Capa da publicação ADPF 442: descriminalização do aborto X direito à vida
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Considerações sobre a ADPF 442.

O sistema brasileiro de direitos fundamentais e a possível descriminalização do aborto pela via jurisprudencial

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08/07/2020 às 09:35

Resumo:


  • O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a ADPF 442 buscando descriminalizar o aborto no primeiro trimestre da gestação, alegando que os direitos reprodutivos da mulher devem prevalecer sobre os direitos do nascituro.

  • Argumenta-se que o aborto, tipificado nos artigos 124 e 126 do Código Penal, viola os direitos fundamentais da mulher, enquanto as manifestações contrárias sustentam que a Constituição Federal protege a vida desde a concepção.

  • O STF já se posicionou sobre a temática do aborto em casos específicos, como na ADPF 54, que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, e no HC 124.306/RJ, onde três ministros se manifestaram pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto nos três primeiros meses da gestação.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. O Sistema Constitucional Brasileiro de Direitos Fundamentais

A Constituição é a Lei Maior do ordenamento jurídico, e, por isso, orienta toda atividade estatal, seja ela executiva, legislativa ou jurisdicional. No âmbito do poder executivo, tanto os prefeitos quanto os governadores de estados e o presidente da República estão sempre obrigados a observar os preceitos constitucionais, sob pena de nulidade do ato administrativo editado em desconformidade com a Constituição. O mesmo se aplica ao poder legislativo, que, na elaboração de diplomas legais, deve sempre obediência às disposições previstas na Carta Magna.

O poder judiciário, por sua vez, é o responsável por exercer o controle de constitucionalidade das normas jurídicas e atos administrativos. Ou seja, qualquer ato do executivo ou do legislativo que contrariar a Carta Magna será afastado do mundo jurídico por meio da atuação jurisdicional, exercida especialmente pelo Supremo Tribunal Federal.

Dessa maneira, é ponto pacífico que norma alguma pode contrariar disposição da Constituição, uma vez que a Lei Maior estabelece regras e princípios gerais a serem observados por todo o ordenamento, se configurando como verdadeiro fundamento de validade de todas as normas.

Nesse sentido, explica o jurista Pedro Lenza: “No Direito percebe-se um verdadeiro escalonamento de normas, uma constituindo o fundamento de validade de outra, numa verticalidade hierárquica. Uma norma, de hierarquia inferior, busca seu fundamento de validade na norma superior e esta, na seguinte, até chegar a Constituição, que é o fundamento de validade de todo o sistema infraconstitucional.” (LENZA, 2009, p.27)

A expressão “fundamento de validade” guia à conclusão de que qualquer construção legislativa que venha a existir só será válida se estiver de acordo com o que determina a Constituição Federal, pois é ela que confere validade a todas as normas. Essa validação, por sua vez, alcança tanto as normas editadas após a promulgação da Lei Maior, em 1988, quanto àquelas vigentes antes desta data.

Sendo assim, mesmo as leis anteriores à promulgação da Constituição devem obediência a ela. Se algum diploma anterior à entrada em vigor da Lei Maior contiver disposição que contrarie algum preceito constitucional, esta disposição perde a validade, em razão de não ter sido recepcionada..

O instituto da recepção, de forma resumida, consiste no recebimento, pela Constituição atual, de norma editada na vigência da Constituição passada, mas que esteja de acordo com o regramento constitucional presente. Ou seja, após o início da vigência da Carta Republicana de 88, as disposições legais anteriores que estiverem de acordo com seus dispostos são consideradas como recepcionadas, e permanecem válidas. Já aquelas que trouxerem previsões contrárias ao texto constitucional são tidas como não recepcionadas e terão sua eficácia afastada por meio do controle exercido pelo poder judiciário.

O Título II da Constituição brasileira atual dispõe sobre os Direitos e garantias fundamentais, que englobam os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade e os direitos políticos.

No artigo 5º, encontra-se a previsão dos direitos e deveres individuais e coletivos, dentre os quais se destacam a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, todos previstos no caput do citado artigo.

Percorrendo a Constituição até o artigo 60, parágrafo 4,º inciso IV, verifica-se uma vedação expressa à possibilidade de existir qualquer proposta de emenda constitucional que pretenda abolir os direitos e garantias individuais. Assim sendo, fica claro o caráter diferenciado das disposições previstas no artigo 5º, que não podem ser modificadas em hipótese alguma. São as chamadas cláusulas pétreas.

Dessa forma, tem-se que a Constituição Federal é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, não podendo existir norma alguma que a contrarie, sendo certo que, dentro do corpo constitucional, há normas que o legislador constituinte quis deixar claro que possuem um caráter especial, sendo consideradas cláusulas pétreas. Ou seja, pode-se afirmar com convicção que o respeito aos direitos e garantias individuais são exigências que qualquer legislação infraconstitucional deve observar.

2.1. O Direito à vida e o Princípio da Dignidade Humana

Dentre essas disposições constitucionais imutáveis, uma se demonstra de extrema importância para este trabalho: a inviolabilidade do direito à vida. Conforme se depreende do próprio texto constitucional em seu artigo 5º, a vida é inviolável, sendo certo que, por ser norma constitucional, essa inviolabilidade já deve ser obrigatoriamente respeitada por todo ordenamento jurídico, e, por ser cláusula pétrea, essa observância deve ser mais rígida ainda, não permitindo que exista previsão legal alguma que desrespeite tal direito.

