condições de comprar a pronto pagamento. Não bastasse tudo isso, também pode haver crime contra as relações de consumo, conforme consta do artigo 7º., VI, da Lei 8.137/90, na conduta da negação de insumos ou  bens, com recusa de venda a quem pretenda fazer a compra em condições ofertadas publicamente. [4]

Não obstante, as cédulas adulteradas por rabiscos, carimbos ou outras modificações deverão ser recolhidas pela rede bancária quando do depósito e encaminhadas ao Banco Central para destruição. [5] Isso é determinado conforme artigo 10 da Lei 8.697/93:

“Toda cédula que contiver marcas, rabiscos, símbolos, desenhos ou quaisquer caracteres a ela estranhos perderá o poder liberatório e o curso legal, valendo apenas para ser depositada ou trocada em estabelecimento bancário, que a recolherá ao Banco Central do Brasil para destruição”.

Em complemento, a Carta – Circular 3235/06, classifica como “cédulas dilaceradas” aquelas “inadequadas à circulação que apresentarem”: “caracteres estranhos (marcas, desenhos, rabiscos, carimbos etc.)” (grifo nosso – itens 2 e 5). Em seu item 10, a citada Carta Circular dispõe:

  “Quando da apresentação de cédulas dilaceradas pelo público, as instituições financeiras bancárias deverão considerá-las inadequadas para a circulação e substituí-las por seu valor integral ou acatá-las em pagamentos ou depósitos e, posteriormente, encaminhá-las - separadas das demais - para troca junto à Instituição Custodiante”.

Importa, ainda, destacar que o anexo à Carta – Circular 3235/06, que foi atualizado pelo novo anexo da Carta – Circular 3373/09, indica que as cédulas “dilaceradas” possuem valor para troca, ou seja, conforme informado pelo Banco Central, podem ser usadas e devem ser aceitas no comércio, somente devendo ser recolhidas para destruição pelo Banco Central e substituição quando apresentadas às instituições financeiras.

De acordo com o exposto, é possível concluir que as notas carimbadas não perdem seu valor e podem circular até o momento em que cheguem a uma instituição bancária, quando deverão ser recolhidas e encaminhadas para destruição pelo Banco Central, que as substituirá. Assim sendo, não podem ser recusadas pelo comércio nem por ninguém, de acordo com as normas já mencionadas anteriormente, podendo configurar, inclusive, infrações penais, tal recusa injustificada.

É claro que a alegação de que quem apresentar tais notas no banco estará sujeito até mesmo a uma prisão em flagrante por dano qualificado não procede, pois é mais que óbvio que o fato de portar a nota não significa ter sido quem a rabiscou, carimbou, adulterou etc.

Entretanto, realmente, a conduta de apor carimbo, rabiscar, adulterar notas de dinheiro constitui dano qualificado, mesmo que isso seja feito por quem é o dono do dinheiro, isso porque o que pertence ao particular é o valor representado pela cédula, não a cédula em si, a qual, com a classificação de “dilacerada”, acabará sendo encaminhada a destruição e substituição com evidente dano ao patrimônio público. Portanto, se alguém for flagrado carimbando, riscando, rasgando cédulas monetárias, aí sim poderá ser preso em flagrante, ou, se for identificado como autor dessas adulterações no papel-moeda, poderá responder a processo criminal pelo mesmo ilícito penal. A avaliação do dano não será aquele valor da cédula, mas o gasto, a ser pesquisado junto ao Banco Central, para a emissão das cédulas prejudicadas que deverão ser substituídas.

Note-se que havendo a aposição do carimbo de “Lula Livre” já estará consumado o crime, mas também haverá novo crime quando for aposto novo carimbo, por exemplo, com uma grade e, eventualmente, a inscrição “Bolsonaro 2018”, pois é evidente que o fato de que um bem já tenha um dano, não impede que esse dano seja agravado ou intensificado.

