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O transexualismo e a operação para mudança de sexo.

Uma ponderação diante dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à informação

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04/06/2006 às 00:00
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OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

No intuito de esclarecer e minudenciar o presente estudo faz-se necessário, ainda que superficialmente, mencionar os direitos da personalidade ou direitos personalíssimos, entendidos estes por J. M. Leoni Lopes de Oliveira como os:

... direitos subjetivos absolutos que possibilitam a atuação legal, isto é uma faculdade ou um conjunto de faculdades, na defesa da própria pessoa, nos seus espaços físico e espiritual, dentro do autorizado pelas normas e nos limites do exercício fundado na boa-fé. [17]

Os direitos personalíssimos possuem características que o distinguem, tais como: são direitos inatos, isto é, nascem com os indivíduos; são direitos vitalícios, desde que perduram durante a vida inteira da pessoa e, muitas vezes, até mesmo depois de sua morte, como o direito à honra; são, também, direitos absolutos, isto é, valem contra todos, erga omnes, portanto; são direitos extra-patrimoniais, visto que não se aferem monetariamente; são, ainda, direitos intransmissíveis e irrenunciáveis, pois com a morte do titular estes são não transmitidos a seus herdeiros e não podem ser objeto de renúncia por seus titulares; finalmente, são direitos de objeto interior, "tendo em vista que o objeto dos direitos da personalidade é a personalidade física ou moral da pessoa", [18] objeto de direitos e deveres.

Distingue-se, na evolução histórica dos direitos da personalidade, quatro gerações de direitos. A primeira geração de direitos impõe uma obrigação negativa por parte do Estado em relação às liberdades individuais. A segunda geração, ao contrário, impõe um fazer do Estado no sentido de proteção aos direitos fundamentais. No sentido de proteger a qualidade de vida dos indivíduos sob proteção do Estado surgem os direitos de terceira geração, como, por exemplo, a defesa do patrimônio genético da espécie humana. Surgem, em seguida, os direitos fundamentais de quarta geração que é expressa por Lorenzetti [19] como "direito de ser diferente". Em relação a esses últimos Leoni leciona:

E explica esses direitos da quarta geração, esclarecendo que, além dos direitos das gerações anteriores, outros direitos existem, que surgem de um processo de diferenciação de um indivíduo em relação ao outro. Trata-se de questões, tais como o direito à homossexualidade, à troca de sexo, ao aborto, a recusar tratamentos médicos que levem à morte. (grifo nosso)

Se bem constituam derivações da liberdade, trata-se de aplicá-las a um campo em que, tradicionalmente, reinou o público, o homogêneo, e que se considerou vital para o funcionamento social. [20]

O direito à mudança de sexo, para Leoni, é questão diretamente ligada ao direito ao próprio corpo e que inicialmente requer a correção do termo, visto que o que ocorre, em verdade, é a alteração do estado individual. Em decorrência, não será objeto de apreciação por uma Vara de Registros Públicos e sim por uma Vara de Família. Trata-se, o estado da pessoa, de questão de ordem pública cujas características são a imprescritibilidade, a indivisibilidade e a indisponibilidade. [21]

Mais uma vez tomando emprestado os ensinamentos de J. M. Leoni, transcreve-se a distinção, pela clareza de idéias, entre a identidade estática e a identidade dinâmica na análise do direito à identidade:

Segundo a doutrina italiana, conforme ensinamento de Lorenzetti, o indivíduo possui uma identidade estática e uma identidade dinâmica. A identidade estática "compreende o nome, a identificação física, a imagem. Isto está protegido pelas leis referentes ao nome, à capacidade e ao estado civil". Enquanto a identidade dinâmica diz respeito a "uma verdade biográfica, uma história, um estilo individual e social do sujeito; é aquilo que diferencia o indivíduo, que o faz diverso.

Machado disse que uma pessoa faz caminho ao andar, vai deixando seu rastro; é por isso que alguns autores falam de direito à paternidade de seus próprios atos. É a forma em que os demais nos olham pelo que temos feito na vida: somos um tipo especial de católicos, de profissionais, de trabalhadores; somos ecologistas, homens de paz, bons vizinhos, afiliados a um clube etc. Tudo isso nos identifica.

Este aspecto é dinâmico, porque é variável, e faz referência ao passado, aos fatos objetivos que a pessoa vai deixando, e pelos quais as outras pessoas a reconhecem". [22]

Ocorreria, segundo o renomado autor, a lesão à identidade dinâmica todas as vezes em que se atribuísse a uma pessoa atributos diversos daqueles que efetivamente possui ou omite. Exemplifica-se a hipótese com um caso italiano: um médico, ativista no combate ao fumo, teve sua imagem propalada em uma campanha publicitária em que apóia o hábito de fumar determinados cigarros menos nocivos que outros. O Tribunal de Milão condenou a empresa a reparar os danos ocasionados pela campanha publicitária à imagem do médico, visto que suas declarações, em momento algum, permitiam este entendimento. [23]

Verifica-se, portanto, que impedir, de alguma forma, a alteração do sexo no registro civil de uma pessoa que faz a cirurgia de mudança de sexo, é atentado claro e ofensivo à identidade dinâmica desta pessoa.