Compete apresentar, novamente, uma lição de Pedro Lenza: “O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, como também o direito de ter uma vida digna” (LENZA, 2009, p.678).

Na definição do professor Lenza, pode-se perceber a expressão “vida digna”. Trata-se da conjugação da inviolabilidade do direito à vida com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no primeiro capítulo da Carta Magna.

O Titulo I da Constituição Federal dispõe sobre os Princípios Fundamentais, com a apresentação dos fundamentos da República, que são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais já estudados no capítulo anterior devem ser observados sempre à luz destes princípios fundamentais, sendo importante para este trabalho a correta compreensão acerca do princípio da dignidade humana e sua relação com o direito fundamental à inviolabilidade da vida.

A previsão do princípio da dignidade na Constituição representa o reconhecimento de que o homem possui direitos e garantias fundamentais que são inerentes à sua condição humana. Esta positivação, portanto, confere a todos a possibilidade de ter acesso às condições necessárias para uma vida digna.

Cumpre destacar o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, acerca deste princípio fundamental: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (MORAES, 2009, p. 21-22).

Assim, tem-se que a dignidade humana é o princípio que orienta a aplicação de todas as disposições elencadas na Carta Magna, sendo a realização das condições essenciais para o exercício dos direitos básicos de toda pessoa.

Acerca da relação entre o princípio da dignidade e o direito à vida, escreve o jurista Cleber Francisco Alves: “Um ponto crucial, que suscita vivos debates e discussões no campo da dignidade da pessoa humana, é aquele relativo ao direito à vida. Muito se fala em direitos humanos, em dignidade da pessoa humana, mas esquece-se de sua premissa elementar que é exatamente o direito à vida. Sem a vida, qualquer outro direito inexiste.” (ALVES, 2001, p. 166)

Partindo dessa definição, verifica-se que respeito a inviolabilidade do direito à vida é essencial para a efetivação do princípio da dignidade humana, de onde se conclui que o direito à vida seria o mais importante de nosso ordenamento jurídico, uma vez que pode ser entendido como premissa de um princípio fundamental do direito.

Desse mesmo entendimento, compartilha Alexandre de Moraes: “A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.” (MORAES, 2009, p. 35).

Ou seja, o direito à vida se configura como condição elementar de um princípio sob o qual se funda o Estado Democrático de Direito. Um princípio elencado no primeiro artigo da Carta Magna e que dita os rumos da aplicabilidade de todo o texto constitucional.

Nesse ponto, compete destacar que, na visão de alguns juristas, a dignidade da pessoa humana teria força jurídica maior do que o direito à vida, por ser mencionada primeiro no texto constitucional, estando positivada no primeiro artigo da Carta, enquanto a inviolabilidade da vida se encontra no artigo 5º.

Tal posição, no entanto, não se apara na realidade constitucional, pois a vida precede qualquer outro direito, valendo destacar que, se prevalecesse o entendimento oposto, isso significaria afirmar que todos os direitos que se encontram positivados em artigos anteriores ao artigo 5º seriam mais importantes do que o direito à vida.

O artigo primeiro da Constituição dispõe que são fundamentos da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, nessa exata ordem. Dessa forma, se prevalacer o entendimento de que o princípio da dignidade tem mais força do que o direito à vida por estar previsto primeiro na Carta, a conclusão lógica será de que também os outros fundamentos seriam mais importantes do que a inviolabilidade do direito à vida.

Mais ainda, sendo aceita como correta esta posição, a consequência seria concordar que a soberania e a cidadania seriam valores ainda maiores do que a dignidade humana, o que não procede, pois, como visto na lição do Ministro Alexandre de Moraes, a dignidade é um valor moral e espiritual inerente a pessoa, referente à sua autodeterminação enquanto indivíduo, o que lhe torna pré-requisito tanto para o exercício da cidadania quanto para a formatação de uma República efetivamente soberana.

Ou seja, a ordem de menção no texto constitucional não indica superioridade normativa de um instituto sobre o outro, devendo sempre ser realizada uma interpretação sistemática, analisando todo o ordenamento, para que seja delimitado qual princípio ou direito deve se sobrepor em situações de conflito.

É certo, portanto, que o direito à vida precede todos os fundamentos da República, pois sem vida não há soberania, não há cidadania, não há trabalho, não há livre iniciativa, não há pluralismo político e, também, não há dignidade.

Por fim, para que não reste dúvidas de que o ordenamento brasileiro coloca o direito à vida em patamar superior ao princípio da dignidade humana, compete destacar o caso da eutanasia, que é vedada em nosso sistema jurídico.

A respeito deste instituto, José Afonso da Silva ensina: “Hoje, contudo, de eutanasia se fala quando se quer referir à morte que alguém provoca em outra pessoa já em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento em consequência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa. Chama-se, por esse motivo, homicídio piedoso. É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que implicitamente está vedada pelo direito à vida consagrado na Constituição, que não significa que o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito.” (SILVA, 1992, p.185, grifos nossos).

