Capa da publicação A atualidade de Guy Debord: a pós-modernidade e a sociedade do espetáculo
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A atualidade de Guy Debord

17/07/2020 às 20:50
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Reflexões sobre o homem pós-moderno e seu real papel na humanidade, à luz de Guy Debord (e, sobretudo, em tempos de pandemia).

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de ‘espetáculos’. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação [1]

O mês de maio de 1968 [2] se traduz em importante momento histórico, considerando os movimentos sociais ocorridos e que, de uma forma ou de outra, transformaram o mundo ocidental. Tudo começou em janeiro de 1968, no Vietnã, quando os guerrilheiros vietcongues comunistas [Vietnã do Norte] lançaram a assim denominada Ofensiva Tet [ano novo vietnamita] contra as tropas norte-americanas e o Vietnã do Sul, fato esse que acabou por gerar manifestações mundiais contra a intervenção militar dos Estados Unidos. O cenário para oposição à guerra estava preparado, servindo de verdadeiro pano de fundo para insatisfação bem maior da sociedade: além do sentimento contra a guerra, externado pela sociedade estadunidense [especialmente por parte dos jovens], outros movimentos foram surgindo com o passar dos meses, inclusive no Brasil, no regime militar.

De fato, Paris se tornou o epicentro dos protestos europeus que buscavam, mesmo que utopicamente, a alteração de valores da sociedade; liberdade [inclusive no âmbito sexual]; o direito ao [amplo e irrestrito] prazer; necessidade de novas políticas trabalhistas e estudantis, por parte do governo; o respeito à diferença, inclusive em relação às minorias e às mulheres; criticava-se o sistema educacional e a sociedade de consumo; questionava-se a relação entre pais e filhos e o modelo de conduta estabelecido pela sociedade. Enfim, buscava-se uma verdadeira revolução política e social, afastando-se valores tradicionais. A irresignação estudantil era contra o conformismo da sociedade.

De fato, pairava no ar, já nos primeiros meses de 1968, verdadeiro espírito libertário e a almejada permissividade [quase que absoluta], por parte dos jovens. Em Paris, duas Universidades foram literalmente ocupadas pelos estudantes: a de Nanterre [22 de março] e a de Sorbonne [14 de maio]. A revolta de tais estudantes, atirando pedras [3] e coquetéis molotov na polícia teve imediata e violenta resposta, porquanto estes mesmos estudantes apanharam de cassetetes e os policiais fizeram uso de gás lacrimogênio. As exigências dos estudantes, dentre outras, eram: o direito de desfrutarem de dormitórios mistos e que tivessem mais voz perante as reitorias das universidades. Os estudantes parisienses também apanharam da polícia após as reiteradas [e famosas] pichações de muros e fachadas e também quando perseguidos na famosa Noite das Barricadas [10 de maio].

Com efeito, dentre outros, o lema é proibido proibir gerou sérios e graves conflitos entre estudantes e polícia na aludida noite de 10/05/1968. No mês de maio de 1968 houve pedido [deveras infrutífero], por partes dos estudantes, de renúncia do presidente Charles de Gaulle, o que de fato não ocorreu em tal momento histórico [4]. Paralelamente à revolta dos estudantes, os operários também demonstraram insurgência contra o governo De Gaulle. Em 13 de maio foi convocada greve geral, com a participação decisiva de milhares de trabalhadores, sendo que o governo francês se sentiu acuado. Tanto é que, a uma, se chegou a pensar na hipótese de colocar as tropas do exército nas ruas, mas considerando que os soldados tinham praticamente a mesma idade dos estudantes, até poderia ocorrer certa confraternização de jovens, e, a duas, De Gaulle efetivamente se deslocou para uma base militar na Alemanha a fim de fugir do caos instaurado em terras francesas.

Os trabalhadores ocuparam fábricas e, em 17 de maio, houve paralisação do transporte ferroviário, sendo não menos certo que na França havia dez milhões de trabalhadores com braços cruzados [em todo o país foram fechadas mais de 300 fábricas!!] e no dia 20 de maio inexistia metrô, ônibus e outros serviços essenciais à população. O governo De Gaulle, diante do caos instaurado no país, estrategicamente ofertou aumento de 35% [trinta e cinco por cento] no salário mínimo, tentando minar a paralisação dos trabalhadores, e paralelamente convocou eleições legislativas gerais. A bem da verdade, a insurgência dos trabalhadores nada tinha em comum com a reforma pretendida pelos estudantes, mas, diante do momento histórico, tudo acabou acontecendo naquele ano de 1968. As ideologias eram diferentes, mas a irresignação dos estudantes foi o estopim, o indisfarçável combustível para a greve geral dos trabalhadores na França.

