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Considerações sobre a ADPF 442.

O sistema brasileiro de direitos fundamentais e a possível descriminalização do aborto pela via jurisprudencial

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08/07/2020 às 09:35
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Principais aspectos relacionados à ADPF 442, que pleiteia a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal para descriminalizar o aborto realizado no primeiro trimestre da gestação.

Resumo: O presente trabalho pretende analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade, que pleiteia a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, para descriminalizar a prática abortiva no primeiro trimestre da gestação, e os possíveis caminhos a serem adotados pelo Supremo Tribunal Federal na ocasião deste julgamento, considerando o sistema constitucional de direitos fundamentais vigente em nosso país, a partir de uma análise da letra da Constituição e da legislação infraconstitucional, dos ensinamentos da doutrina a respeito dos direitos e garantias individuais e coletivos e dos precedentes do próprio STF em outras ações que envolveram a temática do aborto.

Palavras-chave: Aborto. Nascituro. Gestante. Direitos Fundamentais.

Sumário: Introdução. 1. O Supremo e o Aborto. 1.1. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. 1.2. O precedente da ADPF 54. 1.3. O precedente do HC nº 124.306/RJ. 2. O Sistema Constitucional Brasileiro de Direitos Fundamentais. 2.1. O Direito à Vida e o Princípio da Dignidade Humana. 2.2. O Código Penal como ferramenta de proteção aos direitos fundamentais. 2.3. O crime de aborto e os direitos do nascituro. 3. Quando os direitos entram em conflito. Conclusão. Referências Bibliográficas.


Introdução.

Há, na sociedade brasileira, um crescente movimento pela descriminalização da conduta abortiva nos três primeiros meses da gestação, sob o fundamento de que os direitos de escolha da mulher deveriam se sobrepor aos direitos do ser intrauterino. Tem-se, dessa maneira, um claro e evidente conflito de bens jurídicos: de um lado, os direitos femininos de autodeterminação; de outro, o direito à vida do produto da concepção.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou duas vezes sobre este conflito, através de uma decisão plenária na ADPF 54, que culminou na descriminalização do aborto dos fetos anencéfalos; bem como em uma decisão de turma no HC 124.306/RJ, em que três Ministros se manifestaram expressamente pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto nos três primeiros meses da gravidez. O próximo passo será dado no julgamento da ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade, que busca a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, a fim de descriminalizar a conduta abortiva nos três primeiros meses da gestação, feito que já se encontra próximo do julgamento, já tendo ocorrido audiência pública com diversos atores sociais para debater o tema.

Em razão do precedente do HC 124.306/RJ, em que três Ministros entenderam pela descriminalização do aborto nos três primeiros meses gestacionais, pode ser que o Supremo esteja caminhando neste sentido, motivo pelo qual este estudo analisará qual seria a melhor decisão a ser tomada pela Corte na ocasião do julgamento da ADPF supramencionada, considerando todo nosso sistema constitucional de proteção aos direitos fundamentais, a partir de lições da doutrina e da jurisprudência a respeito do princípio da dignidade humana, dos direitos de liberdade da mulher e do direito à vida do nascituro.


1. O Supremo e o Aborto

O Supremo Tribunal Federal é a corte máxima do sistema judiciário pátrio, sendo a responsável por declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, a fim de preservar a compatibilidade do ordenamento jurídico brasileiro com os princípios e regras estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

Assim, tem-se que o instituto do aborto, figura prevista como crime pelos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, e que parte da sociedade entende que não deveria ser criminalizada nos três primeiros meses da gestação, inevitavelmente teria que ser enfrentada pelo STF, a fim de estabelecer uma solução definitiva acerca da compatibilidade, ou não, do referido tipo penal com o sistema constitucional brasileiro.

Por duas ocasiões, o Supremo já se manifestou sobre o tema: Na ADPF 54, a Corte entendeu pela descriminalização da interrupção da gestação quando o feto for anencéfalo, por entender que a hipótese não seria de crime contra a vida, visto que vida pressupõe atividade cerebral; e no HC 124.306/RJ, em que três ministros manifestaram entendimento no sentido de que a criminalização da interrupção do parto nos três primeiros meses da gravidez seria incompatível com o sistema constitucional vigente, motivo pelo qual os artigos 124 e 126 do Código Penal, que estabelecem as hipóteses de auto-aborto e aborto consentido pela gestante, não teriam sido recepcionados em sua integralidade pela Constituição de 1988.

