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O impacto das startups no Judiciário do pós-pandemia

03/09/2020 às 10:55
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A pandemia afetou o Poder Judiciário brasileiro: além do surgimento de novos processos, houve a paralisação de algumas atividades. É aí que surgem as startups!

O Poder Judiciário está nitidamente em crise. Quem já teve que entrar com processo judicial, ou trabalha na área, sabe bem disso. Processos demorados, audiências a perder de vista, recursos nunca julgados, processos conclusos ad perpetuam e por aí vai. São centenas de situações nas quais se encontram os procedimentos judiciais brasileiros, que seguiriam os exemplos a perder de vista.

Segundo o Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1], o Judiciário, em 2018, tinha 78.691.031 (setenta e oito milhões, seiscentos e noventa e um mil e trinta e um) processos em estoque, sendo que houve 28.052.965 (vinte e oito milhões, cinquenta e dois mil, novecentos e sessenta e cinco) novos processos ao longo do ano. Ao mesmo tempo, um processo no acervo leva em média 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses do seu início até o seu fim, considerando o cumprimento integral da sentença, se impositiva ou condenatória, ou até o arquivamento. O tempo médio de sentença aumentou para 2 (dois) anos e 2 (dois) meses, em 2018.

O CNJ informou, ainda, que houve esforços significativos para redução do tempo médio do acervo e aumento no número de processos baixados. Entretanto, com a pandemia de COVID-19 e com a consequente necessidade de paralisação das atividades – inclusive judicantes, com paralisação de audiências e de prazos processuais -, todo esse esforço foi por água abaixo.

Ao mesmo tempo em que processos antigos ficaram paralisados, novos processos chegaram ao Tribunal. Além dos processos naturais, tem ainda os processos relacionados a modificações de relações jurídicas preexistentes por causa da pandemia – aluguel de imóveis, suspensão de pagamento de impostos, revisão contratual, questões trabalhistas, etc. -, bem como processos visando modificações dos decretos locais de contenção da pandemia – pedidos de reabertura do comércio ou da desnecessidade de uso de máscara de proteção facial, por exemplo.

Entre 1º e 20 de abril de 2020, a título de exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo recebeu 2.192 (dois mil, cento e noventa e dois) processos relacionados à pandemia de COVID-19 – ou seja, processos a mais do que naturalmente o TJSP receberia no mesmo período[2]. Já a Justiça do Trabalho foi acionada para causas que citam ou sejam relacionadas à pandemia de COVID-19, 64.309 (sessenta e quatro mil, trezentas e nove) vezes em todo o país, até o dia 22 de julho de 2020[3].

Ainda não se sabe qual o impacto da COVID-19 no Judiciário brasileiro, pois o Justiça em Números do CNJ, relativo ao ano de 2020, deverá sair ao final de 2021. Entretanto, é nítido que houve imenso impacto e que toda a coleta de bons frutos que o Judiciário vinha fazendo para reduzir a quantidade de processos em andamento – e também reduzir o tempo de acervo, de julgamento e execução – foram por água abaixo.

Tal crise, portanto, precisa acender a luz do Poder Judiciário para que o mesmo perceba que há a necessidade urgente de modificações ou, do contrário, o mesmo ficará cada vez mais e mais abarrotado.

E, assim, surge a necessidade de se investir em tecnologia e outros métodos para se diminuir o impacto da pandemia de COVID-19 nos Tribunais brasileiros.   

Nos últimos anos, o Poder Judiciário já vem investindo em tecnologia para melhorar o seu trabalho e ficar cada vez mais desobstruído. Como exemplo, podemos trazer o Processo Judicial Eletrônico que, mesmo aos trancos e barrancos, conseguiu modernizar o processo brasileiro, transformando-o em cem por cento virtual. Podemos trazer também como exemplo as Inteligências Artificiais dotadas nos Tribunais, como o Radar (TJMG), Poti, Clara e Jerimum (TJRN), Victor (STF) e outros nos TJPE, TJRO, TJDFT, TJSE e TCU (LIMA E NÓBREGA, 2020, p. 78-81).

É preciso, entretanto, mais do que isso para melhorar o andamento do Poder Judiciário, principalmente após a pandemia de COVID-19 – que impactará a Justiça brasileira, isso é certo. E esse trabalho visa a, exatamente, trabalhar a possibilidade de otimizar o Poder Judiciário através das startups, mais precisamente das legaltech e lawtech.