Trata-se, portanto, de hipótese em que alguém está acometido de doença incurável, que lhe traz enorme sofrimento, o impossibilitando de desfrutar de uma viga digna. A eutanásia consiste, justamente, na eliminação desta vida, sob a alegação de que manter o paciente vivo seria afrontoso a sua dignidade.

Tem-se, portanto, que o fundamento da eutanásia seria a superioridade normativa da dignidade humana sobre o direito à vida, sendo a prática permitida em alguns países, como Holanda, Belgica, Suíca, Canadá e alguns estados norte-americanos. No Brasil, no entanto, tal conduta é vedada pelo sistema jurídico-constitucional vigente, ainda que o doente manifeste seu consentimento, visto que a vida humana é inviolável e indisponível, o que demonstra que, de forma inequívoca, o ordenamento jurídico brasileiro a considera um bem jurídico de maior expressão do que a dignidade humana.

Assim, se o ordenamento proíbe a antecipação da morte em situações fáticas que demonstram completa impossibilidade de vida digna, não restam dúvidas de que a vida é o principal bem jurídico protegido pelo sistema jurídico brasileiro, sendo condição elementar de todos os outros direitos.

2.2. O Código Penal como ferramenta de proteção aos direitos fundamentais

Conforme já demonstrado, toda espécie legislativa deve obedecer aos mandamentos constitucionais, de modo que o Código Penal também está sujeito a essa observância. Assim sendo, a lei penal não pode conter dispositivo que contrarie nenhuma previsão da Carta Magna. Pelo contrário, deve conter mecanismos de proteção aos direitos e garantias fundamentais.

Assim, toda legislação em matéria penal deve ser sempre editada buscando a preservação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, visando a proteção da vida e da dignidade humana, sob pena de, não cumprindo essa missão, ser afastada do mundo jurídico por ser inconstitucional.

O Código Penal brasileiro foi instituído pela Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e permanece vigente até a data da publicação deste estudo. A parte geral do referido diploma, que define conceitos, regras e princípios gerais para a aplicação da lei penal, foi alterada, em sua totalidade, pela Lei nº. 7.209, de 11 de julho de 1984. Já a parte especial, que define os crimes em espécie e estipula suas respectivas sanções, sofreu somente alterações pontuais, com a exclusão de alguns crimes e acréscimo de outros, sem maiores reformulações.

O Titulo I da parte especial do Código Penal dispõe sobre os crimes contra a pessoa, e o Capítulo I deste título estabelece os crimes contra a vida. Ao criminalizar as condutas ali previstas, fica claro que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana. Dessa forma, a lei penal efetiva a proteção ao bem jurídico mais valioso garantido pela Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, ensinam Costa Machado e David Teixeira de Azevedo: “O primeiro bem jurídico relacionado à pessoa humana a receber tutela do direito penal é a vida humana, reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência como o bem de maior valor no ordenamento jurídico.” (MACHADO e AZEVEDO, 2016, p.181)

Da leitura da lição acima reproduzida, fica evidente, novamente, que a vida é o bem de maior valor no nosso ordenamento, motivo pelo qual o Código Penal dedica o primeiro capítulo de sua parte especial aos crimes cometidos contra este bem jurídico, buscando, dessa forma, conferir a máxima proteção possível à missão conferida pelo artigo 5º. da Constituição da República.

O primeiro crime contra a vida previsto Código Penal é o de homicídio, tipificado no artigo 121 do Código Penal, que o define de forma extremamente objetiva: “Matar alguém. Pena – reclusão de 6 a 20 anos.” É o chamado homicídio simples. Tutela-se a vida humana de forma genérica. Qualquer pessoa que matar outra, via de regra, pratica o tipo penal previsto nesse artigo.

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No parágrafo 1º do artigo 121, constam as hipóteses de diminuição de pena no delito de homicídio, quando o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Nesses casos, a pena poderá ser reduzida de um sexto a um terço. Ou seja, mesmo que haja algum motivo especial que tenha levado o agente a praticar homicídio, o delito continua sendo punido, ainda que de forma mais branda, pois a vida humana é bem jurídico inviolável.

O parágrafo 2º do artigo 121 dispõe sobre a forma qualificada de homicídio, que tem previsão de pena maior do que a da modalidade simples, em razão do motivo pelo qual o agente pratica a conduta (mediante recompensa ou por razão fútil ou torpe – incisos I e II), do meio empregado na ação (veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, emboscada, dissimulação, dificultação da defesa do ofendido ou outro meio cruel ou que possa resultar perigo comum – incisos III e IV), da finalidade do crime (para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro delito – inciso V), ou da condição pessoal da vítima (no caso de crimes cometidos contra mulher no âmbito da relação doméstica, o chamado “feminicídio”, e na hipótese de crimes contra agentes da segurança pública e seus respectivos familiares – incisos VI e VII). Para o homicídio qualificado, o legislador estipulou pena de 12 a 30 anos.

Já no parágrafo 3º, tem-se a previsão do homicídio culposo, quando o agente não tem a intenção de matar. Nessa modalidade, a pena prevista é de detenção, de um a três anos. Ou sea, mesmo que o homicida não tenha nenhuma intenção de cometer o delito, há previsão legal de pena, pois a vida humana é bem jurídico inviolável.

