Resumo: Trata do Instituto da Audiência de Custódia como garantia do preso em flagrante delito contra a prisão arbitrária e os abusos policiais, bem como a tortura que possa ser, eventualmente, praticada. Pretende também, o esvaziamento dos presídios, a celeridade processual e a ressocialização dos presos. Afigura-se como mecanismo de controle da autuação e da real necessidade da prisão. Este artigo tem por escopo dar eficácia aos dispositivos previstos em Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, tais como: Pacto de San José da Costa Rica e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de Nova York de 1966. Mostra a experiência capixaba que, desde abril de 2015, por ato do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, implantou em parceria com a Defensoria Pública e a Secretaria Estadual de Justiça, o Plantão das Audiências de Custódia. Revela o que o Meritíssimo Juiz de Direito já aposentado, Dr. João Batista Herkenhoff, fazia à época em que ainda judicava, antes mesmo da criação do novel instituto, quando não se contentava apenas com as peças do flagrante; exigia que o preso em flagrante lhe fosse apresentado no prazo legal de 24 horas. Além de tudo, mostra os resultados do recém-inserido instituto na prática jurídica capixaba em que aproximadamente metade dos autuados em flagrante são postos em liberdade após o contato com o juiz e destes apenas um baixo índice entre 2 e 3% voltam a reincidir.
Palavras-chave: Audiência de custódia. Prisão em flagrante. Aplicação. Legalidade.
Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. FUNÇÕES DA PENA. 3. CENÁRIOS CAPIXABAS - RECENTE E ATUAL. 4. PREVISÃO LEGAL. 5. REGULAMENTAÇÃO. 6. CONCEITO E NOMENCLATURA. 7. PROCEDIMENTO PARA A REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA (SEGUNDO O PROJETO DO CNJ). 8. RESULTADOS. 9. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A audiência de custódia é um procedimento já usado com sucesso há muito tempo em alguns países, dentre eles os Estados Unidos da América e alguns países da América Latina, onde a estrutura responsável pelas referidas audiências recebe o nome de Juizados de Garantias. Este tema, de natureza processual, vai de encontro aos discursos que pedem mais repressão, penas mais duras, Teoria de Lei e Ordem[1], tal como, argumentos que visam ao recrudescimento das punições estatais.
No estado do Espírito Santo, o Juiz de Direito Dr. João Baptista Herkenhoff, há mais ou menos 40 anos, já aplicava o referido instituto, ainda que à época não tivesse esse nome. Entendeu então este magistrado, na época em que exercia com louvor sua judicatura, que todo indivíduo preso no território de sua comarca lhe fosse apresentado, fazendo isso por meio de um ato administrativo.
Baixou uma Portaria para que o preso em flagrante fosse levado à sua presença pelos agentes policiais no mesmo prazo estipulado em lei, à luz do artigo 306 do Código de Processo Penal - CPP, in verbis:
Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).[2]
Não se contentava apenas com a comunicação do flagrante por meio de ofício da Autoridade Policial acompanhado de todas as peças do Auto de Prisão em Flagrante Delito - APFD. Entendeu ele, que isso era o aperfeiçoamento da regra, do legislado; na verdade com tal entendimento o Dr. Herkenhoff fez surgir uma norma da melhor interpretação daquela. Chegou até mesmo propor que isso fosse expressamente disposto na Carta de 88 quando da Assembléia Nacional Constituinte, todavia não obteve êxito para que sua sugestão se transformasse em norma constitucional.[3]
Hodiernamente, o assunto Audiência de Custódia passou a ser tema recorrente e prioridade nas Políticas de Segurança Pública e de Justiça dos Estados que visa, entre outras coisas, ao esvaziamento dos presídios - por demais lotados - à celeridade do processo penal e à ressocialização dos presos.
2. FUNÇÕES DA PENA
Como se sabe a pena tem dupla função: punir e ressocializar, ex vi artigo 59 do Código Penal, ex positis:
Art. 59 CP - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:[4]
A punição é o caráter retributivo da pena, impondo-se ao infrator a represália estatal, um preço por sua transgressão, assim como, uma reprovação por sua atitude, que desestabiliza a sociedade e, por conseguinte, o Estado, dado que este é a sociedade politicamente organizada e o que o faz sempre ser vítima, ainda que secundária, do fenômeno sociológico crime.
