Audiência de custódia à luz do valor dignidade da pessoa humana

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18/07/2018 às 10:21
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3         AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Visto que a dignidade da pessoa humana é valor fundamental, cumpre verificar se a audiência de custódia é medida imperiosa para concretizar esse valor, assim, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em sua página de Internet própria, em 2015, o presidente (até então) do Supremo Tribunal Federal e consequentemente presidente do CNJ, Ricardo Lewandowski, com o objetivo de diminuir o contingente prisional e combater o costume do encarceramento, a fim de proporcionar que as garantias fundamentais internalizadas nas normas no país fossem cumpridas, implantou em sua direção o projeto “Audiência de Custódia”, em frente aos dados aviltantes de pessoas presas no país, tendo por fonte o Relatório Mensal do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP), diagnóstico este contido no sítio eletrônico do CNJ, hodiernamente o Brasil conta com: 297.944 presos em regime fechado; 103.830 presos em regime semiaberto; 9.901 presos em regime aberto; 251.362 presos provisórios; 6.021 presos em prisão domiciliar; totalizando o número de 669.058 presos no país, ou seja, ainda segundo a página de Internet do CNJ, o Brasil ocupa o quarto lugar mundial em número de pessoas que estão em situação de cárcere.

Conforme informações apresentadas no parágrafo acima, percebe-se que as estatísticas são alarmantes, demonstrando a cultura do encarceramento em massa na nação tupiniquim, do costume em “prender”, o que em consonância com Correia (2015, p. 04) “coloca em cheque a eficiência punitiva estatal e, ao mesmo tempo, o princípio da subsidiariedade do Direito Penal, que visa(va) limitar o poder punitivo do Estado.” Deste modo, a supressão ao direito à liberdade, que deveria ser a ultima ratio se torna uma medida consuetudinária e em muitas situações sem necessidade.

E como forma de diminuir esses números tão exorbitantes surgiu a audiência de custódia ou audiência de apresentação do preso, que conforme, Lopes Júnior e Paiva (2014), se apresenta como importante arma para a diminuição do encarceramento em massa no Brasil, e assim, Oliveira et al. (2017, p. 140-141) preceitua que “a audiência de custódia tem potencial para reduzir a cultura do encarceramento e propiciar que os recursos orçamentários hoje consumidos pelo sistema carcerário sejam reduzidos [...]” lembrando que o preso representa custos ao erário público e que a diminuição da população carcerária (daqueles que não deveriam estar restringidos de sua liberdade por vários motivos) também é uma vantagem econômica, além de ser primeiramente humanitária.

Em conformidade com matéria vinculada na página de perguntas frequentes do Conselho Nacional de Justiça, este define a audiência de custódia de maneira que “Trata-se da apresentação do autuado preso em flagrante delito perante um juiz, permitindo-lhes o contato pessoal, de modo a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa submetida à prisão. ” Outro conceito da audiência de apresentação do preso pré-cautelar é fornecido por Lopes Júnior e Paiva (2014, p. 15):

A denominada audiência de custódia consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão.

Já Oliveira et al. (2017, p. 118) a define a audiência de apresentação do autuado em flagrante ao juiz competente do seguinte modo:

A denominada audiência de apresentação ou de custódia é um instrumento de natureza pré-processual, embora sujeito ao contraditório, que pode ser definido como um ato destinado a concretizar o direito reconhecido a todo indivíduo preso, a ser conduzido, sem demora, à presença de uma autoridade judiciária (juiz, desembargador ou ministro, a depender da incidência, ou não, de foro de prerrogativa) com o objetivo que sua prisão em flagrante seja analisada, quanto a sua legalidade e necessidade e seja cessada a constrição, se ilegal, concedida a liberdade provisória ou mesmo ratificada e fortalecida a prisão administrativa e pré-cautelar através da decretação da prisão preventiva, ou, ainda, substituída por outra medida cautelar alternativa, se cabível, suficiente e adequada para o caso.

De forma resumida, em consonância com o texto publicado pelo CNJ em seu sítio eletrônico e os ensinamentos de Lopes Júnior e Paiva (2014) e de Oliveira et al. (2017), a audiência de custódia tem por objetivo a apresentação do preso em flagrante à presença do juiz, sem demora, para que haja a análise da legalidade e necessidade da prisão, assegurado o contraditório, como forma de contemplar os direitos fundamentais do autuado pré-cautelar.

Esta audiência pode ter por resultado, de acordo com matéria vinculada pelo CNJ em seu sítio da Internet, a transformação da prisão em flagrante no seu relaxamento, em caso de prisão ilegal; na concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança dependendo do delito cometido; na substituição por medidas cautelares diversas; na conversão em prisão preventiva; na análise do cabimento ou não de mediação penal; e em outros encaminhamentos de natureza assistencial.