O REGISTRO

O art. 9º do CC prevê que os nascimentos serão objeto de registro.

A Lei 6.015/73, que dispõe sobre os Registros Públicos, por seu turno, prevê, em seu art. 50, que "todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro... " e complementa, em seu art. 54, que "o assento de nascimento deverá conter o sexo do registrando".

A grande finalidade do registro, para Arnaldo Rizzardo, é "servir de prova do estado da pessoa, pois, universalmente, tal exigência é uma constante na vida". [24]

Impossível falar a respeito do Registro Civil das Pessoas Naturais sem compulsar a obra de Walter Ceneviva. Este autor, lugar comum de estudo, nos ressalta a razão e finalidade legitimadoras deste ato de reserva estatal:

O Estado tem no registro civil a fonte principal de referência estatística... O indivíduo nele encontra meios de provar seu estado, sua situação jurídica. Fixa, de modo inapagável, os fatos relevantes da vida humana, cuja conservação em assentos públicos interessa à Nação, ao indivíduo e a todos os terceiros. Seu interesse reside na importância mesma de tais fatos e, outrossim, na repercussão na existência do cidadão: ele é maior ou menor, capaz ou incapaz, interdito, emancipado, solteiro ou casado, filho, pai. É todo um conjunto de condições a influir sobre sua capacidade e sobre as relações de família, de parentesco e com terceiros.

A Constituição afirma a importância do registro civil ao assegurar a gratuidade aos reconhecidamente pobres, do assento de nascimento e da certidão de óbito. [25]

Continua o autor em sua preleção afirmando que os registros públicos atingem a segurança, como libertação do risco. Aperfeiçoando-se os sistemas de controle dos registros públicos "e sendo obrigatórias as remissões recíprocas, tendem a constituir malha firme e completa de informações". [26]

Estabelecendo a presunção de veracidade e de autenticidade dos atos levados a registro, são exemplos de princípios informadores do sistema de registro a segurança e a fé pública. Por obvio, a Lei de Registros Públicos, Lei 6.015/73, adota um sistema de presunção relativa quanto ao teor da declaração, o que requer, para que se evite a produção de seus regulares efeitos, a impugnação do ato registrado. [27]

Ainda em relação aos serviços públicos afirma o mestre Ceneviva que estes possuem três espécies de efeitos jurídicos: os constitutivos, que ocasiona o não nascimento do direito quando ausente o registro público; os comprobatórios, pelos quais são provadas a existência e a veracidade do ato de registro ao qual este se reporta; e, finalmente, os publicitários, que permite a interessados e não interessados o conhecimento do ato registrado. [28]

A justiça permite a sobrevivência da segurança jurídica. Dispondo a respeito em "O registro civil e o perdimento freqüente das noções jurídicas mais principais", Ricardo Dip leciona que "entre os débitos da justiça está o direito à certeza. Se, são palavras de Tocqueville, ‘a ordem sem a justiça é a barbárie’, não menos certo é que a justiça sem certeza prática é pior que isso, é a anarquia". [29]


CONCLUSÃO

Tem-se por pretensão possibilitar uma amplitude e conscientização crítica, em especial a atenção de magistrados, legisladores e da sociedade em geral, para uma realidade que se torna cada dia mais comum diante do avanço das técnicas médicas e dermatológicas.

O dinamismo da vida moderna não pode ser limitado por regramentos conflituosos entre a realidade fática e o ordenamento abstrato e muitas vezes arcaico. As leis, lato sensu, devem acompanhar a evolução da sociedade. Sua interpretação deve levar à solução dos conflitos gerados pelas novas tecnologias e possibilidades de alteração de situações extraordinárias.

Se de um lado o Direito não pode permitir que a dignidade humana do transexual seja violada a todo instante pela apresentação de documentos que não condizem com sua realidade física e psíquica, por outro não pode permitir a violação da dignidade humana de seu futuro cônjuge e, tampouco, que uma ficção jurídica criada pelo Estado permita a realização de um casamento em que possa estar havendo erro quanto à pessoa. Também não se pode admitir a violação pura e simples do princípio da publicidade, mola mestra do Estado Democrático de Direito.

Diante da impossibilidade de verificação biológica eficaz em sua totalidade em função da existência de hipóteses excepcionais em que a simples presença de um cromossoma XXY, por exemplo, poderia ocasionar outra série de dúvidas (método descartado pelos organizadores de jogos olímpicos pela ocorrência de erros graves cometidos no passado) e, também, pelo elevado custo de tais exames, esta não seria a solução ideal a ser adotada no caso brasileiro.