Essa última decisão, no entanto, não se reveste de efeito vinculante, visto que foi proferida em sede de controle concreto, gerando efeito somente para as partes do processo. Ou seja, o aborto permanece sendo crime em qualquer fase da gestação. No entanto, já tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação de controle abstrato de constitucionalidade, buscando uma decisão com efeito erga omnes acerca da questão. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que pode representar um grande marco histórico da nossa jurisprudência.

1.1. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442

A Arguição de Descumprimento de Prefeito Fundamental (ADPF) está prevista no artigo 102, parágrafo primeiro, da Constituição de 1988, e é uma ação proposta exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, cujo objetivo é evitar, ou reparar, lesão a preceito fundamental estabelecido pela Constituição, resultante de ato do poder publico, ou então questionar a constitucionalidade de alguma norma que, supostamente, desrespeite tal preceito.

Na ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), questiona-se que a criminalização da interrupção do parto nos três primeiros meses da gestação desrespeitaria preceitos fundamentais relacionados à dignidade da mulher, motivo pelo qual pleiteia-se a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, para descriminalizar a conduta durante este período de 12 semanas.

A referida ação, subscrita pelas advogadas Luciana Boiteux, Luciana Genro, Gabriela Rondon e Sinara Gumeri, tem como relatora a Ministra Rosa Weber, e se fundamenta quase que exclusivamente nos direitos de liberdade das mulheres, fazendo uso de muitas fontes do direito comparado, com a menção a vários países que regulamentaram o aborto, sem, no entanto, entrar no mérito sobre quando começa a vida humana. Ou seja, pretende-se que seja reconhecido que os direitos reprodutivos femininos teriam maior expressão jurídica do que o direito à vida do nascituro.

Na petição inicial da ADPF, a arguente menciona diversas vezes o exemplo do sistema jurídico dos Estados Unidos, que, a partir da decisão proferida no caso “Roe vs Wade”, passaram a autorizar a prática abortiva em todos os seus Estados. O referido processo tinha como parte requerente a norte-americana Norma McCovery, conhecida pelo pseudônimo “Jane Roe”, que demandou contra o Estado do Texas com a finalidade de conseguir autorização para interromper sua gestação, alegando que teria sido vítima de relação sexual forçada por Henry Wade, um funcionário público do Condado de Dallas. A ação acabou chegando à Suprema Corte dos Estados Unidos, que, no ano de 1973, quando a criança fruto da relação já tinha nascido e sido entregue à adoção, proferiu acórdão histórico, relatado pelo Juiz Harry Blackmun, que firmou o precedente adotado até hoje no sistema jurídico norte-americano, no sentido de que a mulher, amparada pelo seu direito à privacidade, garantido pela décima-quarta emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, tem liberdade para decidir pela continuidade ou não de seu processo gestacional, o que, na prática, legalizou o aborto no território norte-americano. Um fato curioso é que, no ano de 1987, Jane Roe admitiu que não havia sido vítima de violência sexual, e que teria inventado a história, sob orientação de suas advogadas, para que conseguisse autorização para abortar, visto que, na época, as leis do Texas não permitiam o aborto e ela não dispunha de recursos financeiros para viajar para outro estado para realizar o procedimento.

O paradigma norte-americano, portanto, se baseia na ideia de que a proibição do aborto violaria os direitos à privacidade da gestante e, por isso, a conduta foi descriminalizada quando realizada no primeiro trimestre da gestação.

Esse entendimento, pelo menos até a presente data, não cabe em nosso sistema jurídico, pois, no ordenamento normativo dos Estados Unidos, percebe-se uma relativização do direito à vida que não encontra espaço no Brasil, conforme será abordado mais adiante.

