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A inconstitucionalidade do inquérito das fake news

19/06/2020 às 15:15
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O que diria Rui Barbosa sobre o inquérito das fake news, em que o Poder Judiciário investiga, acusa e julga, tudo em causa própria e sem fundamentação legal?

“A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.” Esta é uma memorável citação do jurista baiano Rui Barbosa, o que sugere que, já naquela época, havia preocupação com relação a atos e posturas prepotentes de membros deste Poder que, por não depender de aprovação popular, costuma seguir desalinhado com a realidade econômica e social do país.

O que diria Rui Barbosa sobre o inquérito das fake news, em que o Poder Judiciário investiga, acusa e julga, tudo em causa própria e sem fundamentação legal?

Não se pretende, neste artigo, relembrar os motivos deste inquérito, pressupondo que estas são do conhecimento de todos, devido a ampla cobertura midiática recente. Também não se pretende mitigar a gravidade das acusações já de conhecimento popular, as quais devem merecer a devida punição na forma da lei. O foco desta reflexão é a condição atípica e inconstitucional do Inquérito nº 4.781, das fake news, que tramita no STF. Portanto, a reflexão enfocará a forma, o processo e não o direito material.

Deve-se reconhecer a atitude desprezível de pessoas que pregam o fechamento do STF, do Congresso Nacional, a ameaça aos seus membros, e de outras instituições que dão suporte à democracia. As manifestações promovidas pelo país com esta agenda irresponsável e antidemocrática devem merecer o repúdio das pessoas de bem que aspiram um país melhor. Da mesma forma, a débil postura de propagar notícias falsas, difamações ou ameaças a instituições ou a seus membros deve ser condenada na forma da lei. Todos estes movimentos de manifestações de pequenos grupos, sem nenhuma representatividade, sem bandeira definida, que visam a, apenas, ganhar a mídia, e, muitas vezes, estimuladas pelo próprio governo federal, devem ser repudiados e penalizados quando materializarem atos ilícitos.

No entanto, o curso sancionatório deve seguir o rito regular do ordenamento jurídico vigente, respeitando as competências dos órgãos segundo os desígnios constitucionais. Haveria de ter uma acusação formal contra estes criminosos, de autoria do MP, para que o Judiciário julgasse. Quem julga não pode também acusar. A concentração da acusação e julgamento na mesma instituição soa de forma estranha até para o leigo em conhecimento jurídico.  

O poder acusatório é do Ministério Público, com suporte nas investigações policitais, nos termos do art. 129, da Constituição Federal, não cabendo ao STF, de ofício, instaurar o inquérito, cuja causa será julgada pela mesma Corte. De forma simplificada, a autoridade policial investiga, o Ministério Público denuncia e o Judiciário julga. É inconcebível que uma instituição tenha a iniciativa de investigar, formalizar a acusação e julgar a causa. Esta pretensão revela uma postura egocêntrica do STF.

Para dar suporte à competência investigativa e acusatória, a Corte busca fundamentos no art. 43 do seu Regimento Interno.

“Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.”

Uma simples leitura, sem esforço de hermenêutica, demonstra que este dispositivo tem alcance delimitado às dependências do Tribunal; destina-se às soluções domésticas da Corte, criando o suporte legal para a instauração de inquérito para investigar as infrações à lei praticadas nas dependências do STF, condicionado ainda que a autoridade envolvida esteja sujeita à sua jurisdição. Portanto, este dispositivo não alterou, como de fato não poderia, a distribuição de competências consignadas na Constituição Federal, mantendo, como órgão acusador, o Ministério Público, com ressalvas prescritas para os ilícitos praticados nas dependências da Corte.

A interpretação elástica que se pretende dar a este artigo para dar o verniz de constitucionalidade a este inquérito é insustentável, principalmente porque atenta contra o rito acusatório. A interpretação tem limite até o ponto em que mantiver consistência com a norma veiculada; não pode a interpretação ser uma manobra de corromper a lei. O dispositivo do Regimento Interno se refere claramente a infrações praticadas nas dependências do STF, e assim deve ser aplicado, em conformidade com todo o contexto jurídico pátrio.

Pelo que se tem conhecimento, as ameaças reveladas contra o STF são reais, inaceitáveis e devem ser combatidas com veemência, segundo as normas de regência. Conforme já pontuado acima, o país está tomado por grupos extremistas, inconsequentes, sem nenhuma representatividade, que tumultuam a ordem, com suas manifestações e reivindicações absurdas e contra a democracia. Nesta circunstância, deve o Estado agir, mas através dos instrumentos constitucionalmente estabelecidos, com a definição de competências específicas para cada instituição. Tais movimentos ruidosos e criminosos devem ser investigados pela polícia, com a denúncia própria pelo MP, acionando o Poder Judiciário para o julgamento.     

Ressalvadas as ameaças, calúnias ou difamações criminosas, que devem sofrer o peso da sanção legal, o STF deve, por outro lado, saber que está sujeito sim a críticas, enquanto órgão público que é, a serviço do povo. Não é demais registrar que o Poder Judiciário, em especial o STF, tem se demonstrado muito sensível com relação às críticas que lhe são dirigidas, reagindo a elas de forma desproporcional, colocando-se num pedestal superior, refratário às manifestações de desaprovação da sociedade. Por vezes, as críticas mais contundentes e agressivas são havidas como atos de ameaça à Corte, com consequente quebra na estabilidade institucional. Se o Presidente da República é chamado de fascista, golpista, miliciano, tudo sem prova, nada acontece; mas se as acusações do mesmo tom forem direcionadas ao STF, a reação se eleva, sempre com o argumento de ameaça à democracia.

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É claro que há de se preservar o respeito aos três Poderes, sem ameaças e sem agressões, mas as críticas devem ser aceitas e assimiladas como um sinal negativo sobre a atuação da instituição alvo da manifestação negativa. Cabe ao Judiciário fazer uma autocrítica para tentar identificar as razões do grau de desaprovação popular. A soberba demonstrada por alguns membros do Judiciário, com o menosprezo aos jurisdicionados, a quem devem prestar serviços, o ativismo judicial exacerbado, bem como a jurisprudência vacilante, são causas que, certamente, contribuem para esta insatisfação popular. As críticas devem impulsionar uma revisão de postura da instituição e, não somente, acionar o seu mecanismo de defesa.

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Sobre o autor
Deonísio Koch

Advogado tributarista, ex-conselheiro titular do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina – TAT, ex-auditor fiscal e professor de Direito Tributário, Tributos Estaduais e Processo Administrativo Tributário. e-mail: [email protected] ou [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KOCH, Deonísio. A inconstitucionalidade do inquérito das fake news. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6197, 19 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83288. Acesso em: 16 abr. 2024.

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