O artigo 122 do Código Penal estabelece outro crime contra a vida, denominado “Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio”, que consiste em “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”

Nessa situação, o Estado atua no sentindo de impedir que uma pessoa elimine a própria vida, criminalizando a conduta de quem, de alguma forma, contribuir para isso. Todo aquele que induzir, instigar ou auxiliar de qualquer forma alguém a atentar contra a própria vida incorre prática delituosa prevista no artigo 122 e será criminalmente processado, pois a vida humana é bem jurídico indisponível, constitucionalmente garantido.

A legislação penal não prevê esse delito na modalidade culposa, no entanto, a doutrina entende ser possível a prática desse crime por dolo eventual, que é a modalidade de dolo em que o agente, embora não tenha a real intenção de cometer o crime, age de modo a não se importar com o resultado fático de sua conduta, como no clássico exemplo de quem dirige embriagado. Ou seja, quem pratica alguma conduta que pode levar outrem a se suicidar, incorre na prática delituosa, mesmo que não tenha agido diretamente nesse sentido.

Para finalizar essa breve exposição sobre o artigo 122, compete mencionar o artigo 146, parágrafo 3º, inciso II do Código Penal, que determina que não configura crime de constrangimento ilegal a coação exercida para impedir suicídio. Ou seja, aquele que constranger alguém (mediante violência, grave ameaça ou após lhe reduzir a capacidade de resistência) a não se suicidar, não estará praticando qualquer crime, pois estará atuando no sentido de preservar a vida humana. No entanto, ninguém poderá se eximir da responsabilidade penal se praticar tal conduta para evitar que alguém pratique atos imorais, como a prostituição, por exemplo, já que aí não é a inviolabilidade da vida que está em jogo.

Nesse sentido, afirma Rogério Greco: “Assim, se alguém, mediante violência ou grave ameaça, mesmo que no intuito de ajudar a vítima, a impede de prostituir-se, estaria praticando a infração penal tipificada no art. 146 do estatuto repressivo, vale dizer, o delito de constrangimento ilegal. Ao contrário, se o agente, por exemplo, mediante o emprego de violência impede que a vítima extermine a própria vida não pratica qualquer delito pois que, nesse caso, própria lei penal entendeu por bem afastar a tipicidade desse comportamento”. (GRECO, 2007, p. 201).

Dessa forma, cada vez fica mais claro que o legislador penal atua sempre no intuito de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a máxima proteção à vida humana, admitindo até mesmo a não culpabilidade de conduta tipificada como crime se ela for cometida para salvar uma vida, conforme demonstrado nessa curta exposição sobre o delito de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Trata-se, mais uma vez, do Código Penal cumprindo a missão de preservar a inviolabilidade do principal direito garantido pela Constituição.

O delito seguinte previsto no Código Penal é o de infanticídio, estabelecido no artigo artigo 123, que assim dispõe: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena – detenção de dois a seis anos.” Ou seja, trata-se de crime cometido contra a vida do recém nascido. O sujeito ativo, nesse caso, é a mãe sob efeito do estado puerperal. Para conceituarmos essa condição, utilizaremos da definição médica do obstetra Jorge de Rezende: “Puerpério, sobreparto ou pós-parto, é o período cronologicamente variável, de âmbito impreciso, durante o qual se desenrolam todas as manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna havidas após o parto. Há, contemporaneamente, importantes modificações gerais, que perduram até o retorno do organismo às condições vigentes antes da prenhez. A relevância e a extensão desses processos são proporcionais ao vulto das transformações gestativas experimentadas, isto é, diretamente subordinadas à duração da gravidez”. (REZENDE, 1998, p. 373).

Tem´-se, portanto, um período em que a parturiente está acometida por fortes abalos psicológicos que acabam a levando a matar o próprio filho. O penalista Paulo José da Costa Júnior assim escreve sobre o estado puerperal e o delito de infanticídio: “A mulher, abalada pela dor obstétrica, fatigada, sacudida pela emoção, sofre um colapso do senso moral, uma liberação de instintos perversos, vindo a matar o próprio filho.” (COSTA JÚNIOR, 1991, p. 18)

Ou seja, tem-se uma situação em que o sujeito ativo do delito encontra-se com a capacidade psicológica abalada, não possuindo condições suficientes para distinguir o certo do errado. Sob influência desse estado, a mãe acaba eliminando a vida do próprio filho que acabara de nascer.

Devido a essa condição psicológica da parturiente, poderia se falar em excludente de culpabilidade por inimputabilidade. No entanto, não é o que ocorre, pois, ainda que haja uma deturpação do senso moral da mãe, o direito à vida do recém-nascido é inviolável e deve ser garantido pelo ordenamento jurídico. Dessa maneira, o legislador penal adotou a criminalização dessa conduta, surgindo assim o delito de infanticídio.

Assim, o estado puerperal que debilita a capacidade psicológica da mãe serve apenas para caracterizar o cometimento de um delito diverso do homicídio, com previsão de pena menor, detenção de dois a seis anos. Ainda que a pena seja menor, devido a essa debilidade emocional do sujeito ativo, a conduta é criminosa e haverá a responsabilização criminal da agente, uma vez que a vida humana é bem jurídico inviolável, seja ela do recém-nascido, da criança, do adulto, do idoso ou do nascituro, conforme será abordado a seguir.

