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Música e segurança pública: A efetividade dos direitos humanos na atuação artística dos órgãos de polícia

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31/05/2018 às 13:30
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4 LAÇOS ETERNOS: UMA VISÃO POLICIAL ACERCA DE DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA

Neste capítulo se pretende demonstrar o entrelaçamento dos direitos humanos e da segurança pública na letra da canção “Laços Eternos”, de autoria de Sua Excelência o Delegado de Polícia, Cloves Rodrigues da Costa. Artista-jurista-policial que oferece através desta música importante contributo para reflexão sobre os temas aqui analisados.

Para um melhor aproveitamento da fruição estética que se intenta ofertar recupera-se as definições de direitos humanos e de segurança pública, pois isso permite um mergulho mais profundo na sagacidade com que o compositor constrói sua poética.

Nestes termos, colaciona-se a definição de direitos humanos de José Augusto Lindgren Alves, in verbis:

direitos inalienáveis de todos os indivíduos, inclusive ladrões, assaltantes, estupradores, sequestradores e assassinos, e só podem, numa democracia, ser suspensos de acordo com a lei. Ao exigirem a observância de tais direitos pelos agentes estatais no exercício de suas funções, entre as quais a de manutenção da ordem legítima, os ativistas de direitos humanos não protegem bandidos; monitoram democraticamente o Estado de Direito, protegendo-o contra abusos de quem atua em nome do poder. E o Estado de Direito se configura, em sua plenitude, mais do que pela realização de eleições livres e pluralistas, pelo exercício diuturno da justiça, em defesa de toda a cidadania. (ALVES, 2013, p. 3, grifo nosso).

Naturalmente o policial é o servidor público que diuturnamente atua em defesa dos direitos das pessoas, é aquele para quem se voltam os holofotes para que não atue com abusos em nome do poder. Contudo, valem alguns questionamentos: Somente o policial? Apenas este trabalhador é destinatário dos direitos humanos? Será que o policial, igualmente, não é vítima de violações de direitos humanos? Na canção “Laços Eternos” encontra-se as respostas.

Vale lembrar, outrossim, que os direitos humanos se materializam, também, com as prestações positivas do Estado, sendo uma delas a segurança pública (ALVES, 2015, p. 104).

A respeito do que seja este atuar positivo no que se refere à segurança pública Denilson Feitoza Pacheco assim se pronuncia:

é a atividade de preservação (dinamicamente) ou a situação (estaticamente) de ordem pública e de incolumidade das pessoas e do patrimônio. A ordem pública pode ser definida como situação de paz e de ausência de crimes. A paz pode ser definida estaticamente como a ausência de violência, processualmente como a identificação e resolução favorável de fenômenos caracterizados por algum tipo de violência, e estruturalmente como capacidade de uma sociedade de tornar visível e resolver favoravelmente os tipos de violência nela existentes. A paz se caracteriza bem melhor como um processo (de identificação e resolução de violência) do que como estado ideal a ser atingido. (2007, p. 176 apud 2008, p. 50-51, em destaque no original, grifo nosso).

Desvelar e revelar uma violência nem sempre visível, a que é suportada pelo policial. Ocorre no contexto da chamada violência estrutural. Ou seja, ensina Fisas (1998) “quando por motivos alheios a nossa vontade não somos o que poderíamos ser ou não temos o que poderíamos ter” (apud PACHECO, 2007, p. 176; PACHECO, 2008, p. 51).

Sabedor de que a finalidade da arte é estimular a consciência (NETO, 2014) o Delegado Cloves Rodrigues da Costa nos dá a conhecer em “Laços Eternos” uma persistente realidade de violência, que, para se avançar na concretização do Estado Democrático de Direito, necessariamente precisa ser superada. Vale dizer, não se trata de atingir um estado ideal onde reina a paz. A situação descrita na canção compromete o próprio caminho, com que se busca a resolução de conflitos criminais. Veja-se.

4.1 Da música “Laços Eternos”

Ao compor “Laços Eternos verifica-se que o objetivo do autor era atingir o maior número possível de pessoas.

À luz da realidade atual percebe-se que um artigo científico jamais teria o mesmo alcance. Isso porque não chegaria ao conhecimento de seus principais destinatários, quais sejam, as pessoas que estão nas periferias, sejam policiais, vítimas, testemunhas e, inclusive, perpetradores.

Daí o insight[22] de criar uma música, mais exatamente, um rap[23]. O ano era 2007. O objetivo foi alcançado![24]

A canção foi executada em rádios do interior do Estado de São Paulo, onde os locutores propunham o seguinte desafio: Quem está cantando? Para os ouvintes foi muito difícil acertar que se tratava de um agente da segurança pública, quanto mais um Delegado de Polícia. Isso porque para muitas pessoas parece sui generis uma autoridade deste jaez enveredar musicalmente por este caminho, o rap.

No entanto, trata-se de verdadeira demonstração de amor, pelo outro! Amor no sentido maturaniano.[25] Evidência de um comprometimento ímpar com a convivência democrática.

“Laços Eternos” é bela no sentido aristotélico do termo. Materializa a mimese. E na medida em que imita a vida, demonstra algo que precisa ser modificado.

Corporifica o absoluto hegeliano. Preenche igualmente um importante requisito. É Hegel quem diz, “a exigência principal que tem de ser feita, no que se refere a um bom texto, consiste no fato de que o conteúdo tenha em si mesmo consistência verdadeira.” (HEGEL, 2002, p. 329, em destaque no original).