O dano estará caracterizado no verbo “inutilizar”, que significa tornar a coisa “inútil, imprestável, inidônea total ou parcialmente, ainda que por tempo determinado”. [6] Observe-se que a cédula poderá circular temporariamente, conforme instrui o Banco Central, mas acabará sendo recolhida e considerada imprestável, submetida à destruição e substituição com prejuízo ao erário, de acordo com as normas que regulam a circulação do papel-moeda no Brasil. No mesmo sentido, indica Mehmeri que “inutilizar” significa “tirar da coisa a utilidade a que ela se destina, torná-la imprestável”. [7] A verdade é que o agente “inutiliza” a cédula de acordo com as normas ao torná-la classificável como “dilacerada” e, depois, acaba ocasionando sua “destruição” pelo próprio Banco Central, também de acordo com as normas legais e regulamentares que disciplinam a circulação do papel-moeda no país.

Anote-se ainda que se alguém, depois de devidamente recolhida uma ou várias cédulas pelas instituições financeiras, de alguma forma, as recolocar em circulação, incidirá no crime previsto no artigo 290, CP (“Crimes assimilados ao de moeda falsa”). [8]

Tudo isso está a indicar que a conduta de apor carimbos, rabiscar ou adulterar de qualquer forma com caracteres estranhos, nota ou cédula monetária constitui crime de dano qualificado.

Há ainda que indagar, no caso do ex – presidente “Lula”, se não incorreria também o infrator em crime de “apologia de criminoso”, conforme consta do artigo 287, CP. Afinal, há condenação criminal e está o político em cumprimento de pena.

Neste caso, a resposta nos parece ser necessariamente negativa. Ainda que o político tenha sido condenado e esteja em cumprimento de pena, não se vislumbra no militante político o dolo necessário à configuração do crime de apologia de criminoso, mas claramente o exercício democrático de expressão do pensamento e convicção, bem como exercício de crítica. O único problema é o meio escolhido, que seria um limite a essa liberdade de expressão que, obviamente, não permite que se perfaça mediante danos ao patrimônio público e à custa de toda a população brasileira. O mesmo se pode dizer daqueles que ali apõem as grades e, eventualmente, a inscrição “Bolsonaro 2018”.

Nesse caso, tal pessoa não está condenada e nem cumprindo pena, portanto inviável sequer a formulação da hipótese de infração ao artigo 287, CP. Mas, novamente, embora se trate de uma conduta que é abrigada pela liberdade política e de expressão do pensamento e crítica, sequer podendo se pensar em eventual crime contra a honra, padece do mesmo óbice limitativo, pois que essa expressão não se pode dar, da mesma forma, com dano patrimonial público e oneração de toda a população brasileira.

Retornando ao caso do político “Lula”, é preciso ter em mente que a apologia se configura com manifestação elogiosa “de um fato criminoso ou do seu autor”. O intento do agente deve ser a aprovação do fato ou do autor, a exaltação do crime ou de seu praticante ou de ambos. Não havendo referência elogiosa à prática criminosa ou à pessoa na condição de criminosa, não é possível cogitar da configuração do artigo 287, CP. [9] É importante reconhecer que aqueles que criticam a condenação de “Lula”, criticam a condenação, em seu entendimento, de um inocente, não fazem a exaltação de um criminoso, ao menos em seu entendimento. Justo ao contrário, afirmam sua inocência e a injustiça de sua prisão. Não importa aqui discutir se estão certos ou errados, o que releva é o fato de que não fazem, em momento algum,  apologia do crime ou de criminoso. Subjetivamente atuam com a convicção de defender um inocente injustiçado, estejam certos ou enganados. Lembrando Heleno Fragoso, Delmanto esclarece que “a simples manifestação de solidariedade, defesa ou apreciação favorável, ainda que veemente”, não configura apologia, “não sendo punível a mera opinião”. [10]

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Como visto, o problema não está no conteúdo de uma ou outra manifestação, seja a favorável a “Lula”, seja a contrária, seja a favorável ao candidato “Bolsonaro”. O problema se acha no meio escolhido para essa manifestação, o qual extrapola os limites a que se submete todo direito individual que, em geral, é relativo. No caso, como visto, a liberdade de expressão, a liberdade política, a liberdade de pensamento e manifestação, não podem se concretizar mediante o prejuízo causado ao erário, que, aliás, não é sustentado somente por afiliados a um ou outro político brasileiro, mas por toda a população.