2.3. O crime de aborto e os direitos do nascituro

O aborto é, indiscutivelmente, um dos crimes que mais causam polêmica na doutrina e em toda a sociedade de modo geral. Sua previsão legal encontra-se entre os artigos 124 e 128 do Código Penal brasileiro, que serão abordados nos parágrafos seguintes.

Assim dispõe o artigo 124: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque. Pena – detenção de 1 a 3 anos”. Tem-se, na primeira parte desse artigo, o chamado auto-aborto, que é aquele provocado pela própria gestante. É um crime de mão própria, onde somente a gestante pode ser sujeito ativo. A grávida, segundo disposição da segunda parte do artigo, também incorre na prática delituosa ao permitir que um terceiro pratique a conduta abortiva.

Nos artigos 125 e 126, estão as hipóteses de criminalização deste terceiro que provoca o aborto na gestante. Para aquele que provoca sem o seu consentimento (art. 125), a lei prevê pena de reclusão de 3 a 10 anos. Já o que provoca com a concordância da grávida (art. 126) está sujeito à pena de reclusão de 1 a 4 anos, exceto quando a gestante for menor de 14 anos, possuir debilidade mental, ou o consentimento for dado mediante fraude, grave ameaça ou violência, hipóteses em que a pena será a mesma do artigo 125, reclusão de 3 a 10 anos, conforme disposição do parágrafo único do artigo 126.

No artigo 127, consta a forma qualificada do aborto, quando, em consequência dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal grave (pena aumentada em um terço) ou morre (pena duplicada). Já no artigo 128, estão as hipóteses onde o aborto não é passível de punição, que serão estudadas mais adiante.

Indiscutivelmente, o bem jurídico que se quer proteger ao criminalizar o aborto é a vida humana intra-uterina, a vida do nascituro. Assim sendo, o Código Penal, ao inserir este delito no rol de crimes contra a vida, deixa claro que o nascituro já é possuidor de uma vida, que deve ser preservada em todos os seus estágios de desenvolvimento dentro do útero.

Para ilustrar este pensamento, vale citar a brilhante definição de Nelson Hungria: “O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do seu termo normal, há crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, o rompimento da membrana amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto”. (HUNGRIA, 1955, p. 281).

Tem-se, portanto, o Código Penal atuando no sentido de preservar o direito à vida do nascituro. Dessa forma, fica claro e inequívoco que a inviolabilidade do direito à vida garantida pela Constituição alcança não só a vida extra-uterina, mas também àquela existente dentro do útero materno.

Assim, conclui-se que todos os crimes estudados neste capítulo têm fundamento na inviolabilidade do direito fundamental à vida, seja ela do nascituro, do recém-nascido ou de qualquer pessoa. O delito do aborto, no entanto, é cercado de diversas controversas no mundo jurídico e, em razão disso, é preciso dar uma ênfase maior a sua análise, com a realização de uma conceituação precisa acerca da figura do nascituro, bem como com a apresentação da evolução histórica da criminalização da prática abortiva no ordenamento jurídico brasileiro.

Segundo o ilustre professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a palavra nascituro se origina do latim nascituru, que significa “aquele que está por nascer” ou “aquele que há de nascer”. É, portanto, aquele que foi gerado e ainda não nasceu.

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º, dispõe da seguinte forma: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Assim sendo, fica claro que a lei civil define o nascituro como sujeito possuidor de direitos, mas não delimita que direitos são esses.

Apesar de o diploma civil não especificar quais são os direitos garantidos ao nascituro, é perfeitamente possível afirmar que seriam os previstos na Constituição Federal, especialmente em seu artigo 5º, visto que, conforme já estudado neste trabalho, a Carta Magna é o fundamento de validade de toda norma jurídica e possui caráter orientador de todo o ordenamento, o que obriga o aplicador do direito a sempre interpretar qualquer legislação infraconstitucional à luz das disposições da lei maior.

Não obstante, a doutrina também proclama o entendimento de que o nascituro é destinatário dos direitos garantidos pela Constituição. Como exemplo, compete citar a questão do alcance do direito constitucional à vida, segundo valiosa lição do constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes: “A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. Assim a vida viável, portanto, começa com a nidação, quando se inicia a gravidez. Conforme adverte o biólogo Botella Lluzia, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina’. (MORAES, 2009, p. 36, grifos nossos)

Dessa forma, pode se dizer que os direitos garantidos ao nascituro pelo Código Civil seriam realmente aqueles previstos na Constituição Federal. Assim, sendo sujeito dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna, ele tem garantidos, desde sua concepção, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, conforme manda o art. 5º do diploma orientador. Esses direitos, por sua vez, deverão ser observados sob o prisma da dignidade da pessoa humana, princípio positivado no artigo primeiro da Carta Magna.

É possível perceber no ordenamento jurídico alguns mecanismos utilizados para efetivar esses direitos do nascituro, como, por exemplo, os alimentos gravídicos concedidos à gestante, que seriam uma forma de garantir tanto o direito patrimonial daquele que está por nascer, quanto sua dignidade. Da mesma maneira, há o direito de toda mulher grávida se submeter a acompanhamento pré-natal gratuito, obedecendo ao direito social à proteção à maternidade, previsto no artigo 6º da Constituição e efetivando para o nascituro as garantias da segurança e da igualdade dispostas no artigo 5º.

