INTRODUÇÃO
É de conhecimento geral que, devido à manifestação e greve de vários caminhoneiros em todo o país, com o objetivo de reivindicar e obter melhorias quanto à fixação de preços do combustível, este acabou se tornando escasso para os brasileiros.
Com a falta do combustível e com a extrema necessidade de muitos consumidores em adquiri-los, infelizmente, alguns estabelecimentos comerciais aumentaram, de forma exagerada e injustificada, o preço dos combustíveis, conforme amplamente noticiado nos meios de comunicação.
Nesse sentido, tendo como suporte a interpretação sistemática e teleológica do sistema da ordem econômica e da defesa do consumidor, o presente artigo tem como pretensão demonstrar ao leitor a existência de práticas abusivas decorrentes do aumento injustificado do preço dos combustíveis.
1. DA ORDEM ECONÔMICA
Nos termos do art. 170 da Constituição Federal de 1988, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
O grande constitucionalista Pedro Lenza, de forma brilhante, faz a seguinte observação:
“O constituinte privilegia, portanto, o modelo capitalista, porém, não se pode esquecer da finalidade da ordem econômica, qual seja, assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, afastando-se, assim, de um Estado absenteísta nos moldes do liberalismo.”[1]
Deve ser ressaltado o tamanho da importância que a Carta Magna de 1988 conferiu à ordem econômica, tanto que é a primeira constituição brasileira a tratá-la em título específico (vide título VII da CF/88), sendo desvinculado da ordem social.
Com efeito, é sabido que o Brasil adota o sistema capitalista na ordem econômica, porém não se pode ignorar que tal deverá observar a determinados princípios, entre eles, o da defesa do consumidor.
2. DO DIREITO DO CONSUMIDOR
A defesa do consumidor é, sobretudo, uma imposição constitucional, cuja importância é indiscutível, porquanto, além de ser um direito e garantia fundamental, constituindo-se uma verdadeira cláusula pétrea[2] (limitação material ao poder de reforma constitucional), também é um dos princípios da ordem econômica, cabendo ao Estado o seu efetivo cumprimento, nos seguintes termos constitucionais:
“Art. 5º.
(...)
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;”
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
V - defesa do consumidor;”
Sobre a defesa do consumidor no plano constitucional, o doutrinador José Afonso da Silva faz a seguinte afirmação:
“Realça de importância, contudo, sua inserção entre os direitos fundamentais, com o que se erigem os consumidores à categoria de titulares de direitos constitucionais fundamentais. Conjugue-se a isso com a consideração do art. 170, V, que eleva a defesa do consumidor à condição de princípio da ordem econômica. Tudo somado, tem-se o relevante efeito de legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista.”[3]
No plano infraconstitucional, há a Lei Federal nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), que estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social e dispõe, no seu art. 6º, que são direitos básicos do consumidor, entre outros:
“I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
IX - (Vetado);
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”
3. DO AUMENTO INJUSTIFICADO DO PREÇO DO COMBUSTÍVEIS
3.1 Das práticas abusivas
Não é justo e nem legal, no atual momento de crise econômica e política que o país vivencia, admitir a “lei da procura e da oferta” como justificativa para impor ao consumidor o preço abusivo de combustível e acarretando-lhe onerosidade excessiva. Não é porque o capitalismo reina no Brasil que este poderá se sobrepor ao princípios que regem a ordem econômica, sobretudo, o direito do consumidor.
À luz do sistema da ordem econômica e da defesa do consumidor, não há dúvidas que o aumento injustificado do preço dos combustíveis configura práticas abusivas. Isso porque, ao mesmo tempo, em que gera extrema vantagem indevida ao fornecedor, gera onerosidade excessiva ao consumidor.
Some-se o fato que o consumidor, por sua própria natureza, já é considerado o sujeito vulnerável na relação de consumo, assim como bem define o doutrinador Luis Antonio Rizzatto Nunes, in verbis:
“O consumidor é vulnerável na medida em que não só não tem acesso ao sistema produtivo como não tem condições de conhecer seu funcionamento (não tem informações técnicas), nem de ter informações sobre o resultado, que são os produtos e serviços oferecidos”.[4]
A propósito, ao tratar da vulnerabilidade, Bruno Miragem faz a seguinte explanação:
“A vulnerabilidade do consumidor constitui presunção legal absoluta, que informa se as normas do direito do consumidor devem ser aplicadas e como devem ser aplicadas. Há na sociedade atual o desequilíbrio entre dois agentes econômicos, consumidor e fornecedor, nas relações jurídicas que estabelecem entre si. O reconhecimento desta situação pelo direito é que fundamenta a existência de regras especiais, uma lei ratione personae de proteção do sujeito mais fraco da relação de consumo.”[5]
No que se refere ao conceito de consumidor, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem adotando a Teoria Finalista, segundo a qual considera que o consumidor é o destinatário final, fático e econômico, do produto ou do serviço. Porém, há que se ressaltar que o próprio STJ vem mitigando aquela teoria para também considerar como consumidor aquele que, mesmo não sendo o destinatário final (fático e econômico) do produto e do serviço, mas é o sujeito vulnerável na relação consumerista, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Nesse sentido, senão vejamos:
“A jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando finalismo aprofundado, consistente em se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor. A doutrina tradicionalmente aponta a existência de três modalidades de vulnerabilidade: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). (...) (STJ. REsp 1.195.642-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2012)
O art. 39 do Código Defesa do Consumidor, em rol meramente exemplificativo, cataloga várias práticas abusivas, entre elas, podendo se destacar as seguintes:
“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(...)