A ressocialização tem caráter preventivo, inibindo o infrator de outras práticas futuras, prevenindo-o e desestimulando de práticas semelhantes posteriores, incorporando-lhe efeito corretivo, decorrente este do efeito pedagógico da sanção
Como sabido pelos operadores do Direito, em especial por aqueles que militam na seara penal, como este que subscreve, a pena não tem cumprido sua função primordial de ressocializar. Tem se punido mal, desproporcionalmente, e não se tem ressocializado em quase nada aqueles que pelas prisões passam, que dentre outros fatores, se deve às condições desumanas dos presídios, em sua maioria verdadeiras masmorras.
Todavia, em tempos de violência e beligerância, discursos voltados para a repressão, aumento das penas, introdução da pena de morte, encarceração imediata e permanente; ganham cada vez mais espaço na mídia e no inconsciente das pessoas, em detrimento de outros institutos, como liberdade vigiada e prestação de serviços à comunidade.
Sob a ótica dos que não militam na área tais medidas parecem eficazes, contudo não há qualquer comprovação científica que atestem que há, de fato, redução nos índices de criminalidade, quando na maioria das vezes contribuem para aumentar a violência ou não alteram em nada o quadro desastroso.[5]
3. CENÁRIOS CAPIXABAS - RECENTE E ATUAL
Recentemente o estado do Espírito Santo ganhou notoriedade mundial pela péssima qualidade de seus presídios. Contudo, o empenho do Governo do Estado em colaboração com a União e também com os municípios, esforços foram feitos para minimizar tais efeitos funestos, tais como: a construção de novos presídios seguindo os mais modernos padrões internacionais de segurança.
Novos protocolos de procedimentos, contratação de agentes penitenciários e extinção dos presídios das delegacias de polícia melhoraram a qualidade da encarcerização e das prisões. Porém, o simples encarceramento não atende ao que se pretende de uma sociedade justa, igualitária e honesta.
A Resolução nº 13, de 09 de abril de 2015, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, introduziu de vez a Audiência de Custódia na prática processual capixaba. Com tal atitude, o Espírito Santo inseriu-se na vanguarda do cenário jurídico brasileiro como o segundo estado a adotar a Audiência de Custódia no Poder Judiciário, prática que São Paulo já adotava desde fevereiro de 2015.
Seguindo um projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Audiência de Custódia tem por objetivo garantir a rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisão em flagrante para que seja feita uma primeira análise sobre o cabimento e a necessidade da prisão preventiva ou a adoção de medidas alternativas ao cárcere, como a monitoração eletrônica.[6]
Outrossim, visa dar eficácia a dispostos constitucionais expressos na Magna Carta de 88 - CRFB, na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica – Decreto Presidencial nº. 678, de 06 de novembro de 1992, assim como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Nova York/1966 – Decreto Presidencial nº. 592, de 06 de julho de 1992. Estes importantes mecanismos de controle da legalidade da autuação e verificação da real necessidade da prisão, além de servir como meio fiscalizador de reais maus tratos impostos à pessoa presa.
Assim, tão logo o juiz verifique as condições apresentadas, poderá com mais segurança, e na forma preconizada no artigo 310 CPP, relaxar a prisão, caso ilegal, ou conceder ao autuado liberdade provisória, com ou sem fiança. Além disso, ele poderá também, converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, caso presentes os requisitos do artigo 312 CPP.[7]
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o). [8]
Reduzir a superlotação dos presídios, dar celeridade ao processo e ao julgamento, aproximar o juiz e a sociedade do detento, humanizar o Sistema de Justiça e formar uma rede de apoio para reintegrar o presidiário à sociedade são os objetivos do projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que ora se aplica aos autuados em flagrante.
Cabe enaltecer não somente a iniciativa do Poder Judiciário capixaba, mas também à Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo e à Secretaria Estadual de Justiça, que juntos, magistrados, defensores públicos, agentes penitenciários e agentes de escolta, contribuem para o enorme sucesso do novel instituto, já definitivamente, consolidado na cultura jurídica capixaba.
