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Direito reprodutivo: ensaios sobre congelamento de óvulos, zika vírus e lutas feministas

12/05/2020 às 16:44
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Reflexões sobre direito reprodutivo tendo como parâmetro a possibilidade de congelamento de óvulos e a recente decisão do STF a respeito da negativa de aborto para gestantes com zika vírus, à luz de lutas feministas.

Introito

Apesar de diversas conquistas feministas, a mulher ainda luta para ter voz na política, para ter equiparação salarial com os homens do mesmo cargo, para comprovar sua situação de vítima em casos de estupro, para escolher ou não se depilar e não ser julgada pela sociedade, para escolher abortar ou não e assim por diante. A necessidade de luta e afirmação diária é resultado de anos de opressão.

Questiona-se a respeito da “soberania masculina”. Por que as mulheres não contestavam essa soberania? Conforme Simone de Beauvoir (1970) explica, nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como não essencial, não é o Outro que autodefine como Outro define o Um, ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um, nesse seguimento, para que o Outro não se transforme no Um, é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio.

Aprofundando o tema, há um viés para entender a diferença anatômica dos corpos, trata-se de uma relação circular: o princípio da visão social constrói a diferença anatômica e esta diferença socialmente construída se torna o fundamento e caução, aparentemente natural, da visão social que a alicerça (BOURDIEU, 2002).

Em outras palavras, a diferença entre os sexos biológicos é conformada por uma visão fictícia, enraizada de dominação masculina sobre a feminina, repercutindo em esferas como a do trabalho e do corpo.

A popular frase “meu corpo, minhas regras”, oriunda de movimentos feministas, é recente no Direito brasileiro. Não faz muito tempo que a mulher pode opinar sobre o próprio corpo.

Durante a maior parte da história brasileira, foi adotada uma cultura familista e pro-natalista, o grande incentivo à fecundidade se justificava pelas altas taxas de mortalidade, utilidade para colonização portuguesa, ocupação territorial e desenvolvimento do mercado interno.

No período do Estado Novo (1937-1945), governo de Getúlio Vargas, a família numerosa se fortaleceu através de diversas medidas como a regulação e desestímulo do trabalho feminino, adicional do imposto de renda incidente sobre os solteiros ou casados sem filhos, facilidades para a compra de casa própria aos que pretendessem se casar e regras que privilegiavam os casados com filhos para o acesso e promoção no serviço público (ALVES, 2010).

A título de aprofundamento, a Constituição Brasileira de 1937, em seu artigo 124, assegurava: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. As famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de seus encargos”.

 Ainda, o Decreto Federal n°. 20.291 de 1932 estabelecia que era “vedado ao médico dar-se à prática que tenha por fim impedir a concepção ou interromper a gestação”. Em 1941, foi sancionada a Lei das Contravenções Penais com o seguinte artigo 20, que proibia: “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar o aborto ou evitar a gravidez”.

Além dos incentivos ao casamento e à reprodução, havia uma legislação contra o controle de natalidade, proibindo o uso de métodos contraceptivos e o aborto; eles representam, assim, ideais do governo da época com uma parcela de influência religiosa, visto que o casamento era considerado sagrado ao ponto de o divórcio só existir em 1977 com a Emenda Constitucional.

Em breve síntese: o corpo da mulher pertencia ao Estado ou ao marido e sua principal função era a de manutenção da espécie.

O direito reprodutivo, que não era sequer cogitado, passou a ser visto como possibilidade ou necessidade. A visão foi modificada ao passar dos anos para a felicidade dos casais, principalmente das mulheres. Desde a mudança de pensamento, inclusive com a chegada da pílula anticoncepcional, houve um grande avanço legalmente falando, tendo as lutas femininas um papel de destaque. As mulheres passaram a ter mais autonomia sobre o direito reprodutivo e decisões sobre seu corpo.

Posto isso, o congelamento de óvulos tem papel fundamental em lutas feministas, visto que permite à mulher decidir quando e se quer ter um filho, sem depender de idade biológica e pressão externa, muitas vezes vinda da família, para sua tomada de decisão, inclusive independe de escolha de um parceiro, pois há bancos de doadores de sêmen.

Estamos, mais uma vez, dando autonomia à mulher, garantido seu direito reprodutivo e escolha pessoal. Com o mesmo enfoque, o recente julgamento do Supremo Tribunal não permitindo o aborto em casos de zika vírus parece ir em direção contrária ao feminismo.


Desenvolvimento

Do congelamento de óvulos

Mesmo com todas as batalhas vencidas pela medicina ou pelas mulheres, há uma em especial que ainda não foi possível vencer. No caminho da liberdade e dos direitos iguais alcançados pelas lutas feministas, uma batalha continua invencível: mudar o relógio biológico. 

Trata-se da possibilidade de perder a fertilidade, cada vez mais próxima à medida que as mulheres envelhecem, tornando-se um inimigo para as mulheres que desejam adiar a maternidade, seja por questões pessoais ou profissionais. Estamos diante do mitigado poder de decisão.