A inviolabilidade do direito à vida, por sua vez, é efetivada através do Código Penal, que criminaliza a conduta abortiva e a inclui no rol dos crimes contra a vida, garantindo, assim, mais um comando constitucional.

A respeito da criminalização do aborto, compete destacar que o Código Penal não faz menção a nenhuma etapa específica da gestação, de onde se conclui que, desde a concepção até o início do parto, a conduta que atentar contra a vida do nascituro se adequará ao tipo penal do aborto.

Nesse sentido, ensina Fernando Capez: “A lei não faz distinção entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o início do parto, pois após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio.” (CAPEZ, 2007, p. 110).

Assim, qualquer ato que viole a vida do produto da concepção antes do início do parto será considerado aborto. Após iniciado o parto, poderá ser considerado infanticídio ou homicídio, dependendo do caso concreto. Há, portanto, uma linha temporal tênue que separa o delito do aborto do homicídio: o início do trabalho de parto. Se a parturiente já tiver começado a dar a luz, mesmo que o dolo do agente seja de provocar o aborto, nesse momento ele já estará em seara de homicídio (ou infanticídio, se for a própria mãe o agente violador), de onde se conclui que a intenção do legislador foi a mesma ao tipificar os delitos de homicídio, infanticídio e aborto: proteger a vida humana.

Não obstante esta intenção, há situações em que o legislador excluiu a punibilidade da prática abortiva. São as hipóteses de aborto legal, previstas no artigo 128 do Código Penal, que assim dispõe: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

No primeiro caso, tem-se o chamado aborto terapêutico, em que a gravidez coloca a vida da mulher em risco. Conforme entende a doutrina brasileira majoritária, o aborto terapêutico se configura como uma excludente de ilicitude por estado de necessidade, pois a conduta do médico visa afastar do perigo a vida da gestante.

Compete trazer a baila o entendimento de Julio Mirabete: “No primeiro caso está previsto o aborto necessário (ou terapêutico) que, no entender da doutrina, caracteriza estado de necessidade (...) cabe ao médico decidir sobre a necessidade do aborto a fim de ser preservado o bem jurídico que a lei considera importante (a vida da mãe) em prejuízo do bem menor (a vida do feto)”. (MIRABETE, 2004, p. 99).

Assim, tem-se um conflito entre o bem jurídico “vida da gestante” e o bem “vida do nascituro”. Segundo Mirabete, o ordenamento considerou a vida da mãe como tendo mais relevância. Também é este o posicionamento de Luiz Régis Prado, que argumenta que, como o delito do homicídio tem previsão de pena maior que o aborto, a vida já consolidada da grávida teria proteção jurídica maior que a do ser que ainda não nasceu.

O estado de necessidade encontra-se previsto no artigo 24 do Código Penal, que assim dispõe: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias não era razoável exigir-se”. Antes disso o artigo 23, inciso I, já previa o seguinte: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade.”

Assim, quando a gravidez trouxer riscos para a vida gestante, o médico estará acobertado por essa excludente de ilicitude para executar a prática abortiva, visto que estará agindo para garantir direito alheio que, de acordo com a circunstância, não era razoável exigir que fosse sacrificado.

O sacrifício do direito à vida, aliás, nunca é razoável exigir. Por essa razão, o aborto terapêutico realmente configura excludente de ilicitude por estado de necessidade. Nessa situação, o Estado opta por preservar a vida da mãe em detrimento da vida do nascituro pela simples razão de que a primeira já estava consolidada e independente, enquanto a segunda, embora seja uma vida diferente, quando existente apenas dentro do útero materno se torna extremamente dependente da saúde da mãe para sobreviver.

Essa escolha, no entanto, não quer dizer de forma alguma que a vida intra-uterina não tenha valor. Apenas trata-se de uma situação extrema, em que a gravidez irá ocasionar a morte da gestante, e não sabemos nem se o nascituro conseguirá sobreviver. Assim, o legislador optou pelo lógico: salvar aquela que tem mais chances de se manter viva. O aborto terapêutico garante, portanto, a inviolabilidade do direito à vida da gestante. Ou seja, é uma norma perfeitamente constitucional.

Este entendimento de que a escolha pela vida da gestante não quer dizer que a vida do nascituro seja desprovida de valor e proteção jurídica é confirmado pela doutrina, que se utiliza dos mesmos argumentos utilizados nos parágrafos anteriores para justificar a conduta abortiva. Ademais, os doutrinadores são categóricos em afirmar que o aborto deve ser a única forma de salvar a vida da mãe, sendo inadmissível a prática abortiva para evitar que a gestante venha a ter alguma complicação futura que não venha a acarretar sua morte, visto que a vida do nascituro é um bem jurídico mais importante que a saúde da grávida, por força do disposto no artigo 5º da Constituição Federal.

