3. Quando os direitos entram em conflito
Na ADPF 442, a arguente sustenta que os direitos de liberdade da mulher, como os referentes ao planejamento familiar, devem se sobrepor aos direitos do nascituro, chegando a afirmar que levar adiante uma gestação não planejada violaria a dignidade humana e o princípio da vedação à tortura.
Tem-se, portanto, um claro e evidente conflito entre os direitos femininos de autodeterminação e o direito à vida do nascituro. Para alcançar uma conclusão a respeito de qual deve prevalecer, é importante relembrar alguns conceitos vistos durante este trabalho.
O título II da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais, que são cláusulas pétreas, visto que impossíveis de serem abolidos do ordenamento. Dentro deste título, o artigo 5º elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança, os atribuindo status de invioláveis.
O Código Penal, em seus artigos 124, 125 e 126, tipifica como crime a realização da conduta abortiva. Esse dispositivo, por sua vez, está elencado no título referente a crimes contra a vida do estatuto repressivo. Sendo certo que toda a legislação infraconstitucional busca efetivar os direitos garantidos pela constituição, é lógica a conclusão de que os direitos fundamentais previstos na Carta Magna alcançam tanto o sujeito já nascido quanto o nascituro.
Noutro giro, o próprio Código Civil consagra a tutela jurídica do nascituro, conforme se depreende de seu artigo 2º, que põe seus direitos a salvo desde o momento de sua concepção. Como é a Constituição que orienta toda a interpretação e aplicação dos demais ramos do direito, fica claro que as disposições constitucionais fundamentais alcançam a vida intra-uterina, protegendo-a desde o momento consignado na lei civil, em razão da ausência de outro marco inicial no ordenamento jurídico brasileiro.
É evidente, portanto, que são destinatários dos direitos fundamentais tanto o já nascido quanto o nascituro, motivo pelo qual o Código Penal criminaliza as condutas atentatórias à vida humana, conforme positivado no capítulo I do título I da parte especial do referido diploma, dentre os quais se insere o aborto.
Compete destacar que, conforme manifestações da Procuradoria Geral da República, da Advocacia Geral da União, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados nos autos da ADPF 442, o ordenamento constitucional brasileiro é claro ao estabelecer integral proteção à vida humana, desde o momento em que ela se inicia.
Vale destacar, também, que, tanto na ADPF 54, que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, quanto no voto do Ministro Barroso no HC 124.306/RJ, que foi acompanhado pelos Ministros Fachin e Rosa Weber, o fundamento das decisões foi a ausência de vida: no primeiro caso, entendeu-se que o anencéfalo não tem vida a ser protegida, em razão da ausência de atividade cerebral; no segundo caso, entendeu-se que só há vida viável após o terceiro mês de gestação, quando se forma o sistema nervoso central.
Desse modo, a tese proposta na ADPF 442 se funda em argumentos equivocados ao afirmar que o ordenamento brasileiro deveria acompanhar o direito comparado e dar maior valor jurídico aos direitos de liberdade da mulher em detrimento do direito à vida do nascituro, entendimento que, embora adotado em outros países, jamais teve guarita no sistema constitucional brasileiro.
Desse modo, a conclusão aqui alcançada é no sentido de que, caso o Supremo Tribunal Federal decida pela descriminalização do aborto nos três primeiros meses da gestação, deverá fazê-lo sob o fundamento de que a vida se inicia somente após o terceiro mês gestacional, adotando como certos os estudos médicos existentes sobre o assunto, conforme o|Ministro Barroso sustentou no HC 124.306/RJ, hipótese em que estaria preservado o sistema constitucional brasileiro de direitos fundamentais, visto que a vida estaria protegida desde o momento em que se inicia. Por outro lado, se a Corte admitir que os direitos invocados na ADPF 442 devem se sobrepor ao direito à vida do nascituro, tratar-se-á de uma decisão que irá contra toda a nossa ordem constitucional.
Conclusão
Todo este trabalho foi construído sob a premissa de que a proteção constitucional à vida humana se inicia no momento da concepção, conclusão decorrente dos seguintes fatos: (I) a Constituição garante a todos o direito à vida, sem mencionar o momento em que ele se inicia; (II) o Código Civil põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, o que indica que é neste momento que a proteção constitucional começa; e (III) o Código Penal inclui o aborto no rol de crimes contra a vida, também sem delimitar nenhum estágio específico da gestação, nos fazendo crer que, desde a concepção, incide o referido tipo penal.