Ou seja, no direito norte-americano a liberdade da mulher seria um valor jurídico com maior expressão do que a vida do nascituro, entendimento que, por enquanto, não é acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, embora seja o que pretende a ADPF nº. 442.

Dentre os argumentos levantados pelas advogadas subscritoras da arguição, estão o de que “a criminalização do aborto e a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida”, bem como “provoca violações ao direito à saúde (CF, art. 6º), à integridade física e psicológica das mulheres e à proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, III), uma vez que a negação do direito ao aborto pode levar a dores e sofrimentos agudos para uma mulher, ainda mais graves e previsíveis conforme condições específicas de vulnerabilidade que variam com a idade, classe, cor e condição de deficiência de mulheres, adolescentes e meninas”. Ou seja, o objetivo da ADPF é que o Supremo Tribunal Federal reconheça que os direitos de escolha da mulher devem se sobrepor aos direitos do nascituro.

Em razão da grande relevância da matéria, a Ministra Rosa Weber convocou audiência pública para tratar do tema, o que ocorreu nos dias 03 e 06 de agosto de 2018, com a presença de especialistas da área da saúde, de movimentos feministas, de partidos políticos, de entidades religiosas, entre outros grupos representativos.

Atualmente, o último movimento do processo é uma manifestação da Procuradoria Geral da República, do dia 12 de maio de 2020, da lavra do Procurador-Geral, Augusto Aras, pugnando pela improcedência da ADPF. Neste parecer, o Procurador afirma que o Supremo Tribunal Federal não pode atuar como legislador positivo, e que a matéria cabe ao Congresso Nacional. Acrescenta, ainda, que, diante de diferentes correntes científicas acerca do marco inicial da vida humana, cabe ao poder legislativo, que é o órgão legitimamente constituído para representar a vontade da população, decidir qual seria este marco, seguindo, é claro, pareceres técnicos de especialistas no assunto.

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Compete destacar que o poder legislativo também foi instado a se manifestar no feito, tendo a Câmara dos Deputados apresentado parecer no sentido de que a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal já foi reafirmada pelas comissões temáticas daquela Casa Legislativa na ocasião da apreciação de alguns projetos de lei que versavam sobre o referido tipo penal. A manifestação reafirma, ainda, que o tipo penal do aborto protege o mais fundamental dos direitos garantidos pela Constituição, que, ao não delimitar etapa específica da gestação, garantiu a proteção em qualquer fase que o nascituro se encontre.

Nas palavras do Deputado Rodrigo Maia, que assinou o ofício encaminhado ao STF, “faz-se mister salientar que crime de aborto previsto nos artigos 124 e 126 do Decreto-Lei n. 2.848/1940 está inserido, no Código Penal, no título dos crimes contra as pessoas, no capítulo dos crimes contra a vida. Percebe-se, pois, que os delitos em questão possuem como bem jurídico a ser tutelado a vida humana intrauterina. Assim, a prática do crime de aborto significa atentar contra a vida, direito fundamental inviolável, resguardado pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal – CF, dispositivo este que não faz distinção entre a vida extra e intrauterina. (…) Nessa medida, o marco legal da criminalização do aborto está adequado. Protege-se a vida, a dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa do Brasil, independente da fase em que a gestação se encontra, nos termos do artigo 5º, caput, da CF.”

A outra Casa Legislativa, o Senado Federal, também se manifestou no processo, igualmente rechaçando a tese proposta na ADPF, tendo registrado que o Código Civil (Lei 10.406/2002) foi editado sob a égide da Constituição de 1988, e consagra, em seu artigo 2º, a proteção aos direitos do nascituro, o que evidencia que a constitucionalidade da tutela jurídica do ser intrauterino já foi referendada pelo poder legislativo.

Percebe-se, portanto, que as duas casas do Congresso Nacional tecem argumentos no sentido de que o direito fundamental à vida do nascituro merece maior proteção do que os direitos reprodutivos da mulher, bem como no de que, na ausência de marco legal expresso acerca do início da vida humana, deve prevalecer a proteção constitucional desde a concepção.