Para ilustrar o posicionamento doutrinário, observe a lição de Fernando Capez: “Observe-se que não se trata tão-somente de risco para saúde da gestante; ao médico caberá avaliar se a doença detectada acarretará ou não risco de vida para a mulher grávida. Ele, médico, deverá intervir após o parecer de dois outros colegas, devendo ser lavrada ata em três vias, sendo uma enviada ao Conselho Regional de Medicina e outro ao diretor clínico do nosocômio onde o aborto foi praticado”. (CAPEZ, 2007, p. 125, grifos nossos)

Tem-se, portanto, que não basta mero risco à saúde da gestante. O risco tem que ser de morte, e é necessário ainda o parecer de outros dois médicos, o que demonstra mais uma vez que o aborto terapêutico só deve ser utilizado em caso extremo, quando não houver outro meio de salvar a vida da mulher grávida. O médico deve, até o último instante, buscar preservar as duas vidas. Quando não houver mais possibilidade, aí sim fará o procedimento para salvar a mãe, devido a todos os motivos já elencados.

Dessa maneira, conclui-se que a modalidade prevista no inciso I do artigo 128 do Código Penal busca garantir a inviolabilidade do direito à vida da gestante, que corre risco devido à gravidez. Atende-se, portanto, ao mandamento constitucional do artigo 5º da Carta republicana.

A outra modalidade de aborto legal é a prevista no inciso II do mesmo artigo 128, o chamado aborto humanitário, realizado em casos de gravidez que se originam a partir de um estupro. Nessa situação a vida da gestante não está em risco. Ou seja, o bem jurídico que o ordenamento busca preservar é outro, que não a vida humana. O aborto humanitário também é chamado pela doutrina de sentimental ou ético e é necessário que o procedimento seja realizado por médico e precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal, nos casos de incapacidade.

Neste dispositivo, o legislador buscou preservar a gestante de ter que levar adiante uma gestação oriunda de uma violência por ela sofrida. Para a maioria da doutrina, trata-se de uma norma penal não incriminadora excepcional, o que impede a utilização de analogia. Ou seja, o inciso traz requisitos que são de observância obrigatória. Não pode, por exemplo, a própria mulher estuprada praticar o aborto, pois estaria incorrendo na conduta criminosa descrita no artigo 124 da lei penal. Portanto, para os doutrinadores filiados a essa corrente, é indispensável que a prática abortiva seja realizada pelo médico.

A respeito da natureza jurídica do aborto humanitário, a doutrina diverge se seria hipótese de estado de necessidade ou de inexigibilidade de conduta diversa, ao contrário do que ocorre com o aborto terapêutico, previsto no inciso I do art. 128 do Código Penal, em que há unanimidade no sentido de se tratar de excludente de ilicitude por estado de necessidade. No tocante ao aborto humanitário, parte da doutrina entende que essa excludente também se aplica a este instituto, porém, a corrente majoritária se manifesta de forma contrária a este entendimento, afirmando se tratar de inexigibilidade de outra conduta.

Conforme já estudado, o artigo 24 do Código Penal dispõe que o estado de necessidade se configura quando o agente pratica o fato típico para salvar direito próprio ou alheio cujo sacrifício, nas circunstâncias, não é razoável exigir. A disposição exige ainda que o perigo seja atual, não provocado pela vontade do agente e impossível de por ele ser evitado.

Assim, tem-se que o estado de necessidade é marcado pelo confronto de bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. Cabe ao aplicador do direito ponderar qual deles deve prevalecer em relação ao outro. Pode-se afirmar que essa ponderação deve ser feita a partir da indisponibilidade de cada direito, tendo como parâmetro sempre os preceitos contidos na Constituição Federal, que é a Lei orientadora de toda a ordem jurídica.

Ou seja, se houver conflito entre o direito à liberdade e algum direito patrimonial, por exemplo, pode-se afirmar que não seria razoável sacrificar à liberdade, que é direito fundamental e inviolável segundo disposição do artigo 5º da Carta Republicana. Assim, percebe-se que é necessário ponderar sobre qual bem deve prevalecer no caso concreto, para que se possa invocar a excludente do estado de necessidade. Acerca dessa ponderação, existem duas teorias: a teoria unitária e a teoria diferenciadora.

Segundo a teoria unitária, para estar caracterizado o estado de necessidade é preciso que o bem que se queira proteger tenha valor jurídico superior ou igual àquele que será sacrificado. É o que se chama de estado de necessidade justificante. Já a teoria diferenciadora traça uma distinção entre esse estado de necessidade justificante e uma outra modalidade: o estado de necessidade exculpante, que poderia ser alegado quando o bem sacrificado tivesse valor menor que o bem protegido. Nessa hipótese, não se afasta a ilicitude da conduta (como na modalidade justificante), mas sim a culpabilidade.

A doutrina majoritária entende que o Código Penal brasileiro, devido à redação do dispositivo contido no artigo 24, adotou a teoria unitária, como se percebe pela seguinte lição de de Heleno Cláudio Fragoso: “A legislação vigente, adotando a fórmula unitária para o estado de necessidade e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso do naufrago que, para reter a única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude da culpa (inexigibilidade de outra conduta), que a seu tempo examinaremos.” (FRAGOSO, 1993, p. 189)

Assim, percebe-se que Fragoso descarta se tratar de estado de necessidade a situação em que o bem que se quer proteger for menor que aquele que será violado. Para o jurista, assim como para a maioria da doutrina, a única possibilidade de não haver punição nesses casos é a exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta.

