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A responsabilidade patrimonial do empresário individual sem personalidade jurídica

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02/07/2020 às 12:00
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Mesmo despido da personalidade jurídica, e ainda que a sua responsabilidade seja ilimitada, o empresário pessoa física conta com um simples e robusto sistema protetivo frente aos credores, a permitir que bem desenvolva sua atividade.

Introdução.

A atividade empresarial, fundamental à consecução dos princípios constitucionais que regem a atividade econômica, encontra no empresário individual um importante elemento a traduzir o espírito da livre iniciativa.

Justamente em razão da importância social e econômica do empresário, é que se tem por necessária a adequada a abordagem sobre os efeitos decorrentes do exercício da empresa individual, notadamente a título de responsabilidade patrimonial.

As incertezas do mercado, as variações da economia, as inconstâncias políticas e mesmo certa insegurança jurídica, impõem ao empresário justificada atenção aos limites da sua responsabilidade patrimonial, pelas obrigações da empresa exercida.

A delimitação de tal responsabilidade está diretamente relacionada à forma com que a atividade empresarial restou constituída, estabelecendo graus de maior ou menor responsabilização, conforme a estrutura legal adotada.

Embora a lei exija que o início de qualquer atividade empresarial seja precedido pela inscrição nos órgãos competentes, o simples atendimento a tal exigência não serve, por si, a conferir personalidade jurídica ao empresário, já que a personificação está a depender do modelo de empresa escolhido.

Sem olvidar do empresário informal, que opta por desenvolver a sua empresa sem atender à obrigação de regular inscrição nos órgãos de registro, o ordenamento oferece a alternativa de inscrição da empresa individual, com ou sem personalidade jurídica, e, a depender do modelo escolhido, decorrem diferentes níveis de responsabilidade patrimonial.

Sob tais aspectos, pelo método dedutivo, com pesquisa bibliográfica e documental jurídica, o presente estudo intenciona apontar as consequências patrimoniais da ausência de personalidade jurídica do empresário individual, comparativamente àquele que ostenta a personificação.


1. Do empresário. Opções de inscrição e efeitos.

Como concretização do princípio constitucional da Livre Iniciativa, preceito fundamental a reger a Ordem Econômica, previsto no artigo 170 da Constituição Federal, é dado a todos a oportunidade de livremente iniciar uma atividade empresarial, observadas certas limitações legais de ordem subjetiva e objetiva.

Garante-se, assim, o empreendedorismo, que bem se expressa pelo exercício de empresa, atividade própria do empresário ou da sociedade empresária, regida por todo um arcabouço jurídico próprio. 3224. 4026 A típica atividade empresarial, tal como delineada no caput do artigo 966 do Código Civil, pode ser desenvolvida por quem assim se manifestar interessado em aderir aos sistemas de inscrição ou registro que a lei faculta, seja de forma individual, ou com a participação de sócios.[1]

Não se ignora a existência de empresários irregulares ou informais, que são ordinariamente aqueles que não se inscrevem como tais nas Juntas Comerciais, em desobediência ao que determina o artigo 967 do Código Civil.[2]

Entretanto, reconhecendo uma clara realidade, e em atenção ao primado da Livre Inciativa, mesmo àqueles que, irregularmente, desenvolvem atividades empresariais pela falta de inscrição prévia, a Lei acaba por considerá-los típicos empresários, bastando que reúnam as características descritas no citado caput do art. 966 do Código Civil.[3]

Por óbvio, aos empresários irregulares não se conferem certas prerrogativas ou direitos que são inerentes à condição de regularidade empresarial, como a ausência de personificação, a responsabilidade ilimitada, a impossibilidade de requererem recuperação judicial etc.

Há, portanto, duas alternativas postas à disposição dos interessados em ingressar regularmente no mercado para o desenvolvimento de uma típica atividade empresarial, com a prévia inscrição na Junta Comercial: Iniciar uma atividade empresarial como empresário individual, sem se consorciar com outrem, ou, constituir uma sociedade empresária, ordinariamente plural quanto ao número de participantes.