Assim, a premissa acima foi alcançada baseada em aspectos única e exclusivamente jurídicos, decorrente do nosso sistema constitucional. Em nenhum momento deste trabalho foi levantado nenhum argumento religioso ou filosófico sobre o feto para sustentar a posição aqui defendida. O estudo foi pautado, tão somente, na ordem jurídica estabelecida, sendo certo que, ao não indicar o momento específico do início da vida, nosso ordenamento deixa claro que ela se inicia na concepção.
No entanto, se for juridicamente estabelecido, segundo critérios médicos e biológicos, que o início da vida se dá em etapa gestacional posterior à concepção, como defendem alguns profissionais da saúde, este subscritor não faria qualquer objeção à descriminalização irrestrita da antecipação do parto durante essa fase “sem vida” do produto intra-uterino.
Em suma, tudo depende do momento em que a vida começa. Nosso ordenamento, conforme demonstrado neste trabalho, indica que seu início é na concepção, o que motivou todos os argumentos acima despendidos. No entanto, o Supremo Tribunal Federal vem dando indícios de que pode, pela via jurisprudencial, estabelecer um momento distinto do da concepção para fins de proteção a vida, o que já foi defendido por três ministros nos autos do HC 124.306/RJ, e agora será objeto de deliberação do plenário da Corte por ocasião do julgamento da ADPF 442.
Na mencionada ADPF, pleiteia-se a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, para descriminalizar a interrupção da gestação nos três primeiros meses da gravidez. Para tanto, a arguente invoca diversas inspirações do direito comparado, bem como sustenta que os direitos da mulher devem se sobrepor aos direitos do nascituro.
Com a devida vênia às advogadas subscritoras da referida ADPF, o Supremo Tribunal Federal é guardião da Constituição brasileira, sendo indiferente a experiência de outros países para fins de aplicação do direito brasileiro. O direito comparado pode e deve ser invocado para embasar o legislador na ocasião da elaboração de diplomas legais, bem como para orientar o aplicador do direito nas hipóteses de lacunas da lei, mas não para mudar a essência do nosso sistema constitucional.
Também baseado no nosso sistema constitucional, por tudo que já foi demonstrado neste trabalho, não podemos aceitar que os direitos de liberdade da mulher, embora de extrema importância, possuam maior expressão jurídica do que o direito à vida do nascituro, pois, diante de um conflito de direitos fundamentais, nossa Constituição nos orienta no sentido de que deve prevalecer o direito à vida, que é o principal bem jurídico protegido por nosso ordenamento, sendo a única exceção o aborto em casos de estupro, em que a justificativa para o abortamento é a violência que gerou a gestação, o que atrai a exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa e em nada se assemelha aos argumentos aduzidos na ADPF, que dizem respeito a gestações oriundas de relações consentidas.
Conforme abordado anteriormente, os poderes legislativo e executivo se mostraram contra o pleito da arguente, o que foi consignado no processo por meio de manifestações da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da Presidência da República e da Advocacia Geral da União. A Procuradoria Geral da República, na qualidade de fiscal da lei, também opinou pela improcedência do requerido.
No entanto, a tendência é que a relatora Rosa Weber vote pela procedência da ADPF 442, considerando seu posicionamento no HC 124.306/RJ. Pelo mesmo motivo, acredita-se que será acompanhada pelos Ministros Fachin e Barroso. Faltariam mais três ministros para formar a maioria absoluta exigida pelo artigo 97 da Constituição para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Caso a arguição seja julgada procedente, autorizando a descriminalização do aborto no primeiro trimestre da gestação, a decisão poderá ser proferida sob dois fundamentos: (I) reconhecendo, através do acolhimento de pareceres científicos já mencionados pela própria Corte, que a vida humana se inicia em período gestacional posterior à concepção, mais precisamente após o terceiro mês, quando se forma o sistema nervoso central, de modo que a antecipação do parto nessa fase não seria crime contra a vida; ou (II) admitindo, conforme os moldes do direito norte-americano, que os direitos de liberdade da mulher seriam mais expressivos que o direito à vida do nascituro.
Assim, vindo a se concretizar a descriminalização pelo primeiro fundamento, penso que não haveriam críticas a serem feitas, pois estaria se respeitando o mandamento constitucional de proteção à vida desde o momento em que ela se inicia, o que seria estabelecido segundo critérios científicos, hipótese em que a decisão estaria em perfeita consonância com tudo o que foi defendido neste trabalho. No entanto, caso eventual descriminalização se paute no segundo fundamento, estaríamos diante de um cenário em que a Corte se voltaria contra nosso próprio sistema constitucional, em uma espécie de triste norte-americanização do nosso direito.
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