4.LIMITES AO PODER DE EMISSÃO DE NORMAS PELAS AGÊNCIAS REGULADORAS
As agências reguladoras nesse novo contexto de regulação foram dotadas de poderes normativos e autonomia para que pudessem exercer suas funções de forma neutra e imparcial.
Mas então surge o debate sobre a legitimação dessas agências para emissão de normas, bem como sobre quais os limites do poder normatizador conferido a elas.
Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que define, estabelece também os limites da atuação administrativa da agência reguladora, conferindo-lhe competências que não podem ser extrapoladas, sob pena de nulidade e responsabilidade (o que nem sempre acontece).
O mesmo que o ato de polícia seja discricionário (dotado de liberdade para agir conforme necessidade e adequação do administrador), a lei impõe alguns limites quanto à competência, à forma, aos fins e ao objeto.
Os atos normativos, de natureza regulamentar, expedidos pelas agências reguladoras, devem respeitar o princípio da legalidade e o da reserva legal. Isso quer dizer que a agência tem poder de expedir regulamentos dentro dos limites que a lei de criação lhe impôs. Estes poderes visam COMPLEMENTAR e SUPLEMENTAR normas, visando a regulamentação técnica e especializada dos setores em que o Estado precisa intervir.
A doutrina, em especial Alexandre Mazza[16], aborda de forma clara e objetiva esses limites:
Exige-se como condição de válido desenvolvimento do dever normativo, absoluta pertinência temática entre as normas expedidas e o âmbito específico de tarefas e cometimentos conferidos à agência.
Assim, o poder regulamentar das agências reguladoras encontra limites, pois não podem modificar, suspender, suprimir ou revogar disposição lega. Tampouco, inovar nos limites de competência conferidos pela Lei de criação da agência, o que configura a nulidade pelo excesso e a responsabilização dentro das esferas que os danos possam vir a ser causados (tributário, administrativo, fiscal, penal, civil, trabalhista, etc).
5.POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL
O Poder Judiciário é o responsável pela composição da lide e sua solução, exercendo assim a função jurisdicional.
Sobre a possibilidade do controle jurisdicional das agências reguladoras, Lehfeld (2008, p. 358) assim escreve:
O controle judicial, consagrado constitucionalmente, aplica-se em sua plenitude à seara administrativa regulatória, pois tanto a administração pública central como a indireta devem obediência ao primado da Constituição e, consequentemente, aos princípios constitucionais previstos no art. 37, dentre eles, o da legalidade. Embora tenha sido atribuída ampla autonomia às agências reguladoras, a discricionariedade administrativa não pode ser confundida com arbitrariedade administrativa.
O poder normativo atribuído às agências reguladoras pode gerar dois tipos de atos, os normativos de condutas gerais e os atos concretos, por meio dos quais ocorrem as decisões de conflitos de interesse entre agentes econômicos submetidos a seu campo de atuação.
Ambos os atos têm sua natureza administrativa, sendo assim, também são passíveis de serem questionados judicialmente.
6.O SISTEMA DECOLAGEM CERTA (DCERTA) – breve histórico
A Instrução do Comando da Aeronáutica -- que estabelece “Procedimentos dos Operadores AIS Relacionados ao DCERTA” foi publicado com a finalidade de definir competências e estabelecer os procedimentos dos operadores AIS quanto à utilização do Sistema Decolagem Certa – DCERTA com base nos dados informados nos planos de voo e mensagens correlatas.
Com base na Resolução nº 268 da ANAC, o DECEA reeditou a Instrução do Comando da Aeronáutica, ICA 63-27 – Procedimentos dos Operadores AIS Relacionados ao DCERTA, com o objetivo de definir as competências e estabelecer os procedimentos dos operadores AIS quanto à utilização do DCERTA.