Adiar ou não a gravidez também pode estar associado a uma questão de surto de doenças, é provável que, em meio à pandemia de coronavírus, algumas mulheres ou casais tenham adiado seus planos de maternidade/paternidade, o mesmo pensamento pode ser usado para o período de maior surto de infecções pelo zika vírus.

Posto isso, sabe-se que a mulher nasce com 2 milhões de óvulos imaturos e, na menarca, terá 400 mil. Durante a vida reprodutiva da mulher, todo mês, aproximadamente 1000 óvulos são recrutados, mas apenas um terá seu amadurecimento completo, sendo 999 perdidos a cada mês, logo, a cada ano são perdidos 12 mil óvulos (LOEFFLER, 2015). A soma dos anos vividos mostra que, após 30 anos, restam pouquíssimos óvulos capazes de serem fertilizados, chama-se fim da “reserva Ovariana”, é o fim da fertilidade (ROCHMAN, 2019).  

O congelamento de óvulos se tornou viável há pouco tempo, quando a tecnologia passou a permitir a preservação das células com eficiência e segurança. A técnica foi difundida para conservar a fertilidade de pacientes com câncer, cujos ovários são atingidos pelos tratamentos de quimioterapia. Elas usualmente podem congelar óvulos antes de começar as sessões de quimioterapia, radioterapia ou até mesmo cirurgias, evitando que as mulheres que enfrentavam o câncer não perdessem a possibilidade de terem filhos biológicos após o tratamento.

Os óvulos podem permanecer congelados por até dez anos. Quando a mulher decide engravidar, a amostra é retirada do nitrogênio líquido (LUCÍRIO, 2019). Esse período de tempo representa uma espécie de garantia e maturidade para que a maternidade seja uma decisão ou não.

Apesar do sonho, a realidade do congelamento ainda está longe para a maioria das mulheres pelo gasto financeiro. O preço varia de acordo com diversos fatores, como o tipo de estimulação, congelamento dos óvulos e a região do país, o valor permeia a casa dos 15 mil reais para a coleta e 900 reais mensais para a manutenção dos óvulos congelados (LUCÍRIO, 2019).

Talvez um dia a possibilidade chegue ao sistema público de saúde.

Em resumo, o congelamento permite que a mulher tenha a uma parcela de segurança, a vontade de gerar uma vida pelo próprio ventre não ficará inteiramente dependente de sua idade fértil ou da saúde globalmente falando, no mais, também se trata de poder de decisão.

 Inclusive, há uma linha de pensamento sobre o aborto e escolha do “melhor” momento para ter filhos. O aborto pode representar a decisão da mulher como não sendo o melhor momento para trazer ao mundo uma criança.

Do STF e aborto em caso de zika vírus

Há um fato histórico com certa peculiaridade no Código Criminal do Império de 1830. O aborto provocado pela própria gestante não era criminalizado, apenas o provocado por terceiro, conhecido como aborto consentido e aborto sofrido (BITENCOURT, 2012).

Tendo como base o atual Código Penal de 1940, o bem jurídico protegido do crime de aborto é a vida do ser humano em formação, mesmo que, em rigor, não se trate de uma pessoa, pois há uma mera expectativa de direito.

Há dois casos previstos para excludente de ilicitude: (1) se não há outro meio de salvar a vida da gestante e (2) gravidez resultante de estupro com consentimento de gestante ou seu representante legal, caso ela tenha menos de 18 anos.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal – STF, em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, reconhecendo, assim, direito de escolha da gestante, que pode optar ou não pelo aborto, sendo necessário apenas laudo médico, não há mais necessidade de autorização judicial. Tal decisão foi chamada por alguns ministros como o “julgamento mais importante de toda a história da Corte” (HAIDAR, 2012).

Feitas as breves considerações iniciais, em recente decisão concluída em 01/05/2020, o STF rejeitou, por maioria, uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação Nacional de Defensores Públicos – Anadep em 2016[1].

A ação pedia o direito à interrupção da gravidez de mulheres infectadas pelo zika vírus, oriunda de diversas infecções pela doença.

Ter um julgamento desse nível, durante a pandemia de coronavírus, contrário a preservação da vida representa quase um contraditório, pois o princípio fundamental posto como meta atual é direito à vida. Não restando outra opção para o STF.

Então, parece-nos oportuno julgar um caso delicado como o aborto em meio à pandemia e embasar no mais importante direito garantido pelo artigo 5° da Constituição Federal.

De todo modo, é necessária cautela ao cogitar o aborto de fetos em gestantes que contraíssem o zika, uma vez que não necessariamente o vírus passará para o feto, apesar de a probabilidade ser alta. Haveria o risco de criar uma discriminação tanto em relação às pessoas com deficiência, quanto em relação a outras condições que poderiam ser passíveis de discussão sobre aborto, como a Síndrome de Down, caso esse tipo de ação fosse positiva.