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
(...)
X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.”
De se ressaltar também que, segundo o disposto no 51, IV e § 1º, do mesmo diploma legal, são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, sendo esta presumida, por força de lei, quando se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
Portanto, como se vê, é inequívoco que o aumento injustificado do preço do combustível configura as práticas abusivas previstas nos incisos V e X do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor.
3.2 Das possíveis sanções
Por força de mandamento constitucional (art. 173, §§ 4º e 5º, CF/88), a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros e, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Em decorrência do aumento injustificado do preço do combustível, é possível que, nos termos do art. 57 do CDC, haja a aplicação das seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas:
I - multa;
II - apreensão do produto;
III - inutilização do produto;
IV - cassação do registro do produto junto ao órgão competente;
V - proibição de fabricação do produto;
VI - suspensão de fornecimento de produtos ou serviço;
VII - suspensão temporária de atividade;
VIII - revogação de concessão ou permissão de uso;
IX - cassação de licença do estabelecimento ou de atividade;
X - interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade;
XI - intervenção administrativa;
XII - imposição de contrapropaganda.
Vale frisar que o órgão do PROCON (Programa de Proteção e Defesa do Consumidor), no exercício do seu poder de polícia, pode interpretar cláusulas contratuais e, se reputá-las como abusivas, pode, validamente, aplicar as sanções administrativas, tais como acima arroladas. Eis o seguinte julgado do STJ:
“O PROCON, embora não detenha jurisdição, pode interpretar cláusulas contratuais, porquanto a Administração Pública, por meio de órgãos de julgamento administrativo, pratica controle de legalidade, o que não se confunde com a função jurisdicional propriamente dita, mesmo porque "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5º, XXXV, da CF). (...) A sanção administrativa aplicada pelo PROCON reveste-se de legitimidade, em virtude de seu poder de polícia (atividade administrativa de ordenação) para cominar multas relacionadas à transgressão da Lei n. 8.078/1990, esbarrando o reexame da proporcionalidade da pena fixada no enunciado da Súmula 7/STJ.” (STJ. REsp 1.279.622-MG, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 06/08/2015)
Ademais, não se descarta ainda a possibilidade da imposição de sanções penais. Isso porque, a depender do caso concreto, o aumento injustificado do preço do combustível poderá configurar, em tese, os seguintes delitos:
1) Crime contra a ordem econômica previsto no art. 4º, II, “a”, da Lei 8.137/1990, consistente em “formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas”, sujeito à pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa; e
2) Crime contra a economia popular previsto no art. 3º, VI, da Lei 1.521/1951, consistente em “provocar a alta ou baixa de preços de mercadorias, títulos públicos, valores ou salários por meio de notícias falsas, operações fictícias ou qualquer outro artifício, sujeito à pena de detenção de de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988 conferiu grande relevância à ordem econômica, tratando-a em título próprio (título VII). A ordem econômica, por sua vez, deverá garantir a todos uma existência digna e obedecerá a determinados princípios, dentre eles, o da defesa do consumidor.
Embora o Brasil adote o sistema capitalista, este não pode se sobrepor aos princípios que regem a ordem econômica, em especial a defesa do consumidor. O consumidor, por si próprio, já é o sujeito vulnerável na relação consumerista, razão pela qual se impõe a defesa dos seus direitos, tal como previsto no Código de Defesa do Consumidor.
O aumento injustificado do preço dos combustíveis configura prática abusiva no âmbito da relação de consumo, por gerar extrema vantagem indevida ao fornecedor e onerosidade excessiva ao consumidor, conforme o disposto no V e X do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor.
Em consequência de tais prática abusivas, o infrator estará sujeito tanto às sanções de natureza administrativa, nos termos do art. 57 do Código de Defesa do Consumidor, quanto às sanções de natureza penal, nos termos art. 4º, II, “a”, da Lei 8.137/1990 e do art. 3º, VI, da Lei 1.521/1951.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 26 mai. 2018.
____. Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 27 dez. 1951. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L1521.htm>. Acesso em: 26 mai. 2018.
____. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 26 mai. 2018.
____. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 28 dez. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8137.htm>. Acesso em: 26 mai. 2018.
LENZA, PEDRO. Direito Constitucional Esquematizado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
NUNES, Luis Antônio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
STJ. REsp 1.279.622-MG, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 06/08/2015.
____. REsp 1.195.642-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2012.
Notas
[1] LENZA, PEDRO. Direito Constitucional Esquematizado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 1138.
[2] Art. 60, § 4º, IV CF/88: não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 262-263.
[4] NUNES, Luis Antônio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 674.
[5] MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.18.