I – O FATO
No site da folha, em 25 de abril de 2020, é noticiado que, em inquérito sigiloso conduzido pelo STF (Supremo Tribunal Federal), a Polícia Federal identificou o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, como um dos articuladores de um esquema criminoso de fake news.
Dentro da Polícia Federal não há dúvidas de que Bolsonaro quis exonerar o ex-diretor da PF Maurício Valeixo, homem de confiança do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, porque tinha ciência de que a corporação havia chegado ao seu filho, chamado por ele de 02 e vereador do Rio de Janeiro pelo partido Republicanos.
Para o presidente, tirar Valeixo da direção da PF poderia abrir caminho para obter informações da investigação do Supremo ou inclusive trocar o grupo de delegados responsáveis pelo caso.
Um dos quatro delegados que atuam no inquérito é Igor Romário de Paula, que coordenou a Lava Jato em Curitiba quando Sergio Moro, agora ex-ministro da Justiça, era o juiz da operação.
Valeixo, diretor da PF demitido por Bolsonaro, foi superintendente da polícia no Paraná no mesmo período e escalado por Moro para o comando da polícia.
Não à toa, na sexta-feira, dia 24 de abril, logo após Moro anunciar publicamente sua demissão do Ministério da Justiça, o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no Supremo, determinou que a PF mantenha os delegados no caso.
Disse ainda Bruno Boghosssian, em artigo para a Folha, em 26 de abril do corrente ano:
"A crise que culminou na saída de Sergio Moro exibiu de maneira explícita o modo como Bolsonaro enxerga o poder. O presidente se acomodou tanto na cadeira que nem tenta disfarçar a intenção de explorar o governo como uma máquina a serviço de sua família e de aliados.
Bolsonaro decidiu atropelar a independência da Polícia Federal e pagar o preço de um choque com uma das estrelas de seu governo simplesmente para blindar seu grupo político."
II – O PODER – DEVER DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E SEUS LIMITES TRAÇADOS NA CONSTITUIÇÃO
Entenda-se que o presidente da República tem o poder-dever de substituir o diretor-geral da Policia Federal. Não importa quem, mas como poderá substituir.
Imprescindível que, nesse intento, deve levar em conta os princípios norteadores da administração pública. A nomeação deverá ser norteada pelos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência. Se ela for direcionada por interesses pessoais, o ato de substituição incidirá em desvio de finalidade. Essa linha de atuação deve ser traçada no artigo 37 da Constituição Federal, em sua base principiológica.
Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes(O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta: “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”
Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.
Na doutrina, aliás, do que se tem de Roger Bonnard, as opiniões convergem no sentido de que, a propósito da finalidade, não existe jamais para a Administração um poder discricionário.
Assim, não lhe é deixado o poder de livre apreciação quanto ao fim a alcançar. Isso porque este será sempre imposto pelas leis e regulamentos. E adito: pela Constituição, que, no artigo 37, estabelece, impõe, respeito à legalidade, moralidade, impessoalidade, dentre outros princípios magnos que devem ser seguidos pela Constituição. A literalidade do texto é mais que evidente.
Há, no ato administrativo, para sua higidez e validade, um fim legal a considerar. Marcelo Caetano(Manual de direito administrativo, pág. 507) distinguia os desígnios pessoais, os cálculos ambiciosos, as previsões que o agente faz de si para si, no momento em que se determina a exprimir a vontade administrativa, sem repercussão positivamente exteriorizada, na prática do ato, daqueles que se refletem de modo objetivo na sua prática, vindo a desvirtuá-lo em sua finalidade objetiva.
O agente público não pode usar de seus motivos pessoais para atingir fins outros através de um ato administrativo.
Isso quer dizer que, apesar de estarmos no terreno do mérito do ato administrativo, seus limites não se confundem com o arbítrio. Eles se sintonizam com os princípios que norteiam a Administração Pública.
III – OBSTRUÇÃO DE JUSTIÇA
O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu autorização ao Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 24 de abril do corrente ano para abrir um inquérito sobre os fatos narrados e as declarações feitas pelo então ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro.
A investigação envolveria a prática de vários crimes dentre os quais o de obstrução de justiça.
Estaríamos diante de uma organização criminosa?
Consiste o crime organizado, a teor do artigo 2º da Lei 12.850/12, nas ações de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa organização criminosa.
Haveria crime de obstrução de justiça?
Analisemos o tipo penal disposto no artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850, que se aproxima do delito de fraude processual.
Impedir é opor-se a, estorvar, não permitir, barrar, dificultar, obstar, sustar, tolher.
Embaraçar é dificultar, trazer desordem, confusão, perturbar.
A palavra investigação deve ser interpretada de forma extensiva, para abranger, não apenas, a investigação que é estritamente considerada(investigação pela polícia ou pelo Parquet), como ainda o próprio processo judicial, afastando-se a incidência do artigo 344 do Código Penal, que é a regra geral.
Assim, o agente pode esconder, queimar documentos que possam comprovar a prática de crime de organização criminosa prevista na Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013.
A pena in abstrato prevista é de reclusão, de 3(três) a 8(oito) anos e multa, sem prejuízo de outras correspondentes.
Trata-se de tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da alternatividade(a realização de um só verbo já configura o crime, pois caso as duas condutas sejam praticadas no mesmo contexto fático, estaremos diante de um mesmo crime). Pode ser sujeito qualquer pessoa, sendo o crime comum, doloso, formal.
Para o crime organizado, tão importante como planejar, financiar, é garantir a impunidade dos seus atos, que pode acontecer: matando-se testemunhas, ameaçando-as, destruindo provas documentais e periciais.
Trata-se de crime de perigo abstrato, presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigoso e sobre o qual cabe tentativa.
É crime que envolve perigo coletivo, comum, uma vez que ficam expostos ao risco os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas.
É ainda crime contra a administração da justiça, independente daqueles que na societatis delinquentium vierem a ser praticados, desde que sejam punidos com penas máximas superiores a quatro anos ou revelem o caráter transnacional, havendo concurso material entre tal crime e os que vierem a ser praticados pela organização criminosa. Saliente-se que os bens protegidos no crime organizado não se limitam à paz ou a tranquilidade pública, senão a própria preservação material das instituições.
Não haverá bis in idem com relação a qualificação dos crimes de roubo com emprego de arma e de organização criminosa com a majorante prevista no artigo 2º, § 2º, da Lei 12.850.
Daí a investigação que deveria ser em autos conexos às demais investigações envolvendo o fake news noticiado e ainda os chamados atos golpistas perpetrados em 19 de abril do ano corrente, um domingo.