Infelizmente, o Ministério Público do Espírito Santo preferiu ausentar-se dos trabalhos desenvolvidos, justamente ele, bastião da democracia e fiscal da lei.
4. PREVISÃO LEGAL
A audiência de custódia é prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) - Pacto de San Jose da Costa Rica, promulgada no Brasil pelo Decreto 678/92, e também no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Nova York, promulgada no Brasil pelo Decreto 592/92.[9]
Prescreve o artigo 7º, item 5, da CADH:
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal
(...)
5 - Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)
Prevê o artigo 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:
(...)
Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais (...)[10]
Os significados praticamente se repetem em ambos os tratados.
Segundo entende o STF, os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário incorporam-se em nosso ordenamento jurídico com status de norma jurídica supralegal (RE 349.703/RS, DJe de 5/6/2009). Desse modo, na visão do STF, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos são normas jurídicas no Brasil hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, só estando abaixo, portanto, das normas constitucionais[11], desta maneira, constituem-se em normas infraconstitucionais supralegais.
Igualmente, prevê o parágrafo 2º do artigo 5º da CRFB, que os Direitos e Garantias magnos erigidos não se esgotam no texto da Carta Constitucional, in verbis:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.[12]
5. REGULAMENTAÇÃO
A audiência de custódia ainda não foi regulamentada por lei no Brasil apesar de existir o PLS nº 554/201, tramitando no Congresso Nacional, que visa modificar a redação do parágrafo 1º do artigo 306 do CPP e instituir as audiências de custódia no ordenamento jurídico nacional:
Ementa:
Altera o § 1º do art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para determinar o prazo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial, após efetivada sua prisão em flagrante.
Explicação da Ementa:
Altera o §1º do artigo 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para dispor que no prazo máximo de vinte e quatro horas após a realização da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, juntamente com o auto de prisão em flagrante, acompanhado das oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.[13]
Isso significa que não existe uma lei estabelecendo o procedimento a ser adotado para a realização dessa audiência.
Diante desse cenário, e a fim de dar concretude à previsão da CADH, recentemente, alguns Tribunais de Justiça, dentre eles o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, incentivados pelo CNJ, passaram a regulamentar a audiência de custódia por meio de atos internos exarados pelos próprios Tribunais (provimentos e resoluções).
Todavia, não há que se falar em inconstitucionalidade sob a alegação de que tais audiências só poderiam ser criadas por lei federal e nunca por meio de ato administrativo, seja monocrático ou colegiado, já que a competência para legislar sobre a matéria é da União (art. 22, I, da CF/88), por meio do Congresso Nacional.
A respeito do tema o STF julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5240/SP - proposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) contra o Provimento Conjunto nº 03/2015, do TJSP, que criou a Audiência de Custódia no Estado de São Paulo.
A Corte afirmou que o artigo 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, por ter caráter supralegal, sustou os efeitos de toda a legislação ordinária conflitante com esse preceito convencional.[14] Em outras palavras, a CADH inovou o ordenamento jurídico brasileiro, e passou a prever expressamente a audiência de custódia. De Igual forma o Pacto de Nova York de 1966, do qual o Brasil também é signatário.
Ademais, a apresentação do preso ao juiz está intimamente ligada à ideia da garantia fundamental de liberdade, qual seja, o habeas corpus. A essência desse remédio constitucional, portanto, está justamente no contato direto do juiz com o preso, para que o julgador possa saber do próprio detido a razão pela qual fora preso e em que condições se encontra encarcerado.
Justamente por isso, o CPP estabelece que “recebida a petição de habeas corpus, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar” (art. 656). Desta forma, o STF entendeu que o Provimento Conjunto do TJSP não inovou na ordem jurídica, mas apenas explicitou conteúdo normativo já existente em diversas normas da CADH e do CPP.[15]
Por fim, o STF afirmou que não há que se falar em violação ao princípio da separação dos poderes porque não foi o Provimento Conjunto que criou obrigações para os delegados de polícia, mas sim a citada convenção e o CPP. (STF. Plenário. ADI 5240/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/8/2015 (Info 795).