Para quem não sabe, rapidamente, startup é um modelo de negócio inovador, disruptivo e escalável, que trabalha em momento de incerteza e que visa à melhoria de tecnologia já existente, ou a criação de nova tecnologia para melhoria de determinado aspecto da vida das pessoas. Já as lawtech ou legaltech são as startups que criam produtos ou serviços para melhorar ou otimizar o setor jurídico.

Hoje, boa parte das lawtech e legaltech são voltadas para o profissional advogado. Temos inteligências artificiais para auxílio na criação de petições ou na análise preditiva de julgamentos, criação de big data com armazenamento de dados de doutrinas e jurisprudências de diversos Tribunais para consultas rápidas, softwares de administração de escritórios de advocacia, utilização de blockchain para armazenamento de informações, jurimetria, dentre outros.

Contudo, a maior parte das lawtech e legaltech são criadas pelo setor privado para auxílio do advogado no seu cotidiano forense. Tais inovações, por melhores que sejam, não impactam sobre os processos brasileiros. Devem, portanto, as startups serem criadas visando a influenciar nos processos judiciais, visando à melhoria do atendimento jurisdicional.

Ademais, se o setor advocatício cada vez mais está melhorando tecnologicamente para uma melhor otimização do trabalho, toda a cadeia do processo igualmente deve se inovar na tecnologia – Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública, dentre outros. Do contrário, teremos um setor da cadeia rico tecnologicamente e os outros, obsoletos – o que acaba gerando “nada com coisa nenhuma”, no jargão popular.

Do que adianta, a título de exemplo, tecnologias de gestão de escritório e Inteligência Artificial, que melhoram significativamente, o trabalho dos escritórios de advocacia, se estes impetram processos judiciais que agarram anos ou décadas no Poder Judiciário? Se a tecnologia não estiver otimizada em toda a cadeia processual, o impacto no processo per si será pequeno ou nulo.

Precisa-se, portanto, de startups para o setor jurídico especializadas em resolver problemas do Poder Judiciário. Não há como aqui – e seria presunção nossa– trazer todas as soluções, até porque muitas nem foram inventadas. Vale lembrar que a startup tem como foco uma tecnologia disruptiva, não dando para nós antevermos que tecnologia seria essa antes dela ser criada.

Porém, a utilização de tecnologias já existentes, por eventuais futuras startups incrementais – aquelas que melhoram tecnologia já existentes -, é possível prevermos. Traremos aqui algumas ideias dentro um universo de possibilidades:

Primeiramente, utilização mais acentuada dos serviços de Analyctis e jurimetria, visando à otimização de recursos na caça de jurisprudências e doutrinas semelhantes ao caso concreto. Com tal serviço, o magistrado e seus assistentes não precisam gastar tempo procurando se há jurisprudência consolidada dentro dos Tribunais superiores ou dentro do próprio Tribunal ou de outros para análise de tutelas antecipadas ou sentenças. Ademais, a jurimetria permite a utilização de estatísticas para saber como determinado Tribunal ou Câmara se comporta sobre cada caso. O magistrado, assim, pode utilizar dos serviços para manter a mesma linha que os Tribunais ad quem, permitindo assim uma maior uniformização da jurisprudência e a menor utilização de recursos para correção de sentenças.

Em segundo lugar, a disseminação da Inteligência Artificial para otimização do trabalho dos magistrados. Já explicamos que vários Tribunais já possuem a IA para tarefas cotidianas e básicas, normalmente para automatizar tarefas repetitivas. Porém, deve-se expandir a IA para todo o Poder Judiciário, incluindo os Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho, bem como a Justiça Militar, bem como a criação de outras tecnologias de IA que visam otimizar o trabalho dos magistrados e serventuários. Como exemplo, podemos trazer tecnologia de Inteligência Artificial que visa apontar casos de extinção liminar do feito (artigo 322 do CPC); apontar ao serventuário a ausência de informações, dados ou documentos no processo, ou também apontar e selecionar o que fala cada documento para auxiliar o magistrado na prolação da sentença; dentre outras coisas.

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Para tanto, há a necessidade dos Tribunais deterem uma tecnologia big data, para armazenamento de todos os dados. Sem tecnologia big data, com dados suficientes para nutrir a Inteligência Artificial, esta última de nada serve ou pode acabar piorando o trabalho do Poder Judiciário. Há, portanto, possibilidade de existência de startups visando fornecer Inteligência Artificial e Big Data para o Poder Judiciário.

O próprio Poder Judiciário pode, ainda, realizar parcerias com associações de startups e lawtech, como a ABSTARTUPS (Associação Brasileira de Startups) e a AB2L (Associação Brasileira de Legaltech e Lawtech) para crescimento e visualização das startups ali associadas – afinal, estas lawtech teriam acordo com o Poder Judiciário -, e para resolução dos problemas do Judiciário.