Apesar de existir a lei federal n°. 13.985, de 2020[2] que garante pensão vitalícia no valor de um salário mínimo para amparar as crianças com microcefalia atingidas pelo zika, sabemos que é comum que os gastos ultrapassem o valor recebido, normalmente um dos pais acaba por ficar em tempo integral com a criança, inclusive pedindo demissão.

No mais, a questão da permissibilidade do aborto deve ser decidida em âmbito do poder Legislativo e não do STF, tendo em mente a inviolabilidade do direito à vida garantida constitucionalmente. A mudança começa pelo Congresso.

A título de curiosidade, a Suécia foi uma das pioneiras na permissão do aborto. Em 1938, a prática já era permitida por razões médicas, humanitárias ou eugênicas. Atualmente, a mulher pode escolher abortar até a 18ª semana de gestação, sendo também permitido até a 22ª semana por motivos de força maior, como inviabilidade do feto. Na mesma linha, em 2010 a Espanha, através de um projeto de lei, possibilitou a realização do aborto entre adolescentes entre 16 e 18 anos sem o consentimento dos pais[3].

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Conclusão

O Brasil ainda caminha em termos de planejamento familiar, sobretudo sobre a acessibilidade do congelamento de óvulos. O direito reprodutivo e escolhas sobre a melhor gerência do corpo não são realidades de todas as mulheres brasileiras, porquanto faltam condições financeiras e até educacionais básicas.

A tomada de decisão muitas vezes fica em segundo plano, afinal, não é direito à vida que nos rege? Fortemente influenciado pela religião, temos uma garantia constitucional quase suprema, com poucos casos de mitigação, sujeitando-nos a cometer crimes ao infringi-la.

Talvez, em outro governo, com ideais diferentes, o aborto seja legalizado para todo e qualquer caso. Até lá, ficamos à mercê de decisões alheias. Com isso, podemos concluir que a mulher não goza do pleno direito ao próprio corpo e é fácil perceber a constante necessidade de se provar capaz de realizar algum trabalho, por exemplo.

No fim, lutamos por um Direito de Família e um direito reprodutivo mais justo, que as tomadas de decisões sejam efetivamente iguais entre os cônjuges/companheiros, para que possam falar, e igual também quando comparada ao restante da sociedade.

Pouco se fala sobre o direito do outro cônjuge/companheiro(a) de opinar, a outra opinião usualmente é desconsiderada. O ponto merece um especial esclarecimento: não se trata do direito de fala do outro superior à escolha da mãe; mas há uma chance, ainda que pequena, do outro querer cuidar da criança que seria abortada, incluindo crianças com microcefalia causada pelo zika vírus.

Chancelar o aborto e dar ilimitadas possibilidades àquela grávida pode trazer certos efeitos pouco debatidos mediante enorme e, frisa-se, fundamental, movimento feminista.

Não visamos, de forma alguma, a retirar a parcela desse movimento. Porém, em uma de suas correntes, luta-se pela igualdade, e não superioridade. Igualdade significa também dar o direito de voz e reconhecer os reflexos e impactos de decisões próprias. O individualista pode saber que existem pontos de vista e crescer com eles.


Referências

ALVES, José Eustáquio Diniz. O planejamento familiar no Brasil. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2010/06/01/o-planejamento-familiar-no-brasil-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/. Acesso em 01/05/2020.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo; tradução de Sérgio Milliet. 4ª Ed. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1970.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 2012.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

HAIDAR, Rodrigo. STF permite interrupção de gravidez de feto anencéfalo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-abr-12/supremo-permite-interrupcao-gravidez-feto-anencefalo. Acesso em: 02/05/2020.

LOEFFLER, Sharee. How Many Eggs Are Ovulated in a Woman’s Lifetime? Disponível em: https://www.avawomen.com/avaworld/ovulated-egg/. Acesso em: 02/05/2020.

LUCÍRIO, Ivonete. Como é feito o congelamento de óvulos? Disponível em: https://saude.abril.com.br/medicina/como-e-feito-o-congelamento-de-ovulos/. Acesso em: 01/05/2020.

ROCHMAN, Bonnie. Don’t count on having kids if you freeze your eggs. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2019/08/14/133377/mothers-journey-egg-freezing-parenthood/. Acesso em: 02/05/2020.


Notas

[1] Para maiores informações, acessar: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/30/senadores-elogiam-decisao-do-stf-que-rejeitou-aborto-para-mulheres-com-zika. Acesso em: 02/05/2020.

[2] Para maiores informações, acessar: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/08/sancionada-lei-que-garante-pensao-vitalicia-a-criancas-atingidas-por-zika-virus. Acesso em 02/05/2020. 

[3] Para maiores informações, acessar: https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/os-15-primeiros-paises-que-legalizaram-o-aborto/. Acesso em: 03/05/2020.

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Sobre a autora
Mirela Reis Caldas

Bacharel em Direito pela FICR/Pernambuco, pós-graduada em Direito Tributário Municipal pelo IAJUF. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALDAS, Mirela Reis. Direito reprodutivo: ensaios sobre congelamento de óvulos, zika vírus e lutas feministas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6159, 12 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81824. Acesso em: 21 nov. 2024.

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