A Presidência da República e a Advocacia Geral da União também se manifestaram na ação, tendo, igualmente, pugnado pela improcedência da ADPF. Na manifestação da Presidência, subscrita pela Advogada da União, Dra. Raquel Barbosa de Albuquerque, também se defende que a matéria seja discutida pelo legislativo, não podendo o Supremo Tribunal Federal atuar como legislador e criar mais uma hipótese de excludente de criminalização, já que o aborto é crime contra a vida. Já a manifestação da AGU, subscrita pela então Advogada-Geral, Dra. Grace Mendonça, foi ainda mais contundente, aduzindo que, além do STF não poder atuar como legislador positivo, o nosso sistema constitucional coloca o direito à vida do nascituro em patamar superior aos direitos de liberdade da mulher, tendo acrescentado, ainda, que, como nosso ordenamento não definiu qual seria o marco inicial da vida humana, se impõe sua proteção desde a concepção, devendo ser rechaçada a “solução de prazo” mencionada na ADPF, em uma referência ao pedido de descriminalização da conduta abortiva no primeiro trimestre da gestação.

Nas palavras da advogada-geral, “a decisão legislativa de fazer prevalecer, como regra, o direito à vida do feto em detrimento do direito de escolha da mulher é compatível com a Constituição da República” e “Com efeito, embora a Lei Maior não contenha disposição específica a respeito do aborto, cumpre notar que o artigo 5º, caput, do Texto Constitucional assegura a inviolabilidade do direito à vida. Nesse aspecto, o Código Penal, no que diz respeito à tipificação dos crimes contra a vida, foi recepcionado pela Constituição da República com status de lei ordinária”.

Fica evidente, portanto, que a manifestação do Congresso Nacional, da Advocacia Geral da União e da Procuradoria-Geral da República afirmam que o direito à vida do nascituro possui proteção constitucional mais acentuada do que os direitos femininos de escolha, e que, na ausência de previsão legal acerca do momento em que a vida se inicia, deve prevalecer o entendimento pela proteção constitucional em qualquer fase gestacional, até que este marco inicial seja estabelecido em nosso ordenamento.

O cenário, portanto, é de incógnita, pois, embora as demais instituições tenham se manifestado de forma contrária ao que foi pleiteado na ADPF, já é tido como certo que três ministros votarão pela procedência da arguição, em razão de seus posicionamentos no HC 124.306/RJ, que será abordado mais adiante. Antes, porém, compete destacar a primeira abordagem do Supremo acerca do aborto: a hipótese de gestação de fetos anencéfalos.

1.2. O precedente da ADPF 54/2004

No ano de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, através do então advogado Luis Roberto Barroso, atual Ministro do STF, ajuizou Arguição de Descumprimento de Prefeito Fundamental para questionar a criminalização da antecipação do parto do feto anencéfalo, sob o argumento de que isso violaria os preceitos fundamentais relacionados a dignidade da mulher sem representar qualquer proteção à vida do feto, visto que, sem perspectiva de atividade cerebral, não há vida a ser protegida, de modo que a interrupção antecipada da gestação nesse caso sequer poderia ser considerada como aborto.

Segundo a literatura médica, a anencefalia é definida como a má-formação do cérebro e do córtex do feto, havendo apenas um "resíduo" do tronco encefálico. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), esta anomalia provoca a morte de 65% dos bebês ainda dentro do útero materno e, quando conseguem chegar ao nascimento, há sobrevida de apenas algumas horas, ou, no máximo, alguns poucos dias.

Nesse cenário, tem-se uma gravidez em que não há a menor expectativa de vida para o produto da concepção, situação em que levar a gestação até o fim serviria apenas para provocar um sofrimento irreparável na gestante, motivo pelo qual a confederação dos trabalhadores da saúde buscou, através da ADPF 54, questionar os artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que criminalizam a conduta abortiva e dispõe como únicas possibilidades de excludentes de ilicitude os casos de gravidez com risco de vida para a gestante e gravidez decorrente de estupro. Pleiteava a ação que o aborto do anencéfalo fosse descriminalizado, passando a ser considerado como antecipação terapêutica do parto, visto que a tipificação desta conduta como crime descumpriria os preceitos fundamentais da dignidade humana e da proteção à maternidade. No entendimento da CNTS, não haveria que se falar em aborto conforme o regulado na lei penal, visto que não se trata de eliminação da vida intra-uterina, uma vez que o anencéfalo não possui nenhuma expectativa de sobreviver.