O Poder Judiciário pode, inclusive, ter suas próprias incubadoras para criação e fortalecimento das lawtech destinadas a resoluções de problemas da Justiça. Nos programas de incubação e nos contratos de investimento, haveriam cláusulas exigindo que determinada porcentagem da atividade da startup seria voltada para o desenvolvimento do Poder Judiciário, a título de exemplo. Só poderiam participar da incubação as startups que aceitassem tal determinação.

Dessa forma, o Poder Judiciário desenvolveria suas próprias lawtechs para o fortalecimento de seu sistema, visando otimizar seu trabalho e diminuir o congestionamento judicial existente.

Pode, ainda, o Poder Judiciário incentivar a criação de Câmaras Privadas de Mediação e Conciliação, até mesmo no formato on-line (as famosas ODR – Online Dispute Resolution), com cadastro no Tribunal de Justiça ou no Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores, na forma dos artigo 12-C e 12-D da Resolução 125/10, que exercerão o múnus público de realizar uma porcentagem mensal de conciliações e mediações gratuitas, para pessoas de baixa renda, em contrapartida ao auxílio público recebido.

Assim, estas Câmaras passariam a realizar sessões de conciliação e mediação extrajudicial, de forma onerosa, dentro da sua atividade privada, mas com o múnus público de resolver (ou tentar resolver) lides envolvendo uma das partes pobre no sentido da lei – sem condições de arcar com as custas da Câmara -, como contrapartida de ter recebido aporte público, através das parcerias ou incubadoras, durante sua formação e pré-consolidação.

Da mesma forma, pode-se modificar a Resolução 125/10 para permissão das Câmaras de Arbitragem também realizarem parcerias com o Poder Judiciário. Aqui, não se levaria processos judiciais em curso para a Arbitragem – até porque isso é incabível -, mas a parte autora, pobre no sentido legal, levaria a demanda para a Câmara Arbitral, que processaria e julgaria o caso com a natural imparcialidade do procedimento e proferiria a sentença. Uma vez proferida a sentença arbitral, a autora, necessitando, apenas executaria a sentença perante o Judiciário – mas toda a fase de conhecimento seria realizada perante a Arbitragem.

O procedimento seria gratuito – para a parte pobre – novamente como contrapartida ao incentivo público das incubadoras e parcerias do Poder Judiciário, da mesma forma que as Câmaras de Mediação e Conciliação citadas acima.

E, com as ODR, não haveria distanciamento físico entre a Câmara de Mediação ou de Arbitragem e a parte pobre, pois esta poderia encontrar uma câmara em qualquer lugar do Brasil. Esta, por sua vez, atenderia mais facilmente sua demanda mensal de procedimentos gratuitos que deveria suportar.

Com as ideias trazidas neste trabalho, o Poder Judiciário seria descongestionado, tendo menos processos para julgar e utilizando de tecnologias para acelerar seus julgados. Ganharia, assim, o Poder Judiciário e, por consequência, a população como um todo.


BIBLIOGRAFIA

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. 2019. Justiça em Números. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros>. Acesso em: 20 jul. 2020

DATALAWYER INSIGHTS. Termômetro COVID-19 na Justiça do Trabalho. 2020. Disponível em: <https://www.datalawyer.com.br/dados-covid-19-justica-trabalhista>. Acesso em: 22 jul. 2020

LIMA, A. P. M. C. de; NÓBREGA, J. T. Inteligência artificial: diretrizes, estratégias e verificação nos tribunais brasileiros. In: FALCÃO, C.; CARNEIRO, T. (coord). Direito Exponencial: O papel das novas tecnologias no jurídico do futuro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 67-88

PORTAL G1. Justiça de SP recebe 2.192 processos relacionados à Covid-19 durante pandemia. 29 de abril de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/29/justica-de-sp-recebe-2192-processos-relacionados-a-covid-19-durante-pandemia.ghtml>. Acesso em: 22 jul. 2020


Notas

[1] Fonte: <https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/>. Acesso em: 20. Jul. 2020

[2] Fonte: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/29/justica-de-sp-recebe-2192-processos-relacionados-a-covid-19-durante-pandemia.ghtml>. Fonte: 22 jul. 2020

[3] Fonte: <https://www.datalawyer.com.br/dados-covid-19-justica-trabalhista>. Acesso em: 22 jul. 2020

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Sobre o autor
Rodrigo Picon

Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICON, Rodrigo. O impacto das startups no Judiciário do pós-pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6273, 3 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85150. Acesso em: 2 nov. 2024.

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