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O crime não entra em quarentena: dos crimes em tempos de coronavírus

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O crime, antigo comportamento social, também apresenta peculiaridades nessa nova e triste realidade em que vivemos.

Se me dissessem, em 31 de dezembro de 2019, que 2020 seria um ano marcado pela pandemia do novo coronavírus, que líderes de governo do mundo todo, pautados por estudos e recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), determinariam quarentena à população para conter o contágio da doença, dentre outras situações inéditas que estamos vivendo, com certeza, eu duvidaria. Nessa situação hipotética, eu receberia a notícia como uma ficção apocalíptica, digna de roteiro desses filmes que não costumo gostar. Não aconteceu assim. A COVID-19 chegou, se instalou na sociedade e, com ela, a preocupação em diversas frentes da vida das pessoas.

No âmbito jurídico penal, o crime, no contexto em que vivemos, merece especial atenção. É que o Código Penal, antes mesmo do novo coronavírus surgir, previu o agravamento e o aumento de pena (tecnicamente distintos) para crimes praticados em tempo de calamidade pública. 

A princípio, imperioso observar o reconhecimento do estado de calamidade pública até 31 de dezembro de 2020, conforme Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020. Esse reconhecimento produzirá efeitos diretos no que tange à Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), mas também repercutirá na esfera penal. Vejamos:

Na parte geral, o Código Penal prevê como circunstância que sempre agrava a pena do agente o cometimento do crime (qualquer que seja ele)  em ocasião de calamidade pública.

Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (...)

II - ter o agente cometido o crime: (...)

j) em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido;

Ou seja, qualquer pessoa que cometer crimes no período compreendido no Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, terá sua pena agravada pelo juiz sentenciante. A agravante é cabível porque o agente se vale de uma situação dramática pela qual passa a vítima para praticar uma infração penal, de forma que sua conduta merece maior grau de reprovabilidade.

Na parte especial, o tipo previsto no artigo 266 que prevê o crime de interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública, também prescreve a aplicação das penas em dobro se o crime for cometido em estado de calamidade publica, pelo mesmo motivo acima mencionado.

Art. 266 - Interromper ou perturbar serviço telegráfico, radiotelegráfico ou telefônico, impedir ou dificultar-lhe o restabelecimento:

Pena - detenção, de um a três anos, e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena quem interrompe serviço telemático ou de informação de utilidade pública, ou impede ou dificulta-lhe o restabelecimento.      

§ 2º  Aplicam-se as penas em dobro se o crime é cometido por ocasião de calamidade pública. 

Afora as situações que implicam no agravamento e o aumento da pena em estado crítico em que se encontra o país e, consequentemente a vítima, o Código Penal prevê, ainda, tipos incriminadores específicos que poderão ser praticados no contexto da pandemia (todos previstos no capítulo III do Código Penal – Dos Crimes contra a Saúde Pública), são eles:

  • Crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, com pena de detenção, de um mês a um ano, e multa.  O crime se consuma no momento em que há violação à determinação do Poder Público (por lei ou ato administrativo), desde que referida determinação, seja compulsória. Por exemplo, o indivíduo que atesta positivo para o COVID-19, infringe determinação compulsória da autoridade competente de isolamento ou quarentena por 14 dias e sai às ruas. Analisadas as especificidades no caso concreto, o sujeito poderá incorrer no mencionado dispositivo;

  • Crime de omissão de notificação de doença, previsto no artigo 269 do Código Penal, com pena detenção, de seis meses a dois anos, e multa. O crime se consuma no momento em que o médico (crime próprio) deixa de comunicar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória. Neste caso, o exemplo seria do médico que não comunicou às autoridades públicas competentes os casos de pacientes que tiveram resultado positivo para o COVID-19. Na hipótese de doença de notificação obrigatória, o médico está atuando em estrito cumprimento do dever legal, portanto, não há que se falar em sigilo profissional;

  • Crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, previsto no artigo 273 do Código Penal, que prevê pena de reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.  Trata-se de crime hediondo (exceto na modalidade culposa). O crime se consumará, por exemplo, no ato de falsificar, corromper adulterar ou alterar álcool em gel (produto escasso e com alta procura da população mundial em tempos de coronavírus). O crime é de perigo abstrato, o que significa que basta que o agente pratique um dos verbos do tipo penal para que a figura delituosa esteja consumada, não é necessário que se coloque o produto à venda, porém, caso o faça, o agente incorrerá na mesma pena do caput (§1º).

Por fim,  condutas de prática comercial ilegal, como se não bastasse o caos que estamos vivendo, têm sido constantemente divulgadas no noticiário, vale a pena conferir os crimes correspondentes a tais comportamentos, previstos na Legislação Penal Especial:

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  • Crimes contra a Economia Popular (Lei nº 1.521/51), artigo 3º, incisos V (vender mercadorias abaixo do preço de custo com o fim de impedir a concorrência) e VI (provocar a alta ou baixa de preços de mercadorias, títulos públicos, valores ou salários por meio de notícias falsas, operações fictícias ou qualquer outro artifício); em ambos os casos a pena cominada é de detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa;

  • Crimes contra ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei nº 8.137/90), artigo 4º (constitui crime contra a ordem econômica), inciso I (abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas);  inciso II, alínea a (formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas); em ambos os casos a pena cominada é reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.  

Além das figuras criminosas acima descritas, o agente poderá ter sua pena base agravada, nos termos do artigo 59 do Código Penal, se o magistrado entender que as circunstâncias e consequências concretas do crime praticado contra vítima, acometida pela doença do novo coronavírus ou no contexto da pandemia, merecem maior reprovabilidade, sempre zelando para não incorrer em bis in idem. 

Ressalte-se que outras figuras criminosas, além das tratadas neste artigo, poderão ser verificadas no mencionado contexto. 

A realidade da pandemia é, por si só, grave o bastante para nos preocuparmos e permanecermos alerta. Contudo, infelizmente, o noticiário recente demonstra que práticas criminosas como as que descrevi têm sido perpetradas. 

É importante, portanto, que reconheçamos a situação atípica pela qual o mundo atravessa e nos informemos (com qualidade) acerca das implicações que a pandemia pode trazer, em todos os ramos. Dentro da minha especialidade e matéria predileta de estudos, procurei pincelar algumas informações relevantes a fim de informar e conscientizar sobre o crime e o olhar mais severo do Estado para a sua prática em momentos como este; seria lindo se que cada um, dentro daquilo que sabe, que conhece e que gosta, pudesse compartilhar o conhecimento; assim, teríamos aprendizes de professores nas mais diversas áreas, uma corrente ainda maior de solidariedade e uma rotina mais produtiva e interessante em tempos difíceis.  

Sejamos empáticos, solidários e movidos pela maior recompensa coletiva que pode haver no momento: a cessação da propagação do vírus e a cura dos enfermos. Cuidem-se.

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Sobre a autora
Marina Vezu Macedo de Oliveira

Advogada. Direito civil, penal e administrativo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marina Vezu Macedo. O crime não entra em quarentena: dos crimes em tempos de coronavírus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6134, 17 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80761. Acesso em: 25 abr. 2024.

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