Ainda de acordo com o CNJ, em sua página da Internet respectiva, e de Lopes Júnior e Paiva (2014) entende-se que a audiência de apresentação do preso tem por fim coibir a prática de possíveis casos de maus tratos e tortura ao autuado pré-cautelar, ou irregularidades procedimentais, e que se alguma dessas condutas venha a acontecer esta objetiva a tomada de providências o mais rápido possível, garantindo de forma plena os direitos fundamentais e a dignidade humana do encarcerado.

3.1 (Insuficiência de) Previsão Legal da Audiência de Custódia

Conforme Oliveira et al. (2017) a audiência de custódia é fruto de dois tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), conhecida também como Pacto de São José da Costa Rica, celebrada em 22 de novembro de 1969, mas que apenas foi promulgada no país por meio do Decreto 678, em 06 de novembro de 1992, que em seu artigo 7º.5 dita que “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais [...]”; e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que entrou em vigência em 23 de Março de 1976, entretanto, só foi promulgada aqui em 06 de julho de 1992, pelo Decreto 592, e estabelece em seu artigo 9º.3 que “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais”.

Na esfera interna, conforme o sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça, a audiência de custódia é resultado da atuação administrativa do Poder Judiciário, o CNJ em parceria com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo, promoveram o projeto “audiência de custódia”, no dia 24 de fevereiro de 2017, que, segundo Leitão e Fischer (2016), foi implantado nos 27 Tribunais de Justiça de todo o país, frente ao comodismo do Poder Legislativo na falta regulamentação da audiência de apresentação do preso que tem embasamento legal (CADH e o PIDCP) há mais de duas décadas e nunca foi efetivamente regularizado de forma legislativa.

Em consonância com Oliveira et al. (2017), o projeto “audiência de custódia” se encontra atualmente regulamentado apenas de forma administrativa pelo CNJ e pelo Tribunais através da Resolução 213 de 15 de dezembro de 2015 que tem por fulcro seu art. 1º:

 Art. 1º. Determinar que toda pessoa presa em flagrante de delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.

Assim, esta Resolução, conforme Oliveira et al. (2017), estabelece o procedimento que deve ser aplicado na realização das audiências de apresentação do preso em flagrante, que tem padrões e critérios semelhantes ao projeto de lei nº 554 do ano de 2011, hodiernamente tramitando no Congresso Nacional.

Outro importante instrumento para a aplicação da audiência de custódia, de acordo com Oliveira et al. (2017), foi a decisão proferida na medida cautelar na ADPF 347 MC / DF, de 09 de setembro de 2015, que prega o prazo de 90 dias para a inserção de audiências de custódia em todo o Judiciário, compreendendo juízes e tribunais, conforme informa a decisão (p. 209-210):

O Tribunal, apreciando os pedidos de medida cautelar formulados na inicial, por maioria e nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), deferiu a cautelar em relação à alínea “b”, para determinar aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão [...].

Entretanto, segundo Oliveira et al. (2017), esta decisão vem sendo descumprida, já que não houve a efetiva implementação das referidas audiências, e se passaram mais de dois anos do julgado, o que até caracterizaria, de forma tácita, a aceitação do modelo vigente de  autuação de prisão em flagrante, que é regulamentada pelos art. 306 a 310 do CPP, ao qual não é necessário a apresentação do preso à presença do juiz competente, sem demora, o que traz não só ao autuado pré-cautelar, mas à sociedade como um todo, resultados devastadores pela falta de garantia e respeito aos tratados internacionais, princípios e direitos fundamentais.

Vale ressaltar que, malgrado não haver uma regulamentação interna da audiência de apresentação do preso, de acordo com Leitão e Fischer (2016), em 2011, foi proposto um Projeto de Lei (PL) 554/2011, que em conformidade com a página de Internet do Senado Federal, é de autoria do senador Antônio Carlos Valadares, e se encontra aprovado pelo plenário no Senado Federal e está, desde o dia 06/12/2016, remetido à Câmara dos Deputados, e lá continua até o presente momento.

 Este PL tem por objetivo, mais uma vez tendo por fonte o sítio eletrônico do Senado Federal, alterar o §1º do artigo 306 do Decreto-Lei 3.689/1941, o Código de Processo Penal, que correntemente prega que “Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. ”, ou seja, o atual texto do artigo estabelece apenas a remessa obrigatória dos autos de prisão em flagrante ao magistrado no período máximo de vinte de quatro horas, entretanto, com a mudança inserida pelo PL 554/2011, nesse prazo (24 horas) após a realização da prisão em flagrante, o autuado deverá ser conduzido à presença do juiz competente, simultaneamente com seu auto de prisão e seguido das devidas oitivas colhidas, e caso o preso não indique advogado para acompanha-lo, deverá ser remetida cópia integral dos autos à Defensoria Pública.