O trecho abaixo é transcrição do Prefácio da ICA 63-27:
O Sistema Decolagem Certa (DCERTA) é o sistema instituído pela ANAC com a finalidade de acompanhar e verificar a regularidade de aeródromos, certificados e licenças de aeronaves e tripulações técnicas, bem como confirmar a autenticidade da AVANAC emitida e consultar as matrículas das aeronaves estrangeiras cadastradas.
Como parte integrante do gerenciamento do risco à segurança operacional, previsto no Programa Brasileiro para a Segurança Operacional da Aviação Civil (PSO-BR), esse Sistema passou a operar em conjunto com o Sistema Automatizado de Sala AIS (SAIS), de forma experimental, em algumas Salas AIS, entre 2008 e 2009.
Após esse esforço, o DCERTA foi instituído oficialmente pela Resolução nº 151, de 7 de maio de 2010, da ANAC.
Em face da experiência adquirida e das necessidades operacionais, os sistemas foram aperfeiçoados. Concomitantemente, houve um planejamento entre o DECEA e a ANAC, com o intuito de estender a operacionalidade SAIS/DCERTA a todas as Salas AIS de Aeródromo[17] do SISCEAB, obedecendo a um cronograma específico.
Com a finalidade de aperfeiçoar as ações do piloto em comando ou do preposto da empresa aérea e do operador da Sala AIS, a referida Resolução foi alterada pela Resolução nº 165, de 08 de agosto de 2010.
Recentemente, foi editada a resolução nº 268, de 18 de março de 2013, que revogou as Resoluções nº 151 e 165. Essa nova Resolução aborda os casos de aceitação e de restrição da emissão da Declaração de Regularidade e, consequentemente, do recebimento ou não do plano de voo.
Ainda, segundo a Instrução, o operador AIS “não necessitará de conhecimento técnico em relação aos motivos da restrição do voo”, pois que “as regras estabelecidas constarão das funcionalidades do DCERTA”.
Assim, ficou estabelecido pelo DECEA que o Operador AIS passaria, desde então, a realizar funções típicas de fiscalização ao realizar a verificação relativa à regularidade dos pilotos e aeronaves. Esta fiscalização, baseada nas informações disponibilizadas pela ANAC, seria efetuada nos Órgãos que recebem e transmitem planos de voo e mensagens correlatas por meio do Sistema DCERTA.
7.DESVIO DE FUNÇÃO NO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
Há desvio de função toda vez que um agente público estiver formalmente investido em determinado cargo, mas, de fato, executar tarefas inerentes a cargo diverso. Quando ocorrer o desvio de função, o funcionário público faz jus a receber as diferenças de vencimentos correspondentes ao cargo por ele efetivamente desempenhado, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração às custas do empregado.
Essa é a posição pacífica tanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) como do Supremo Tribunal Federal (STF). Certamente, não remunerar o empregado público pelas atividades por ele efetivamente desenvolvidas – mais qualificadas e de maior complexidade do que aquelas do cargo por ele formalmente ocupado -, constitui desrespeito à dignidade do ser humano. Exigir do empregado público o cumprimento de determinadas tarefas e, depois, negar-lhe o pagamento dos vencimentos correspondentes àquele cargo, gera enriquecimento indevido da Administração às custas do empregado público, o que é incompatível com o respeito à dignidade da pessoa humana.
De ressaltar que, em observância ao princípio da “imprescindibilidade de concurso público para o preenchimento de cargos”, somado ao princípio da “primazia da realidade em detrimento da forma” (quando ocorrer discordância do contido no “contrato de trabalho” e o que ocorre na “realidade”, esta última deve prevalecer: vale mais o conteúdo do que a forma), o desvio de função não gera direito ao reenquadramento do funcionário, porém, uma vez comprovado o desvio de função, o empregado público faz jus às diferenças salariais dele decorrentes.