No direito societário atual, decorrente das alterações introduzidas pela Lei 13.874 de 20 de setembro de 2019 (Declaração de Direitos de Liberdade Econômica), a atividade empresarial poderá ainda ser desenvolvida por uma única pessoa, natural ou jurídica, ao constituir uma Sociedade Limitada Unipessoal, como autoriza o novo §1º do artigo 1.052 do Código Civil.[4]

Excluída a hipótese de constituição de uma Sociedade Limitada Unipessoal, a pessoa natural que optar pelo exercício de atividade empresarial, sem sócios, contará atualmente com duas alternativas: Inscrever-se na Junta Comercial como empresário pessoa natural, ou como pessoa jurídica optante do sistema da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI.

Tal cenário, contudo, quanto às citadas opções de inscrição são relativamente recentes, pois até o advento da Lei 12.441 de 11 de julho de 2011, que introduziu em nosso sistema a existência da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI, a pessoa natural interessada em inaugurar por si uma atividade empresarial sem se consorciar com outrem, contava com apenas uma alternativa de inscrição junto aos órgãos regulares de registro de empresas, qual seja, a de se inscrever como empresário sem personalidade jurídica.

A EIRELI trouxe uma importante inovação, oportunizando à pessoa natural constituir regular empresa com personalidade jurídica e responsabilidade limitada, sem a necessidade de se consorciar com outrem, já que antes da vigência da Lei 12.441/2011, a única forma de personificação e limitação de responsabilidade se dava pela constituição de sociedades empresárias, pela sociedade Limitada ou Anônima.

Todavia, e a despeito dos evidentes atrativos que a EIRELI e a Sociedade Limitada Unipessoal anunciam aos interessados em aderir aos seus sistemas, faculta-se à pessoa natural que pretenda se tornar um regular empresário, simplesmente se inscrever na Junta Comercial sem que adira à sobredita Empresa Individual de Responsabilidade Limitada ou à Sociedade Limitada Unipessoal.

A pessoa natural, eventualmente não optante do sistema da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, conquanto cuide de regularmente se inscrever nas correspondentes Juntas Comerciais, como determina o sobredito art. 967 do Código Civil, e ainda que se torne por isso um típico empresário, em qualquer hipótese não adquirirá personalidade jurídica, e a sua responsabilidade empresarial será ilimitada.

Consequentemente, face à falta de personificação, o empresário submeter-se-á às incertezas decorrentes da comum confusão obrigacional e patrimonial entre as suas obrigações pessoais, próprias do cotidiano das pessoas naturais em geral, e aquelas obrigações decorrentes dos negócios realizados em razão da atividade empresarial.

Ausente a personificação jurídica, mesmo o patrimônio do empresário, este considerado como aquele destinado ao exercício da atividade empresária e consecução do seu objeto, não se separa ou se distingue legalmente do patrimônio particular  do titular da atividade, cuja destinação não se confunde com os objetivos empresariais.

De fato, a falta de personalidade jurídica, dentre outros efeitos, impede que haja formal e regular distinção entre os bens que integram a empresa e os bens que naturalmente destinam-se aos interesses diversos da pessoa natural que titulariza e exerce a empresa.

Embora se reconheça ser possível identificar quais bens integram o patrimônio da empresa, de fato e de direito, distinguindo-os dos bens particulares do titular da empresa, a ausência de personificação jurídica impede que tal distinção se concretize tal como se dá nas hipóteses em se tem presente a personalidade jurídica, o que acaba por vulnerar o empresário pessoa natural quando em comparação com o EIRELI ou com a Sociedade Limitada Unipessoal.

Afinal, a pessoa jurídica tem identidade, obrigações, responsabilidades e patrimônio próprios, que não se confundem com tais atributos ou interesses das pessoas naturais (ou pessoa) que a constituem e integram.

Independentemente da teoria a ser adotada sobre o que se deve compreender por uma pessoa jurídica, é certo que esse ente juridicamente personificado é patrimonialmente independente, sendo facilmente possível a identificação dos bens que integram o seu acervo patrimonial, distinguindo-o, portanto, daquele patrimônio das pessoas que titularizam a empresa.