Outra argumentação utilizada foi a invocação do princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º da Constituição, que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude da lei. Ora, se, conforme o alegado pela CNTS, não pode se falar em aborto quando se tratar de feto anencéfalo, visto que o aborto é um crime contra a vida e nesse cenário não há expectativa alguma de sobrevivência, não pode haver criminalização de uma conduta que não estaria prevista, uma vez que a lei penal se refere a aborto e a conduta objeto da ADPF seria antecipação terapêutica do parto, segundo entendimento dos proponentes.

Em suma, a CNTS alegava que o anencéfalo não tem condições nenhuma de sobreviver, e como o Código Penal, ao criminalizar o aborto, busca a preservação da vida humana, a interrupção da gestação de feto anencefálico não poderia de forma alguma ser considerada crime.

Embora a ADPF tenha sido proposta em 2004, o processo teve seu julgamento iniciado apenas no dia 11 de abril de 2012, sendo encerrado no dia seguinte, com a vitória da tese levantada pela CNTS, por oito votos a dois. Na ocasião, a Corte era formada pelos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia, Rosa Maria Webber, Luiz Fux e Dias Toffoli.

A manifestação favorável de grande maioria da Corte demonstrou que o Supremo compartilha do entendimento de que o aborto de feto anencéfalo sequer pode ser considerado aborto, visto que este é um crime contra a vida e o feto anencefálico jamais terá vida em potencial. Assim, prevaleceu a tese de que a interrupção da gestação em casos de anencefalia não é conduta abortiva, e sim, antecipação terapêutica do parto.

O foco central do voto de todos os ministros foi o direito constitucional à vida garantido ao nascituro. Os oito que votaram a favor da tese levantada pela CNTS alegaram que a descriminalização da interrupção antecipada do parto em casos de anencefalia não viola este preceito, visto que o feto anencéfalo não tem expectativa alguma de vida e a morte ocorre em 100% dos casos, sendo a maioria dentro ainda do útero materno.

O relator do processo, ministro Marco Aurélio de Melo, considerou que “anencefalia e vida são termos antitéticos”. Segundo ele, não há conflito entre direitos fundamentais, uma vez que não há qualquer possibilidade do feto anencéfalo sobreviver fora do útero. Em seu voto, o relator sustentou que a arguição proposta pela CNTS não se refere à descriminalização do aborto, uma vez que existe uma clara distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia. Nas palavras do ministro, “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível”. Ele destacou ainda que não se trata realmente de um nascituro, mas sim de um natimorto.

Na mesma linha se posicionou Celso de Mello, que afirmou o seguinte: “Se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos da gestante”. O ministro mencionou em seu voto a Lei 9.434/97 e a Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, que consideram a morte do ser humano como o momento em que se encerra completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Segundo ele, seria perfeitamente possível fazer uma analogia no sentido de afirmar que o anencéfalo não é um ser humano vivo, pois não possui cérebro e jamais desenvolverá atividade cerebral. Dessa maneira, não existe crime de aborto possível, pois este é um delito contra a vida e, segundo suas palavras, “se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”.

Seguindo a mesma tendência, a ministra Rosa Maria Weber afirmou que a anencefalia não é compatível com as características de compreensão de vida para o Direito e por isso a interrupção de gravidez de feto anencéfalo não pode ser considerada aborto, visto que não é crime contra a vida. A ministra, assim como Celso de Mello, fez alusão à questão da falta de atividade cerebral do feto, relembrando o conceito de morte para o Conselho Federal de Medicina. Carmem Lúcia, por seu turno, fez a seguinte afirmação: “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”.

E essa foi a tendência da maioria dos ministros. Os únicos a votarem contra o requerido pela CNTS foram Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. O primeiro, argumentou que o Supremo não pode criar uma nova possibilidade jurídica, uma vez que isto é atribuição do legislativo. Já o segundo, defendeu a tese que o anencéfalo também é sujeito de direitos, e, por isso, destinatário do direito constitucional à vida. Segundo suas palavras, “A vida não é um conceito artificial criado pelo ordenamento jurídico para efeitos operacionais. A vida e a morte são fenômenos pré-jurídicos das quais o direito se apropria para determinado fim”.