Segundo decisões recentes e reiteradas do STF, em perfeita sintonia com acórdãos do STJ proferidos na mesma matéria, o desvio de função ocorrido em data posterior à promulgação da Constituição de 1988, não pode dar ensejo ao reenquadramento, mas o empregado público tem direito ao recebimento, como indenização, da diferença remuneratória entre os vencimentos do cargo efetivo e os daquele exercido de fato. Há direito apenas aos valores referentes ao cargo enquanto exercido, ou seja, no momento em que o empregado público voltar a cumprir as funções inerentes ao cargo para o qual foi investido, deixa de fazer jus às diferenças relativas ao desvio de função.
8.RESPONSABILIDADE CIVIL DA INFRAERO
Para o Direito, o excesso de competência causa nulidade. Via de regra, os atos deveriam ser anulados pela própria ANAC, gerando efeitos futuros e desconsiderando-se os efeitos pretéritos como se jamais existissem. Ocorre que em caso de dano, os efeitos da nulidade devem retroagir para reparação, ou seja, para o cálculo da indenização.
A INFRAERO, por ser ente da Administração indireta da UNIÃO (empresa pública de direito privado, prestadora de serviços públicos), responde pelos danos que causar a seus usuários, na forma do Artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
§ 6º – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Em resumo, o Estado (Infraero) fica obrigado a reparar os danos em todas as suas espécies (moral, material – lucros cessantes e danos emergentes -, perda de oportunidade), caso a negativação de um usuário cause estes danos.
Doravante, o Operador AIS passa a ficar muito mais exposto, pois se em função de sua culpa (imperícia, imprudência ou negligência) este causar o dano e a Infraero vier a ser condenada a pagamento de verbas indenizatórias, pode a Administração Pública demandar contra o empregado e exercer seu “direito de regresso” (37, § 6º, in fine) e cobrar do empregado o montante pago ao usuário.
9.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o presente estudo, verifica-se que a ANAC possui poder de polícia administrativa, dotada do poder discricionário regulador para emitir normas que visem a complementar e suplementar as lacunas da lei, visando sempre ao interesse público, para intervir tecnicamente no mercado.
Ao inovar e criar atribuições atípicas a outros agentes públicos – sem que um Edital de Concurso Público vincule esta possibilidade – e, ao legislar sobre atividades e procedimentos relacionados com o Sistema de Controle do Espaço Aéreo (SISCEAB), estando legalmente impedida e sem que a Lei de criação da ANAC lhe conferisse estes poderes, a ANAC comete excesso de competência.
Em contrapartida, o DECEA também excede sua competência ao atribuir funções de fiscalização (poder de polícia administrativa, regulação de infraestrutura aeronáutica e safety), típicas dos Técnicos em Regulação da ANAC, sem que o CBA forneça essa autoridade ao Comando da Aeronáutica e sem que o Decreto criador do DECEA lhe delegue tais poderes.
Em ambos os casos, a edição de Resolução, ou ICA, é um expresso excesso de competência – vício de origem que causa nulidade.
Por conseguinte, sob a ótica do consagrado princípio trabalhista da Primazia da Realidade (em Detrimento da Forma), o que ocorre, de fato, é que os Operadores AIS cumprem o estabelecido pelas normas do DECEA, e são impelidos a fiscalizarem e verificarem a regularidade de aeronaves e pilotos, ou seja, agem em desvio de função, sem que haja equiparação salarial com os Fiscais da ANAC. Diante deste desvio de função, salvo entendimento judicial em contrário, são devidas verbas indenizatórias aos Operadores AIS para compatibilizar a diferença salarial ANAC x Infraero, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração Pública à custa do empregado.
Há de se destacar que o judiciário não intervém em ações discricionárias da Administração. Ocorre, contudo que os atos eivados de nulidade podem ser desconstituídos por meio judicial e os efeitos da nulidade podem retroagir para reparação de danos. A jurisprudência brasileira é farta em decisões neste sentido.
Em suma, o presente estudo, verifica que essas nulidades e estes excessos podem ensejar danos aos usuários e consequente responsabilidade da Infraero, assim como um oneroso passivo trabalhista para a Estatal.