Por fim, não se pode deixar de consignar que, embora não seja crime nem se considere imoral ou ilegal de qualquer forma a defesa dos cidadãos a políticos nacionais (dentro de certos limites, conforme exposto), essas e outras condutas, para além das questões criminais implicadas, são altamente desaconselháveis, especialmente considerando o nível de praticamente todos os envolvidos na política nacional. Fica a cada um a tarefa de decidir sobre sua conduta no exercício da cidadania e direitos políticos, de expressão etc., mas realmente parece ser de uma estultice muito grande perder tempo defendendo ou fazendo propaganda para qualquer político brasileiro.

Será que homens e mulheres deste país não têm uma louça na pia para lavar ou um terreno com mato para capinar? Garante-se que essas seriam ações bem mais úteis do que perder tempo precioso, defendendo este ou aquele político, seja ele quem for. Aliás, eles, ao contrário de muitos brasileiros que neste momento estão sendo processados, têm muitos recursos para contratarem as melhores assistências jurídicas imagináveis a preços que a imensa maioria dos brasileiros jamais angariará em toda uma vida de trabalho honesto.


REFERÊNCIAS       

ALCÂNTARA, Jesseir Coelho de. Rasgar ou escrever em dinheiro é crime? Disponível em  www.policiacivil.go.gov.br , acesso em 05.05.2018.

 BANCO Central derruba “fake News”: notas com “Lula Livre” não perdem a validade. Disponível em www.revistaforum.com.br , acesso em 05.05.2018.

BOTELHO, Jéferson. Rasgar papel moeda é crime ou apenas um ato de loucura? Disponível em www.conjur.com.br , acesso em 05.05.2018.

CAMARGO, Thayla. É proibido recusar atendimento ao consumidor. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 05.05.2018.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. COSTA, Fernando José. Curso de Direito Penal. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.

MEHMERI, Adilson. Noções Básicas de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000.


Notas

[1] BOTELHO, Jéferson. Rasgar papel moeda é crime ou apenas um ato de loucura? Disponível em www.conjur.com.br , acesso em 05.05.2018.

[2] ALCÂNTARA, Jesseir Coelho de. Rasgar ou escrever em dinheiro é crime? Disponível em  www.policiacivil.go.gov.br , acesso em 05.05.2018.

[3]  BANCO Central derruba “fake News”: notas com “Lula Livre” não perdem a validade. Disponível em www.revistaforum.com.br , acesso em 05.05.2018.

[4] CAMARGO, Thayla. É proibido recusar atendimento ao consumidor. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 05.05.2018.

[5] BANCO Central derruba “fake News”: notas com “Lula Livre” não perdem a validade. Disponível em www.revistaforum.com.br , acesso em 05.05.2018.

[6] COSTA JÚNIOR, Paulo José da. COSTA, Fernando José. Curso de Direito Penal. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 480.

[7] MEHMERI, Adilson. Noções Básicas de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 553.

[8] “Art. 290. Formar cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmento de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros; suprimir, em nota, cédlula ou bilhete recolhidos, para o fim de restituí-los à circulação, sinal indicativo de sua inutilização; restituir à circulação cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já recolhidos para fins de inutilização. Pena – reclusão, de 2 a 8 anos, e multa.

[9] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 1004.

[10] DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 819.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Dano qualificado e os carimbadores malucos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5426, 10 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65929. Acesso em: 2 nov. 2024.

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