No mais, Luiz Fux, Ayres Britto e Joaquim Barbosa votaram favoravelmente a tese da CNTS, afirmando que não se trata de aborto, e sim de interrupção antecipada do parto, visto que o anencéfalo não tem chance alguma de ter vida viável. Gilmar Mendes também se posicionou a favor da descriminalização da conduta, no entanto entendeu que se trata de aborto sim, porém deve ser enquadrado como hipótese de excludente de ilicitude. Assim foi construído o placar de 8 a 2. O ministro Dias Toffoli não votou, pois se declarou impedido em razão de ter trabalhado no parecer da Advocacia-Geral da União em favor do pleiteado, na época em que era o advogado-geral.

Outro ponto que merece destaque neste julgamento é a sustentação do então advogado Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo e patrono da CNTS naquele feito. Na ocasião, Barroso que afirmou não se tratar de caso de aborto, uma vez que este tipo penal pressupõe vida, o que é impossível em casos de ancenfalia. Nesse cenário, só estão em jogo os direitos fundamentais da gestante. Segundo suas palavras, “A mulher não sairá da maternidade com um berço. Sairá da maternidade com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para cessar o leite que produziu para ninguém. É uma tortura psicológica”. Ele afirmou ainda que todas as autoridades médicas garantem que o diagnóstico de anencefalia é 100% certo e a letalidade ocorre em 100% dos casos, conforme documentos anexados aquele processo.

Ou seja, todo o julgamento se pautou pela questão do direito constitucional à vida. A tese levantada pela CNTS foi de que não há vida viável para o nascituro, e foi essa a argumentação de todos os ministros que votaram a favor da descriminalização.

Para alguns ministros, este foi o julgamento mais importante da história da Corte. Um julgamento que, ao descriminalizar a interrupção antecipada do parto em casos de fetos anencéfalos, reafirmou para toda a sociedade que a Constituição Federal e todo o ordenamento que por ela é comandado protegem a vida humana, que, nesse caso, não estava em jogo. O Supremo, na verdade, não criou uma nova excludente de ilicitude para o aborto, e sim confirmou que este é um crime contra a vida, e como não há vida a ser protegida em casos de anencefalia, a antecipação do fim da gestação não pode ser definida como conduta criminosa.

1.3. O precedente do HC 124.306/RJ

O Jurista Luis Roberto Barroso, que foi advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde na ADPF acima mencionada, que culminou na descriminalização da interrupção da gravidez do feto anencéfalo, se tornou Ministro do Supremo Tribunal Federal em 26 de junho de 2013, por indicação da então presidenta Dilma Roussef. Seu ingresso na Corte representou uma conquista para os defensores da legalização do aborto, visto que suas posições a respeito do tema são consideradas “progressistas”, indicando que, em seu entendimento, a vida humana não se inicia no momento da concepção, o que abre espaço para a descriminalização da conduta abortiva antes que o feto alcançasse esse estágio em que a vida começa.

O Ministro deixou claro esse entendimento ao proferir, no Habeas Corpus nº. 124.306/RJ, um voto-vista que pode representar o primeiro passo do direito brasileiro no rumo da legalização do aborto nas primeiras semanas da gestação.

O Habeas Corpus em questão foi impetrado para requerer liberdade provisória a dois pacientes presos preventivamente em decorrência da prática abortiva. O feito foi relatado originalmente pelo Ministro Marco Aurélio de Melo, que votou para conceder a ordem, em razão da ausência de fundamentos para a prisão preventiva.

O Ministro Barroso, no entanto, proferiu voto-vista no sentido de não conhecer do remédio, por se tratar de substitutivo de recurso ordinário constitucional, mas de conceder a ordem de ofício, para determinar a soltura dos pacientes, em razão da relevância da matéria. Esse voto, que será detalhado no parágrafo seguinte, foi seguido pelos outros membros da turma, Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, sendo vencido somente o Ministro Marco Aurélio, motivo pelo qual o Ministro Barroso foi alçado ao posto de relator do acórdão, na forma do artigo 38, inciso II, do Regimento da Corte, que determina a substituição do relator quando este for vencido em seu voto.