E por propiciar a visualização de um quadro que é competentemente enfrentado pelos seguimentos musicais dos órgãos de polícia, transcreve-se na íntegra.

Olha aí sangue bom

Tá chegando os home

Aqui todo mundo é suspeito

Com ou sem sobrenome

Não existe respeito

Se correr o bicho pega

Se ficar o bicho come...

Entre a senzala e a casa-grande

Tinha o capitão do mato

O tempo passou, mas nada mudou

Na real, só o nome do caçador

O nosso antigo perseguidor

É agora o policial...

Depois do dever cumprido

O caçador se disfarça

De opressor volta a ser oprimido

E com medo de ser surpreendido

Tem que morar ao lado da caça...

A lei áurea foi assinada

Mas a liberdade não chegou

Sem emprego e passando fome

O escravo mudou de nome

A senzala virou favela

Tendo o negro por clientela

Enfim, nada, nada mudou...

A sociedade é um grande rio

Que nas margens tem tudo igual

De um lado os excluídos

E do outro o policial...

A arrecadação desse filme

Sempre foi dos grandes senhores

Enquanto nós, às margens do rio,

Somos os descartáveis atores...

Mas quem é quem afinal

Nessa guerra irracional

É violência sem freio

Entre frutos do mesmo meio

Tudo em nome do social...

O capital dita as regras

Acima do bem e do mal

O errado vira certo

Quando morre o marginal...

Mas é bom ficar esperto

Com a hipocrisia social

Muito se fala e pouco se faz

Se quem tomba pela paz

É o trabalhador policial...

Não podemos continuar

Com essa situação

Passando pela vida

Sem aprender a lição...

A mudança pretendida

Não passa pela razão

Elimina bala perdida...

Pra não se repetir

Esse filme de horrores

Vamos resistir

E cultivar nossos valores...

Transmitir nossa alegria

Ao som dos nossos tambores

Sonhando com o grande dia

De trocar as armas pelas flores...

Aqui todo mundo é suspeito

Com ou sem sobrenome

Não existe respeito

Se correr o bicho pega

Se ficar o bicho come...

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Conforme se observa a belíssima letra, ao apontar questões que vão ao encontro da ideia de violência estrutural materializa notável análise sociológica. Insofismável com a recuperação da temática que é objeto de análise de Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”.

É dizer, que até os dias atuais a lógica societal delineada no período da colonização informa os processos de sociabilidades. As classes menos favorecidas produzem e reproduzem os tipos sociais que no teatro da vida real se encarregam de representar dois importantes atores, quais sejam, o delinquente e o policial. Este, não raro, alvo de uma lógica perversa em que o Estado-administração o considera como número. Fenômeno que tem respaldo de parte da sociedade.

Reificado e fungível, é crucificado invariavelmente por movimentos sociais se em seu trabalho, v.g., utilizando legitimamente a força, leva à morte um perpetrador de delitos. Sobre o tema é deveras pertinente o primoroso magistério do Professor e Delegado de Polícia José Pedro Zaccariotto. Musicalmente, em prosa, é verdade, na esteira de Zaffaroni, aludindo à canção “Geni e o Zepelin”, bem como a “ópera do malandro” de Chico Buarque, as palavras do mestre são as seguintes:

acha-se a polícia permanentemente sitiada, de um lado pela revolta do pobre, e de outro pela soberba do poderoso, prestando-se como bode expiatório – uma Geni ao avesso, cantada na verdadeira ópera do malandro – em face de todos os infortúnios que pululam numa sociedade cada vez mais esgarçada por um deletério materialismo, responsável por uma desigualdade e consequente repulsão social sempre crescentes. (2005, p. 255, grifo nosso).

A desconstrução deste estado de coisas exige emancipação humana, para além das ideologias subjacentes aos estratos sociais. A música “Laços Eternos” fornece pistas sobre o caminho a seguir. “A mudança pretendida não passa pela razão”! E “elimina bala perdida”. “Resistir e cultivar nossos valores”.

Segurança Pública com respeito aos direitos humanos, que em hipótese alguma significa afastar a possibilidade de uso da força, quando necessário.

Caminhar para uma condição em que o policial é protagonista de transformações, defendendo de forma inarredável a dignidade humana, pois como nos adverte Luís de Camões,

“a dor costumada não se sente”. O risco das violações aos direitos humanos converterem-se em “dor costumada” deve ser combatido para que não nos habituemos às violências, afinal, alerta o poeta, “o longo uso dos anos se converte em natureza”. (BLAZECK; PAGLIONE, 2014, p. 230, grifo nosso).

Sendo assim, o grande mérito de Cloves Rodrigues da Costa, acredita-se, foi produzir uma reflexão que contribui para consertar o caminho. Fê-lo de forma concertística, na medida em que sua arte se insere no espectro daquilo que Chaïm Perelman define como fundamento de salvaguarda dos direitos humanos, a saber, “o caminho que é o dos progressos da consciência no Ocidente” (2002, p. 408, grifo nosso). O que confere enorme relevância à canção.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAVERO, Bruno Oliveira. Música e segurança pública: A efetividade dos direitos humanos na atuação artística dos órgãos de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5447, 31 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66609. Acesso em: 29 mar. 2024.

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