Dessa maneira, pode-se afirmar que a lei penal adotou a teoria unitária no que diz respeito ao estado de necessidade. Assim, essa excludente de ilicitude só estaria configurada quando o bem protegido fosse igual ou mais valioso que o bem violado. No caso do aborto humanitário, trata-se de uma hipótese em que a legislação admite que a vida do nascituro seja violada para preservar a honra e a integridade psíquica da mãe. Fica claro, portanto, que não se tratam de bens iguais. Tampouco aquele bem que se quer proteger é mais valioso do que o que será sacrificado. Em razão disso, a grande maioria da doutrina proclama ser impossível falar em estado de necessidade quando se tratar de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro.

Assim sendo, o aborto humanitário não cumpre o requisito objetivo da razoabilidade estampado no artigo 24 do Código Penal, portanto, não há possibilidade de se falar em estado de necessidade, pois, como já visto neste trabalho, a vida é o principal direito garantido pela Constituição e premissa elementar de todos os outros direitos. Por essa razão, não é possível admitir que uma vida seja sacrificada para preservar outro direito que não seja também direito à vida. É este também o posicionamento defendido por Cezar Roberto Bitencourt, que assim nos ensina: “O princípio da razoabilidade nos permite afirmar, com segurança, que quando o bem sacrificado for de valor superior ao preservado, será inadmissível o reconhecimento do estado de necessidade. No entanto, como já referimos, se as circunstâncias o indicarem, a inexigibilidade de outra conduta poderá excluir a culpabilidade”. (BITENCOURT, 1997 p. 279-280)

Assim como Fragoso, Bitencourt afirma que o sacrifício de bem maior para preservar bem menor impede a invocação do estado de necessidade, mas pode, dependendo das circunstâncias, configurar excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta, que é um instituto caracterizado pela exclusão da punibilidade pela prática de um fato típico, em virtude de, pelas circunstâncias, não haver possibilidade de atuar de outra maneira.

Essa excludente de culpabilidade é muito complicada de ser aferida, em razão de depender de aspectos intrínsecos de cada pessoa. Uma conduta que, para um, seria perfeitamente exigível, para outro pode ser inexigível devido a alguma condição pessoal especial.

Compete acrescentar, outrossim, que a inexigibilidade de conduta diversa é uma excludente de culpabilidade supralegal, visto que sua definição não está prevista de forma expressa no Código Penal, ao contrário das excludentes de ilicitude, como a legitima defesa e o estado de necessidade, que são conceituadas nos artigos 24 e 25 do estatuto repressivo. Assim, embora não haja definição expressa acerca desse instituto, o certo é que o ordenamento jurídico dita parâmetros a serem observados, e, a partir desses parâmetros, devem ser feitos juízos de valoração de cada caso concreto para se chegar a uma conclusão sobre a culpabilidade ou não de determinada conduta.

Este é um instituto, portanto, que atua no campo da culpabilidade, enquanto o estado de necessidade atua no campo da ilicitude. Quem alega inexigibilidade de conduta diversa tem plena consciência de que praticou fato tipificado como crime, no entanto, busca a exclusão de sua culpabilidade em razão dos fatores que o influenciaram a agir de tal forma.

A maioria da doutrina proclama que o aborto em casos de estupro se configura como uma situação de inexigibilidade de outra conduta, visto que seria inaceitável que o Estado obrigasse a mulher a carregar em seu ventre um feto oriundo de uma relação sexual forçada. Assim, a única conduta esperada por essa mulher seria autorizar que o médico realizasse o procedimento abortivo, não podendo haver culpabilidade diante de situação tão delicada.

É este o entendimento da grande maioria dos doutrinadores penalistas, de modo que a mulher que engravida ao ser vítima de estupro, ao optar por interromper a gravidez, estaria, na opinião da doutrina majoritária, acobertada pela excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta. Seria essa, portanto, a natureza jurídica do aborto humanitário.

Desse modo, tem-se que o ordenamento jurídico, atualmente, permite o aborto em três situações e sob os seguintes fundamentos: (I) em caso de gravidez com risco de vida para a gestante, pois opta pela preservação da vida que tem mais chances de sobreviver; (II) em caso de gravidez de feto anencéfalo, pois entende-se que, devido a anencefalia, não há vida a ser protegida; e (III) em caso de gravidez decorrente de estupro, pois entende-se que, diante da violência sofrida pela mulher, não pode o Estado obrigá-la a levar a gestação adiante, pois isso seria contrário à sua dignidade humana.

No entanto, com a ADPF 442, propõe-se a descriminalização irrestrita até o terceiro mês da gestação, independente do motivo que enseje o aborto, visto que, no entendimento das proponentes, os direitos de escolha da mulher devem prevalecer sobre o direito à vida do nascituro. No capítulo seguinte, será abordado este conflito.

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Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi Lima Pereira. Considerações sobre a ADPF 442.: O sistema brasileiro de direitos fundamentais e a possível descriminalização do aborto pela via jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6216, 8 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83782. Acesso em: 25 dez. 2024.

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