Em sua manifestação, o Ministro Barroso deixou claro seu posicionamento no sentido de que, no primeiro trimestre da gestação, a prática abortiva não poderia ser considerada crime, visto que isso violaria direitos fundamentais da mulher, a exemplo do que foi consignado no precedente norte-americano de “Roe vs. Wade”, já citado neste trabalho.

Nas palavras do Ministro, “é dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres, com reflexos inevitáveis sobre a dignidade humana. O pressuposto do argumento aqui apresentado é que a mulher que se encontre diante desta decisão trágica – ninguém em sã consciência suporá que se faça um aborto por prazer ou diletantismo – não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente. Coerentemente, se a conduta da mulher é legítima, não há sentido em se incriminar o profissional de saúde que a viabiliza.”

Na sequência, o Ministro passou a abordar a condição jurídico-científica do nascituro no primeiro trimestre da gestação, mostrando ser um adepto da corrente que sustenta que só há que se falar em vida quando se forma o sistema nervoso central, o que ocorre após o terceiro mês da gestação. Em suas palavras, não poderia haver a criminalização do aborto nos três primeiros meses gestacionais, pois “não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mulher”.

Partido dessa premissa, o Ministro avançou em seu voto, sustentando que a interrupção do parto não poderia ser considerada crime nos três primeiros meses da gestação, tendo mencionado diversos argumentos geralmente invocados por movimentos defensores da legalização do aborto, tais como: (I) a criminalização da conduta viola os direitos sexuais, reprodutivos e de planejamento familiar da mulher; (II) viola o princípio da igualdade, pois homem não engravida; (III) atinge mais as mulheres pobres, que, por não terem condições financeiras para custear um aborto seguro, acabam procurando clínicas clandestinas e põe sua vida em risco, enquanto as que possuem padrão financeiro mais elevado realizam a prática com segurança; e (IV) não contribui efetivamente para coibir o aborto, pois estudos de países que legalizaram a interrupção gestacional demonstram que a prática não aumentou com a legalização.

Em razão destes fundamentos, o Ministro votou para conceder, de ofício, a ordem de habeas corpus, fundada não só na desnecessidade da prisão preventiva no caso concreto, mas também na tese de que os artigos 124 e 126 do Código Penal, em sua opinião, não teriam sido recepcionados em sua integralidade pela Constituição de 1988, uma vez que não deveriam incidir sob a interrupção do parto praticada até o terceiro mês da gestação.

O posicionamento do Ministro Barroso foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber em todos os seus termos, o que demonstra que, pelo menos, três membros de nossa Corte Suprema entendem pela descriminalização da interrupção antecipada no parto até a terceira semana da gestação, hipótese em que o feto ainda não possui função cerebral e, portanto, não possuiria vida plena.

Essa decisão não gerou efeito vinculante, visto que foi proferida nos autos de um Habeas Corpus, configurando controle concreto/difuso de constitucionalidade. No entanto, embora só tenha produzido efeito entre as partes, o fato de ter sido acompanhada por mais dois Ministros desperta na sociedade a expectativa de que a ADPF, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade, possa ter um desfecho de procedência, o que representaria a descriminalização da prática nos três primeiros meses da gestação, visto que a decisão em uma ação de controle abstrato, como é a ADPF, gera efeito para todos.

Assim, considerando que a ADPF em questão parece estar próxima de seu julgamento, compete analisar o ordenamento constitucional brasileiro como um todo, a fim de delimitar qual seria a decisão mais acertada a respeito da descriminalização do aborto, de acordo com nosso sistema de proteção de direitos fundamentais.

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Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi Lima Pereira. Considerações sobre a ADPF 442.: O sistema brasileiro de direitos fundamentais e a possível descriminalização do aborto pela via jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6216, 8 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83782. Acesso em: 28 abr. 2024.

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