Capa da publicação Poder constituinte estadual e aposentadoria compulsória: análise da ADI 4.696/PI
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O poder constituinte do legislador piauiense:

uma breve análise acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.696

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3 A ADI 4.696

Segundo o decidido pelo STF, por unanimidade, o constituinte decorrente reformador piauiense exorbitou de suas atribuições constitucionais. Pede-se licença para se recordar os dois acórdãos desse feito, o do julgamento da medida cautelar, ocorrido em 1º de dezembro de 2011, e o do julgamento do mérito, ocorrido em 30 de junho de 2017. Seguem:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIADE. MEDIDA CAUTELAR. ART. 57º, § 1º, II, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ, NA REDAÇÃO DADA PELA EC 32 DE 27/10/2011. IDADE PARA O IMPLEMENTO DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA DOS SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS ALTERADA DE SETENTA PARA SETENTA E CINCO ANOS. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DE OFENSA AO ART. 40, § 1º, II, DA CF. PERICULUM IN MORA IGUAL CONFIGURADO. CAUTELAR DEFERIDA COM EFEITO EX TUNC.

I – É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que as normas constitucionais federais que dispõem a respeito da aposentadoria dos servidores públicos são de absorção obrigatória pela Constituições dos Estados. Precedentes.

II – A Carta Magna, ao fixar a idade para a aposentadoria compulsória dos servidores das três esferas da Federação em setenta anos (art. 40, § 1º, II), não deixou margem para a atuação inovadora do legislador constituinte estadual, pois estabeleceu, nesse sentido, norma central categórica, de observância obrigatória para os Estados e Municípios.

III – Mostra-se conveniente a suspensão liminar da norma impugnada, também sob o ângulo do perigo na demora, dada a evidente situação de insegurança jurídica causada pela vigência simultânea e discordante entre si dos comandos constitucionais federal e estadual.

IV – Medida cautelar concedida com efeito ex tunc.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 57, § 1º, II, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ, NA REDAÇÃO DADA PELA EC 32, DE 27/10/2011. ALTERAÇÃO DO PARÂMETRO CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE PREJUÍZO. MODIFICAÇÃO DA IDADE PARA O IMPLEMENTO DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA DOS SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS. IMPOSSIBILIDADE. NORMA GERAL DE REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA PELOS ESTADOS-MEMBROS. EXTRAPOLAÇÃO DOS LIMITES DO EXERCÍCIO DO PODER CONSTITUINTE DECORRENTE REFORMADOR. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

1. A alteração substancial do parâmetro constitucional utilizado para aferição da alegada inconstitucionalidade não conduz, automaticamente, ao prejuízo da ação direta. Precedentes.

2. A modificação da idade para o implemento da aposentadoria compulsória, efetuada pela Emenda Constitucional n. 88/2015, não tem o condão de operar a convalidação superveniente de norma impugnada, persistindo sua inconstitucionalidade.

3. As regras da Constituição Federal que dispõem sobre aposentadoria dos servidores titulares dos cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são normas gerais de reprodução obrigatória pelas Constituições dos Estados-membros. Precedentes.

4. A norma impugnada invadiu campo reservado à União para o estabelecimento de normas gerais sobre previdência social (art. 24, XII e §1º, CF), bem como extrapolou os limites do exercício do poder constituinte decorrente reformador, legislando em frontal desacordo com o estabelecido no art. 40, § 1º, II, da Constituição da República.

5. Ação direta de inconstitucionalidade a que se dá procedência, para declarar a inconstitucionalidade do art. 57, § 1º, II, da Constituição do Estado do Piauí, ratificando a medida liminar anteriormente deferida.

Quanto ao julgamento da medida cautelar, à luz do que preceituava a Constituição Federal à época do julgamento e de vários julgados do Tribunal, houve coerência ao se deferir a cautelar e suspender  a eficácia do preceito constitucional piauiense, conquanto esse preceito fosse, em minha avaliação, conveniente e antenado com a realidade social brasileira, como restou posteriormente confirmado pela EC 88/2015. Em termos legislativos, o Parlamento piauiense estava à frente do nacional no tocante à idade da aposentadoria compulsória.

Todavia, no julgamento do mérito, considerando a promulgação da EC 88/2015, o Tribunal deveria ou ter julgado improcedente o pedido, com a modulação dos efeitos, ou ter decidido que a ação estava prejudicada, ante a mudança do parâmetro constitucional, na linha da tradicional jurisprudência da Corte. E ainda que julgasse prejudicada, poderia, nesse caso também, preservar os efeitos da decisão cautelar.

Com efeito, a justificativa do Tribunal no sentido de que inexiste convalidação de norma inconstitucional em nosso sistema não se sustenta. Primeiro porque não há na Constituição qualquer comando nesse sentido. Trata-se de uma construção jurisprudencial, que ficou evidente no julgamento do RE 390.840[18] ocasião na qual o Tribunal placitou essa tese de impossibilidade de norma constitucional vir a convalidar norma inconstitucional, com raízes no julgamento da ADI 2[19]. Segundo, no julgamento da ADI 2.240[20], o Tribunal utilizou a técnica da modulação de efeitos para decidir que nada obstante inconstitucional a lei impugnada, a Corte deixaria de decretar a sua invalidade e os efeitos ex tunc ou ex nunc para declarar a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade e instou o constituinte derivado a sanar esse vício. Terceiro, o constituinte derivado, por meio da EC 57/2008 convalidou leis inconstitucionais criadoras de Municípios e isso não feriu nenhuma “cláusula pétrea”.