Sem a pretensão de certeza inquestionável sugere-se a simples exigência de concordância do futuro cônjuge na habilitação para o casamento. A questão que deve ser enfrentada diz respeito a como adequar os dois princípios aqui enfrentados sem ferir o princípio da certeza das relações jurídicas e da privacidade de informações. Como garantir o direito a uma opção de dignidade de vida, pelo transexual e não acarretar a violação de outro, o da informação para o eventual cônjuge daquele a quem se quer proteger e, tampouco, se permitir que o Estado concorra para vínculos construídos em erro?

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Em discussão informal, sobre o presente tema, o ilustre Registrador Dr. Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza, sugere que nas futuras habilitações para o casamento passem a ser exigidas certidões emitidas pelo Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN), na forma do art. 21 da Lei 6.015/73, isto é, que na certidão de nascimento para instruir o pedido de habilitação constem todas as averbações e anotações posteriores.

Com costumeira razão o ilustre registrador. Se num primeiro momento isto quebraria o critério da privacidade, faz com que, por um lado, se inibam falsas verdades declaradas entre os nubentes, obrigando, a todos, a uma postura de declaração espontânea de verdade; por outro, tais informações, prestadas, em sua inteireza, estariam vinculadas a uma determinada finalidade e somente a esta. Por sua vez, caberá ao oficial responsável pela certidão de modificação do sexo informar quanto à existência de certo fato relevante e, ao destinatário, o cuidado de convocar, nos termos do § 5º do art. 67 da citada Lei de Registros Públicos (LRP), apenas, o beneficiado pela transformação. Em caso de resistência, quanto à ciência do outro, submeter o dado ao juiz a que esteja subordinado. Isto, por certo, melhor se regulamentará por lei, mas enquanto isto, atos de eficácia normativa, no âmbito da administração das corregedorias, podem ser adotados com diligência e segurança.

Ciente da exigência legal o transexual haveria de optar em dizer a verdade e correr o risco de não ser absolutamente correspondido ou não adotar o ato solene do casamento.

O que não se pode permitir é que a situação seja tratada com a mesma certeza que permitiu a condenação e a expulsão pelo Conselho de Medicina de médico que, no passado, realizou a cirurgia de alteração de sexo. Não se pode permitir é que novos sofrimentos sejam ocasionados, agora pela adoção de critérios igualmente injustos como o mais famoso caso que envolve o tema: aquele da transexual Roberta Close, que após anos de luta na Justiça para ver declarado seu direito à alteração de registro, conseguiu finalmente alcançar seu sonho de ver reconhecida sua situação fática.

A questão não é de simples solução como alguns a apresentam. Há que se iniciar uma discussão séria e profunda a respeito do tema para que a Justiça não seja obrigada, novamente, a reconhecer seu erro no futuro.


BIBLIOGRAFIA

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Notas

01 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios - da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 09-2003, p. 15.

02 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 345 e seguintes.

03 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 107.

04 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 304/5.

05 FERREIRA, Aloísio. Direito à informação, Direito à comunicação, São Paulo: ed. Celso Bastos, 1997, p. 94/5.

06 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2216>. Acesso em: 07.09.05.

07 Ibidem.

08 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 195.

9 Ibidem, p. 196.

10 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 490/1.

11 TORRES, Ricardo Lobo. Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 432.

12 Acórdão da Quinta Câmara da Seção de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 165.157.4/5. Apelante: Adão Lucimar *****. Apelado: Ministério Público. Rel. Des. Boris Kauffmann. Data do julgamento: 22/03/2001. Votação unânime. Voto 6.930. Acesso em 29.04.2005.

13 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 129.

14 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do transexualismo. Metodista Digital, 2005. Disponível em: <http://editora.metodista.br/Psicologo1/psi05.pdf>. Acesso em: 07.09.05.

15 Ibidem - as referências dizem respeito às disposições do revogado Código Civil de 1916. Atualmente encontram-se previsões similares no art. 1.560 do CC.

16 FERREIRA, Fábio Alves. O Reconhecimento da União de Fato como Entidade Familiar e a sua Transformação num Casamento não Solene. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 40.

17 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. Teoria Geral do Direito Civil. 2 ed., Vol. 2, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 175.

18 Ibidem, p. 184.

19 LORENZETTI, 1998 apud OLIVEIRA, 2000, p. 186.

20 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes de. Teoria Geral do Direito Civil. 2 ed., Vol. 2, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 186.

21 Ibidem, p. 217.

22 LORENZETTI, 1998 apud OLIVEIRA, 2000, p. 221-222.

23 Cf. OLIVEIRA, p. 226.

24 RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 187.

25 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 75 e 76.

26 Ibidem, p. 5.

27 AGHIARIAN, Hércules. Curso de Direito Imobiliário. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 72.

28 CENEVIVA, loc. cit.

29 DIP, Ricardo. Registros Públicos (Trilogia do Camponês de Andorra). São Paulo: Millennium, 2003, p. 29.

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Sobre a autora
Cláudia Regina Lima Rentroia

advogada e professora no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RENTROIA, Cláudia Regina Lima. O transexualismo e a operação para mudança de sexo.: Uma ponderação diante dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à informação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1068, 4 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8467. Acesso em: 5 nov. 2024.

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