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Chile. Reorganização de pessoas naturais

15/04/2020 às 15:30
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A crise vivida no mundo tem múltiplas dimensões e efeitos deletérios. Somente alguns perceberam que a legislação relativa à insolvência civil carece de ampla e profunda reforma que, salvo engano, não se avizinha. O Chile, porém, já está começando a sua.

O Chile, desde os anos 1970, é um país pujante. Quando do golpe de Estado em 1973 (o general Augusto Pinochet retirou o presidente Salvador Allende do poder[2]), houve reformas econômicas liberais, sendo que os Estados Unidos apresentaram os economistas da Escola de Chicago, denominados Chicago Boys[3], porquanto tinham claros objetivos estratégicos em relação ao país (até então o Chile possuía governo apoiado pelos regimes soviético e cubano).

O objetivo dos dois países era permitir que os economistas fizessem experiências econômicas no Chile, substituindo o regime de inspiração europeia pela americana, neoliberal, com abertura de mercado ao mundo já globalizado, o que de fato ocorreu. Capitaneados pelo economista Milton Friedman, tais economistas implementaram o capitalismo no Chile. Optou-se pelo desenvolvimento capitalista e de livre mercado e a experiência, salvo engano, foi um sucesso.

O presente artigo abordará, em alguns parágrafos, os mecanismos legais existentes na legislação chilena para a tentativa de superação da crise e procedimentos de falência da pessoa natural. Ao contrário da lei brasileira (a atual, de reestruturação e falência, nada prevê acerca da crise da pessoa natural e sua possível recuperação), ingressou no sistema jurídico chileno, em 20/12/2013, a Lei n. 20.720[4], que trata da reorganização e liquidação de pessoas jurídicas e de pessoas naturais, bem como estabelece regras acerca da Superintendência de Insolvência e Reemprendedorismo.

Com efeito, o texto legal, em linhas gerais, estabelece o limite de tempo para os procedimentos concursais de reorganização, traça regras acerca do procedimento concursal de liquidação (estabelecendo prazos máximo para encerramento, visando a rapidez), promove juizados especiais, cria procedimentos efetivos de reorganização, protege os credores garantidos e procura imprimir mais transparência nos processos. Há procedimentos adequados para cada tipo de devedor em momentânea dificuldade[5], sendo interessante a reorganização de pessoa natural.

Existe plataforma eletrônica, a cargo da Superintendência de Insolvência e Reemprendimentos (SIR[6] [7]), onde são publicadas todas as resoluções e atualizações relativas aos procedimentos concursais em trâmite. Interessante notar que, no tocante à insolvência transfronteiriça[8], tem como base as determinações da Uncitral[9]. No tocante à esfera penal, elimina a presunção de falência fraudulenta ou culpável, tipifica condutas penais, assegurando penas específica a cada conduta.

Em linhas gerais e de forma bastante suscinta, caso a pessoa natural tenha dívidas vencidas (ao menos duas) há mais de noventa dias corridos, plenamente exigíveis, e provenientes de obrigações diversas, cujo montante total seja superior a oitenta unidades de fomento, poderá abrir procedimento administrativo gratuito e voluntário, a fim de evitar a falência (insolvência civil).

Possível formular o requerimento a cada cinco anos. O devedor não pode ter sido notificado de demanda de liquidação forçada ou qualquer outra ação executiva[10]. A Unidade de Fomento (CLF – Chilean Unidad de Fomento) é uma unidade parecida com o índice de preço ao consumidor (Brasil); utilizada para fixar o preço de empréstimos bancários, tributos e outros.

O procedimento concursal de renegociação da pessoa natural por esta formulado, contempla audiências perante a Superintendência de Insolvência e é perante este órgão que tem início, mediante solicitação - cujo formato está disponível no sítio da SIR e em suas dependências[11] - a fim de que ocorra a determinação do passivo, a renegociação global e a execução, com limitação a 5 (cinco) anos. Cabe ao devedor apresentar vários documentos, dentre eles a proposta de renegociação de todas as suas obrigações atuais. No texto chileno há uma espécie de proteção ao devedor, porquanto a liquidação obrigatória ou voluntária não poderá ser solicitada, nem julgamentos executivos ou execuções de qualquer espécie ou mesmo restituição em sentenças de arrendamento mercantil podem ser iniciadas em face da pessoa natural, até que ocorra o final do procedimento de renegociação.

Ao contrário da lei brasileira, portanto, o stay period é prolongado até que se resolva a renegociação[12]. A audiência para determinar a responsabilidade deverá abranger todos os credores identificados na Resolução de Admissibilidade que tenham sido notificados (art. 263). Caso não exista acordo, a Superintendência convocará os credores para audiência de execução, com apresentação de proposta, por parte desta, a fim de que os ativos sejam realizados. O procedimento, quer-se crer, se traduz em alternativa eficiente para solução da crise da pessoa natural, inexistindo nada semelhante na legislação brasileira.