Por essa razões, entendemos que, no mérito, a ADI deveria ter sido ou julgada improcedente ou ter sido tida por prejudicada, bem como entendemos que a EC 88/2015 convalidou a EC 32/2011.


4 Conclusões

O constituinte decorrente reformador piauiense foi visionário, mas diante do que estava disposto no texto da Constituição Federal, a sua decisão política foi usurpadora de atribuição do constituinte nacional.

A EC 88/2015 convalidou a EC 32/2011, porquanto aquela normatizou no sentido do que normatizado por esta. Ora, segundo o art. 24, § 4º, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. Considerando que a norma estadual não era contrária à norma federal, a superveniência não poderia suspender a sua eficácia, mas convalidá-la.

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A decisão cautelar do STF foi correta e coerente com a jurisprudência tradicional, mas a de mérito não, visto que deveria ter sido julgada improcedente, ante a convalidação perpetrada pela EC 88/2015, ou declarada prejudicada em face dessa mesma EC 88/2015, que alterou o parâmetro normativo, conforme a tradicional jurisprudência da Corte que, no caso, foi indevidamente afastada.


5 Referências

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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. Belo Horizonte: DelRey, 2003.

MEIRELLES TEIXEIRA, José Horário. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito público brasileiro e análise da constituição do império. Brasília: Senado Federal, 1978.

PINTO FERRIRA, Luiz. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.

SILVA, Hebe Teixeira Romano Pereira da. Aposentadoria compulsória do servidor é atentado contra dignidade humana. Consultor Jurídico, 12 de novembro de 2016. Acesso: www.conjur.com.br.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000.

TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1989.


Notas

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.696. Relator ministro Edson Fachin. Julgamento em 30.6.2017. Acórdão publicado em 14.9.2017. Acesso: www.stf.jus.br.

[2] SILVA, Hebe Teixeira Romano Pereira da. Aposentadoria compulsória do servidor é atentado contra dignidade humana. Consultor Jurídico, 12 de novembro de 2016. Acesso: www.conjur.com.br.

[3] PIAUÍ. Assembleia Legislativa. Emenda Constitucional n. 32, de 27 de outubro de 2011. Diário Oficial n. 203, de 27.10.2011.

[4] PIAUÍ. Assembleia Legislativa. Constituição do Estado do Piauí. Diário Oficial n. 186, de 5 de outubro de 1989. Acesso: www.alepi.pi.gov.br.

[5] BRASIL. Império. Constituição Política do Império do Brasil, elaborada pelo Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25 de março de 1824. Acesso: www.planalto.gov.br.

[6] BRASIL. Império. Lei de 12 de outubro de 1832. Acesso: www.planalto.gov.br.

[7] BRASIL. Império. Lei de 12 de agosto de 1834. Acesso: www.planalto.gov.br.

[8] BRASIL. Império. Lei de 12 de maio de 1840. Acesso: www.planalto.gov.br..

[9] BRASIL. República dos Estados Unidos do Brasil. Decreto n. 1, de 15 de novembro de 1889, proclama provisoriamente e decreta como forma de governo da Nação Brasileira a República Federativa, e estabelece as normas pelas quais se devem reger os Estados Federais. Acesso: www.planalto.gov.br.

[10] BRASIL. República dos Estados Unidos do Brasil. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, promulgada pelo Congresso Constituinte. Acesso: www.planalto.gov.br.

[11] BRASIL. República dos Estados Unidos do Brasil. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte. Acesso: www.planalto.gov.br.

[12] BRASIL. República dos Estados Unidos do Brasil. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, outorgada pelo Presidente da República Getúlio Vargas. Acesso: www.planalto.gov.br.

[13] BRASIL. Estados Unidos do Brasil. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, promulgada pela Mesa da Assembleia Constituinte. Acesso: www.planalto.gov.br.

[14] BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, promulgada pelas Mesas das Casas do Congresso Nacional. Acesso: www.planalto.gov.br.

[15] BRASIL. República Federativa do Brasil. Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, outorgada pela “Junta Militar”. Acesso: www.planalto.gov.br.

[16] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: DelRey, 2003, pp. 67-81.

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Reclamação n. 383. Relator ministro Moreira Alves. Julgamento em 11.6.1992. Acórdão publicado em 21.5.1993. Acesso: www.stf.jus.br..

[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário n. 390.840. Relator ministro Marco Aurélio. Julgamento em 9.11.2005. Acórdão publicado em 15.8.2006. Acesso: www.stf.jus.br.

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2. Relator ministro Paulo Brossard. Julgamento em 6.2.1992. Acórdão publicado em 21.11.1997. Acesso: www.stf.jus.br.

[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.240. Relator ministro Eros Grau. Julgamento em 9.5.2007. Acórdão publicado em 3.8.2017. Acesso: www.stf.jus.br.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O poder constituinte do legislador piauiense:: uma breve análise acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.696. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6113, 27 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80575. Acesso em: 23 abr. 2024.

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