Por fim, quanto ao essencial para o presente escrito, saliente-se que de fato houve eleições na França, e o presidente Charles de Gaulle foi fortalecido; os protestos dos estudantes não mais tiveram força para fins de obter o resultado almejado, sendo que as universidades restaram por eles desocupadas. O sonho [utópico] dos estudantes acabou em tal momento histórico.

Considerando o espaço para o presente escrito, não haverá reflexão acerca da Primavera de Praga [5] - movimento não menos relevante ocorrido no ano de 1968 -, e que também serve para fins de compreensão histórica, pois, se buscou a criação [certamente utópica] de uma sociedade comunista e democrática na Techecoslováquia. Houve insurgência contra a invasão soviética, sendo não menos certo que alguns anos depois [em 1989] o mundo assistiu a queda do Muro de Berlim.

Por outro lado, o Brasil vivia plenamente o regime militar [6], sendo que a Passeata dos Cem Mil [organizada pelo movimento estudantil], realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 26/06/1968, foi o ápice de resistência, mas não menos certo que o país ainda viveria muitos momentos sombrios, cinzentos e tristes, pois exatamente em 13/12/1968 o Ato Institucional n. 5[7] concedeu exacerbados poderes ao presidente da República para fins de dissolver o Congresso Nacional [fechado por um ano], retirar direitos civis e políticos dos cidadãos, tornou legal legislar por decreto-lei e autorizou o confisco de bens, dentre outras medidas.

Obviamente que tais atos seriam impensáveis nos dias hodiernos, considerando os termos da Carta Política de 1988. Os estudantes, tanto na década de 1960 quanto nas posteriores, tiveram certamente um papel decisivo e relevante pela [tentativa de] democratização do país. Na década de 1970 lutaram [até mesmo ocorrendo mortes] contra o regime militar e na de 1980 foram às ruas buscando as assim denominadas diretas já e depois também foram às mesmas ruas com as caras pintadas. Não menos relevante dizer que a ideologia dos estudantes da década de 1960 era completamente diversa daquela vivida quando da tentativa de afastar o presidente da República, nos anos 1990.

Prosseguindo, no ano de 1985 houve a abertura política e, finalmente, a contar de 1988 o país passou a viver de forma “democrática”, considerando, também, a abertura política e o catálogo principiológico constitucional.

Com efeito, o livro de Guy Debord - A Sociedade do Espetáculo [8] - se tornou, sem sombra de dúvida, firme e sólida referência aos protestos dos estudantes franceses, na justa medida em que seu texto vaticionou não só o que se daria naquele ano de 1968, mas sim o que ocorreria neste século XXI.

Consoante bem esclarece Vladimir Safatle [9] a influência do pensamento de Guy Debord não pode ser compreendida sem introduzir este que é seu conceito central: ‘espetáculo’. Resultado do advento de uma era em que a produção econômica se submete à lógica que coloniza a cultura após o esgotamento da força diruptiva das vanguardas, a noção de espetáculo visa dar conta do núcleo das transformações contemporâneas nas técnicas de governo. Transformações que colocaram a produção do espetáculo no cerne dos dispositivos de colonização de nossas formas de vida. E prossegue, a respeito da obra de Guy Debord, escrevendo que no interior das relações de interação social, as massas alienadas teriam por característica maior deixar-se guiar por imagens.

Firme e indisfarçável legado de 1968, o texto de Guy Debord merece reflexão, até mesmo para se [tentar] compreender o mundo pós-moderno, os tempos de capitalismo neoliberal globalizante (os modos operantes de produção capitalistas), que, paralelamente à concessão ao consumismo desenfreado, também gera a classe dos excluídos, por assim dizer.

É importante relembrar, neste passo específico, alguns dos axiomas de Guy Debord, que se encaixam perfeitamente nestes tempos pós-modernos, tempos de tecnologia da informação, da era digital, de blogs, de mensagens eletrônicas, de cyberspace, de lives e de redes sociais. Prepondera, inexoravelmente, o virtual sobre o real no século XXI; coloca-se a ideia exacerbada do eu sobre o outro. Lembre-se, pois, que a linguagem dos mais jovens, via mensagens eletrônicas e outros canais de comunicação é uma linguagem deveras peculiar, própria, com utilização indiscriminada de abreviaturas, causando mais do que evidentes ranhuras na Língua Portuguesa, aguilhoando-a diariamente. Ressalte-se ainda que a web externa sua peculiar razão de ser, sendo certo que não mais se pode falar em direito à privacidade na era do espetáculo e da imagem. Os selfies e os bastões que o digam.