No tocante ao procedimento concursal de liquidação da pessoa natural (insolvência civil, no Brasil), pode ser voluntário, com a juntada de documentos (art. 273), requerendo a nomeação de liquidante (arts. 35 e 37).

A liquidação forçada será requerida pelo credor, contanto que existam dois ou mais títulos executivos vencidos e não pagos, decorrentes de várias obrigações, sendo iniciadas pelo menos duas execuções e não apresentados bens suficientes para responder pela dívida, dentro dos 4 (quatro) dias seguintes[13]. A lei chilena prevê a revogação de atos ou contratos assinados pela pessoa física (art. 290).

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Os procedimentos de reorganização e liquidação de falências podem ser submetidos à arbitragem, podendo o devedor manifestar sua vontade.

Assim como outras legislações de ponta, amiúde citadas em textos de há muito publicados, a do Chile procura equacionar a crise vivencida pela pessoa física e, não sendo possível, a liquidação dos ativos é o caminho natural. No Brasil, diante do embotamento teórico, parece que ainda não se atentou para a crise sanitária imperante, de modo que as luzes somente são jogadas na crise empresarial; projetos de lei passam ao largo da crise da pessoa física, imperando o senso comum teórico de que somente há de se tentar o soerguimento da entidade empresarial, quando muitos dos brasileiros estão endividados e quiçá sem rumo.

O modo de produção capitalista assim o diz. A crise vivida pelo Brasil e pelo mundo tem múltiplas dimensões, os efeitos são deletérios, principalmente de caráter social. Somente alguns teóricos perceberam que a legislação relativa à insolvência civil carece de ampla e profunda reforma que, salvo engano, não se avizinha.

O endividamento das pessoas naturais é cada vez maior e compromete de forma assustadora o orçamento doméstico, sendo que a ajuda governamental, neste momento, poderá não ser suficiente para muitos e a “falência” talvez seja o caminho.

Ao que se nos parece, o Brasil ainda tem muito a aprender, em termos de legislação sobre insolvência civil, com o Chile.


Notas

[1] Denominada na lei como pessoa devedora.

[2] sendo que o golpe militar de 1973 foi, efetivamente, apoiado pelos Estados Unidos, que, na mesma década, forneceu ao Chile os economistas da Escola de Chicago [os denominados ‘Chicago Boys’, a fim de dar um novo impulso à situação financeira do país, tudo tendo como espelho e inspiração a economia norte-americana. CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr 2009, p. 144.

[3] Aproximadamente 25 jovens economistas chilenos que formularam a política econômica de Pinochet.

[4] Em vigência após 9 (nove) meses de sua publicação.

[5] Pessoas jurídicas com ou sem fins lucrativos e pessoas naturais.

[6] www.superir.gob.cl. Presta serviço público, autônomo, com personalidade jurídica própria e relacionada ao presidente da República, por intermédio do Ministério da Economia, Desenvolvimento e Turismo. A sede é em Santiago, sem prejuízo de endereços regionais. Visa a supervisionar as ações dos superintendentes liquidatários, leiloeiros de falências, administradores da continuidade de atividade econômica do devedor, consultores de insolvência econômica. Ainda, atua nos procedimentos. 

[7] Art. 331 da lei.

[8] Art. 299.

[9] https://uncitral.un.org

[10] Art. 261, letra “f”.

[11] Art. 261.

[12] Art. 264. Há outros efeitos jurídicos da resolução de admissibilidade do procedimento, dentre eles a suspensão do prazo da prescrição; suspensão dos juros de mora; manter-se-ão todas as condições estabelecidas em contratos assinados pelo devedor, não podendo existir cláusula de rescisão ou vencimento com base no início no procedimento de reorganização, mas pode ser suspensa a avença contratual.

[13] Art. 282. No art. 283 estão todos os requisitos para propositura da demanda, inclusive a indicação do liquidatário principal e suplente, caso o devedor não apareça ou não tome nenhuma ação por escrito na audiência prevista no art. 284. Em tal ato, o devedor poderá propor, por escrito ou de forma oral, várias alternativas previstas neste mesmo dispositivo legal. No texto chileno há, de certo modo, a possibilidade de elisão da falência (Lei 11.101/05, art. 98, parágrafo único), sendo que o tribunal determina o prazo para que se efetue o pagamento da dívida e dos custos. Caso não haja o pagamento no prazo, o tribunal emitirá a Resolução de Liquidação dos ativos da pessoa natural. Outra possiblidade é a aceitação, por parte do devedor, do seu estado de insolvência, sendo que o tribunal, igualmente, emite a resolução. O devedor também pode recorrer ao procedimento de recuperação. Por fim, o devedor se pode opor à demanda por liquidação forçada (art. 121). Apontando as exceções e defesa, já indicando os meios de prova (art. 122 [no sistema chileno cabe o recurso oral]). Interessante notar que não há recurso contra a decisão de segunda instancia, seja ela ordinária ou extraordinária (art. 128).

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Chile. Reorganização de pessoas naturais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6132, 15 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81082. Acesso em: 23 abr. 2024.

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