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3.2 (Dificuldades de) Implementação da Audiência de Custódia

Ressalta-se que, primeiramente, além de ter vários resultados benéficos associados a realização da audiência de custódia, como a prevenção aos maus tratos, tortura e desnecessidade da prisão do autuado, a audiência de apresentação do preso em flagrante ao juiz competente tem previsão normativa, nos tratados internacionais da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), denominada também como Pacto de São José da Costa Rica, e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ao qual o Brasil é parte desde 1992 e tem dever não só interno de cumprimento da aplicação da audiência, como também dever internacional, já que assumiu a obrigação de cumpri-los. Assim, estabelece a Convenção de Viena, incorporada no Brasil em 2009, por meio do decreto n° 7.030, em seu art. 26, o pacta sunt servanda, que “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé. ” Isto é, como demonstra a Convenção de Viena, os tratados internacionais CADH e PIDCP, são normas, e devem funcionar como fundamento para promoção de suas garantias inseridas, visto que o país tem o dever de cumprimento quando o subscreveu e o incorporou ao seu ordenamento jurídico interno, além disso, a audiência de custódia é direito do autuado em flagrante, o que por si só retira a possibilidade de sua não implantação.

A (suposta) falta de regulamentação procedimental não é a única justificativa que poderia ser levantada para a não aplicação da audiência de apresentação do preso à presença do juiz competente, pode figurar aqui a dúvida em relação aos danos ao erário público, o que de fato é apontado por Oliveira et al. (2017, p. 135):

[...] certa rejeição à implantação da “Audiência de Custódia”, principalmente por motivos vinculados à defesa corporativa, receio da falta de recursos materiais e humanos para o desempenho de funções inerentes a mais de um ato jurisdicional, suficiência do modelo atual, ausência de previsão legal, apontados pelos que resistem à implantação, para sustentar sua inviabilidade ou, pelo menos, desnecessidade.

Deste modo, há certo desprezo à utilidade desta audiência, já que acarretaria prejuízo aos cofres públicos e toda uma movimentação de pessoal, como magistrado competente, escrivão, agente carcerário, pessoas que seriam deslocadas ou novos cargos que causariam uma incumbência a mais ao Estado, além do gasto financeiro, com os recursos que deveriam ser movimentados para a realização da audiência de apresentação do preso ao juiz, contudo, o objetivo aqui é bem mais amplo e deve ser observado em grande espectro, visto que, como antes levantado, a audiência de custódia objetiva diminuir o hábito de prender de forma exacerbada, reduzindo assim os gastos com a população em cárcere, como pontua Lopes Júnior e Paiva (2014, p. 13):

[...] Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.

 A título de exemplo, cita se os dados fornecidos pela Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos de Mato Grosso (SEJUDH – MT), em seu respectivo sítio eletrônico, por meio da notícia publicada em 05 de dezembro de 2016, que informa que, no período de dezesseis meses, realizaram se em Mato Grosso 4.054 audiências de apresentação do preso ao juiz, onde aproximadamente 2.000 autuados não entraram no sistema penitenciário após a realização da audiência, e levando em consideração que um preso custa cerca de R$ 3.000,00 (três mil de reais), ao mês, ao Estado, este economizou, em média, R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), assim, trazendo uma alternativa não só benéfica para o erário público, mas lucrativa, em razão da pecúnia que pode ser economizada e utilizada em outras áreas, como educação e saúde, com esse procedimento.

Outra vantagem da implementação desta audiência se dá em seus resultados, que não se limita na prisão ou liberdade do autuado em flagrante, a guisa de exemplo, pode se mencionar o que está acontecendo no Piauí, segundo o a página de Internet do próprio CNJ, tendo por fonte o Tribunal de Justiça do Piauí, em notícia publicada em 25 de julho de 2017, em que a audiência de custódia está sendo utilizada como meio para efetivar o projeto “Ressocializar para não prender”, que tem por objetivo recuperar dependentes químicos em situação de crime, visto que estes tem a faculdade de ser encaminhados a uma casa de tratamento, desde que atenda aos requisitos que são estabelecidos pelo magistrado competente e uma equipe multidisciplinar.

Deste modo, levando em consideração as informações aqui elencadas, avalia se a base normativa da audiência de apresentação ao preso ao juiz, em razão de sua relevância normativa e sua posição hierárquica constitucional, com pilar no valor da dignidade da pessoa humana.

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Sobre a autora
Eleusis Britto

Pós-Graduanda em Ciências Criminais – Escola Superior de Advocacia do Piauí.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Elaborado como trabalho de conclusão de curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho;

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