No axioma 153 da obra de Guy Debord lê-se basicamente o seguinte: em setor mais avançado, o capitalismo concentrado orienta-se para a venda de blocos de tempo ‘todos equipados’, cada um constituindo uma única mercadoria unificada, que integrou um certo número de mercadorias diversas. Por isso, na economia em expansão dos ‘serviços’ e dos lazeres pode aparecer a expressão ‘pagamento com tudo incluído’ para o hábitat espetacular, os pseudodeslocamentos coletivos das férias, as assinaturas do consumo cultural e a venda da própria sociabilidade sob a forma de ‘conversas animadas’ e de ‘encontros com personalidades’. Essa espécie de mercadoria espetacular, que evidentemente só pode existir em função da penúria das realidades correspondentes, também aparece entre os artigos que promovem a modernização das vendas, e pode ser paga a crédito [10].  E quanto ao capitalismo, assim pensa o autor: com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo irreversível ‘unificou-se mundialmente’. A história universal torna-se uma realidade, porque o mundo inteiro está reunido sob o desenvolvimento desse tempo. Mas essa história, que em todo lugar é a mesma, ainda é apenas a recusa intra-histórica da história. O tempo da produção econômica, recortando em fragmentos abstratos iguais, se manifesta por todo o planeta como o ‘mesmo dia’. O tempo irreversível unificado é o do ‘mercado mundial’ e, corolariamente, do espetáculo mundial [11]. E mais: o movimento real que suprime as condições existentes governa a sociedade a partir da vitória da burguesia na economia e, visivelmente, desde a tradução política dessa vitória. O desenvolvimento das forças produtivas rompeu as antigas relações de produção, e toda a ordem estatal se desfaz em poeira. Tudo o que era absoluto torna-se histórico [12].

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E para rematar: As pessoas admiráveis em quem o sistema se personifica são conhecidas por aquilo que não são; tornaram-se grandes homens ao descer abaixo da realidade da vida individual mínima. Todos sabem disso [13]. Com efeito, a atriz principal do espetáculo do século XXI nada mais é do que a representação do homem; a ideia que o outro tem a nosso respeito e não o que de fato somos. Impera, pois, o mundo da mercadoria, indispensável ao prosseguimento da vida humana. O homem se tornou mercadoria, ou coisa, para ser mais preciso e objetivo.

Por fim, vale a pena relembrar o pensamento [sempre vivo] de Hannah Arendt, no sentido de que toda formação política se caracteriza pelo poder (não pela violência!) que ela é capaz de exercer; pobreza, fome e analfabetismo criam apenas impotência [14], de modo que cabe ao homem pós-moderno repensar, efetivamente, acerca da sociedade do espetáculo e qual o seu real papel quanto ao futuro da humanidade, em especial no plúmbeo tempo de pandemia sanitária.


Notas

[1] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo. 1ª edição, 8ª reimpressão. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006, p.13. Grifo constante do original. Ver também: DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Éditions Gallimard, 1992. Com efeito, a obra La Société du Spectacle foi lançada em novembro de 1967, em Paris. De fato, Guy Ernest Debord [1931 – 1994] foi um dos fundadores [na Itália] da Internacional Situacionista, exatamente no ano de 1957. Note-se que as idéias de Debord deitam profundas e firmes raízes no pensamento marxista e também na obra de Georg Lukács [História e Consciência de Classe], editada no Brasil pela Martins Fontes, com a certeira crítica à reificação.

[2] A propósito, por todos: FUENTES, Carlos. Em 68: Paris, Praga e México. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2008.

[3] Das calçadas do bairro Quartier Latin.

[4] Que renunciou ao cargo em abril de 1969, sendo sucedido por seu primeiro-ministro Georges Pompidou, que governou a França no período de 1969 a 1974.

[5] Sendo que em 1968 o mundo viveu outros acontecimentos importantes, como a morte de Martin Luther King [4 de abril, em Memphis-USA], que levou um tiro no pescoço. King foi o maior líder negro norte-americano, sendo, de fato, um dos precursores da luta contra o racismo em tal país. 

[6] No período de 1964 a 1985.

[7] Decreto assinado pelo Presidente Costa e Silva, e que serviu de inexorável instrumento de poder político.

[8] Que se transformou em filme-documentário em 1973.

[9] O Estado de São Paulo, 13/04/2008, D6.

[10] A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, cit., p. 105. Todos os grifos no original.

[11] Op. cit., p. 101. Grifos no original.

[12] Idem, p. 49.

[13] Idem, p. 41.

[14] Disponível em http://www.folha.com.br/081221.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. A atualidade de Guy Debord. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6225, 17 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83796. Acesso em: 3 dez. 2024.

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