Como consequência da personalidade jurídica, não se pode duvidar que aos credores da empresa personificada, inicialmente, e em regra, respondem apenas os bens dessa pessoa jurídica, que, reforce-se, não se confundem com os bens das pessoas naturais que a integram.

Referindo-se aos efeitos da personificação empresarial, embora relativamente às sociedades empresárias personificadas, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que “na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e a os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora de tais obrigações”.[5]

Apenas por essa razão, já se pode concluir pela compreensível predileção dos empresários ao desenvolvimento de suas atividades sob a forma de empresas personificadas, pois tais modelos indubitavelmente servem a definir a necessária e útil separação patrimonial entre os bens que pertencem à pessoa jurídica daqueles que são dos seus titulares.

É certo que a falta de personificação impede que haja uma clara distinção patrimonial entre o que pertence à pessoa natural e o que é do empresário, o que, como antes alertado, pode se transformar em fator de desestímulo àqueles que pretendem dar início às suas atividades de empresa sem aderir à EIRELI ou à novel Sociedade Limitada Unipessoal.

Assim, a pessoa natural que não adere à EIRELI ou à Sociedade Limitada Unipessoal, em tese não gozaria de qualquer limitação quanto à responsabilidade patrimonial frente aos credores da empresa que vier a desenvolver, ou seja, a sua responsabilidade pelas obrigações das empresas envolve a integralidade do seu patrimônio.

Como bem esclarece Sergio Campinho, o “exercício da empresa pelo empresário individual se fará sob uma firma, constituída a partir de seu nome, completo ou abreviado, podendo a ele ser aditado designação mais precisa de sua pessoa ou do gênero de atividade. Nesse exercício, ele responderá com todas as forças de seu patrimônio pessoal, capaz de execução, pelas dívidas contraídas, uma vez que o Direito brasileiro não admite a figura do empresário individual com responsabilidade limitada e, consequentemente, a distinção entre patrimônio empresarial (o patrimônio do empresário individual afetado ao exercício de sua empresa) e patrimônio particular do empresário, pessoa física.”[6]

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Ao se anunciar como empresário individual, pois, a pessoa natural não goza de qualquer distinção patrimonial frente aos seus credores, e perante os mesmos, portanto, será instada a responder ilimitadamente.

Face à essa realidade, e antes do advento da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, já se percebia, com razoável frequência, a constituição de sociedades empresárias com evidentes distorções quanto à distribuição de quotas entre os sócios, sendo comum encontrarmos sociedades limitadas com apenas dois sócios, cabendo a um deles 99% do capital social, e o ínfimo remanescente ao outro.

Tais organizações claramente denunciavam a inexistência de qualquer affectio societatis, sendo mesmo patente, nesses casos, a ausência de interesse dos sócios em conjugar esforços à consecução de um objetivo empresarial comum. O que se percebia, em casos tais, era que o sócio detentor da ampla maioria das quotas, na verdade, intencionava desenvolver por si a atividade empresária sem se consorciar com outrem.

A justificar a opção pela constituição de sociedades ao invés de desenvolver por si a atividade empresarial, André Santa Cruz esclarece que “a responsabilidade dos sócios de uma sociedade empresária, além de ser subsidiária, pode ser limitada, o que ocorre, por exemplo, nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas. (...) Já o empresário individual, em nosso ordenamento jurídico, além de responder diretamente com todos os seus bens pelas dívidas contraídas no exercício de atividade econômica (inclusive seus bens pessoais), não goza da prerrogativa de limitação de responsabilidade. Portanto, enquanto a responsabilidade do empresário individual é direta e ilimitada, a responsabilidade do sócio de uma sociedade empresária é subsidiária (seus bens só podem ser executados após a execução dos bens sociais) e pode ser limitada, a depender do tipo societário utilizado. Do que se expôs acima, fica fácil entender porque, no Brasil, o exercício de empresa em sociedade é mais vantajoso do que o exercício de empresa individualmente. A constituição de sociedade empresária para exploração de atividade econômica permite que os sócios calculem melhor o seu risco empresarial, resguardando seus bens pessoais em caso de insucesso do empreendimento.”[7]

Atento a esse cenário, é que o legislador pátrio primeiro inseriu em nosso ordenamento a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, e, mais recentemente, a Sociedade Limitada Unipessoal, com a clara intenção de oportunizar à pessoa natural que pretendesse iniciar regularmente a sua atividade empresarial de forma individual, passar também a ostentar personalidade jurídica e a gozar de responsabilidade limitada, tal como a Sociedade Limitada.

Com efeito, a Lei 12.441/11, além de definir a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, adicionando o artigo 980-A e seus seis parágrafos ao Código Civil, igualmente incluiu o inciso VI ao artigo 44 do mesmo diploma civil, criando um novo ente personificado, de forma a permitir que a pessoa natural pudesse enfim adquirir personalidade jurídica ao aderir à EIRELI.[8]

Também assim o fez a Lei 13.874 de 20 de setembro de 2019, ao permitir que uma única pessoa pudesse reunir a integralidade de quotas de uma sociedade limitada, constituindo assim uma pessoa jurídica de natureza societária empresarial.

Àqueles que optarem pelo modelo da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, passam a se escudar de seus credores pela responsabilidade limitada, tal como há muito já se protegiam os sócios de uma sociedade limitada plural frente às dívidas da empresa que integravam.

Dadas tais vantagens decorrentes da personificação e da consequente distinção patrimonial, aliadas à responsabilidade limitada, era de se acreditar que a EIRELI tomaria integral interesse das pessoas naturais que intencionassem desenvolver por si uma atividade empresarial. E a expressa previsão no parágrafo terceiro do art. 980-A, anuncia o estímulo da conversão daquelas falaciosas sociedades, cuja participação no capital social entre os sócios era evidentemente aparente, em EIRELI, com a concentração das quotas num único sócio.[9]

Entretanto, diante da exigência da integralização de capital em significativos valores definidos no caput do artigo 980-A do Código Civil[10], a pessoa natural que pretendesse iniciar uma regular atividade empresarial e não dispunha de tais valores, passava a contar apenas com a opção de se inscrever na Junta Comercial como empresário sem personificação. Esse cenário, contudo, e como já sabido, foi alterado, pelo novo parágrafo §1º do Art. 1.052 do Código Civil, trazendo consigo a opção de se constituir uma sociedade limitada singular, e sem a limitação quantitativa mínima de integralização do capital social como se exige na EIRELI.

Hodiernamente, portanto, por força da L. 13.784/2019, talvez a Sociedade Limitada Unipessoal se converta em modelo de preferência aos empresários que pretendam exercer a sua atividade sem se consorciarem com sócios, relegando a EIRELI a um papel secundário.

Independentemente das razões que podem motivar alguém a não aderir ao modelo da Sociedade Limitada Unipessoal, que não conta com a exigência de integralização mínima presente na EIRELI, é certo que permanece firme em nosso ordenamento a alternativa da pessoa natural se inscrever na Junta Comercial como simples empresário individual, mesmo que sem personalidade jurídica e com responsabilidade ilimitada do seu titular.

Em uma conclusão razoável, poderia então se cogitar de severa desvantagem e até mesmo algum prejuízo ao empresário não optante da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, já que não ostenta personalidade jurídica e responde ilimitadamente perante os seus credores.

Porém, a despeito da evidente distinção entre o empresário que adere à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada ou à Sociedade Limitada Unipessoal, daquele que não opta por tais modelos, considerando os dois principais fatores que os distinguem (personificação e responsabilidade perante credores), é possível afirmar que o empresário individual que optou por não ostentar personificação pode não estar em tão grande desvantagem, como poderia inicialmente parecer.

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Sobre o autor
Luís Inácio Carneiro Filho

Advogado, mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutorando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Civil e Empresarial da Faculdade de Direito de Itu. Professor de Direito Empresarial e de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito de Sorocaba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Luís Inácio Carneiro. A responsabilidade patrimonial do empresário individual sem personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6210, 2 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83601. Acesso em: 25 abr. 2024.

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