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Ao defender Brilhante Ustra, o vice Mourão, na verdade, o desmentiu

10/10/2020 às 18:00
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Ao cultuarem a memória do ex-comandante do DOI-Codi, os nostálgicos da ditadura militar omitem que ele chegou a declarar em juízo que as práticas hediondas pelas quais foi processado foram apenas cumprimento de ordens.

Entrevistado dias atrás pela Deutsche Welle, o vice-presidente Hamilton Mourão pretendeu defender a memória do serial torturer Carlos Alberto Brilhante Ustra, afirmando que o comandante do pior centro de torturas dos anos de chumbo no Brasil (no qual mais de 2 mil cidadãos conheceram o inferno e contra o qual mais de 500 denúncias foram formalizadas) "era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados".

Com isto divergiu do próprio Brilhante Ustra, que em 2008 tentou, com as palavras abaixo, livrar-se de uma ação declaratória no sentido de que ele fosse considerado responsável pelo assassinato do jornalista Luiz Merlino nas dependências do DOI-Codi:

"O Exército brasileiro é uma pessoa jurídica, sendo que, pelos atos ilícitos, inclusive os atos causadores de dano moral, praticados por agentes de pessoas de direito público, respondem estas pessoas jurídicas e não o agente contra o qual têm elas direito regressivo. (...) Todas as vezes que um oficial do Exército brasileiro agir no exercício de suas funções, estará atraindo a responsabilidade do Estado".

Ou seja, em vez de tentar provar inocência, ele preferiu pleitear o arquivamento da ação alegando que o alvo correto de tal acusação deveria ser o Exército brasileiro!

Portanto, Mourão acaba de desmentir o finado torturador que Jair Bolsonaro não cansa de elogiar, pois Ustra, nos momentos de maior exasperação com o abandono a que considerava estar sendo relegado pelo Exército, repetiu a ladainha dos principais carrascos condenados no Julgamento de Nuremberg, seus congêneres: Eu só estava cumprindo ordens...

Mesmo no seu hostil depoimento à Comissão Nacional da Verdade em 2013, ele continuou deixando implícito seu descontentamento com o tratamento que recebeu do Exército, ao ressaltar: 

"...quem é que deve estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. É o Exército Brasileiro, que assumiu, por ordem do presidente da República, a ordem de combater o terrorismo e sob os quais eu cumpri todas as ordens...".

Mas, gato escaldado pela má repercussão de seu desabafo de 2008 junto aos círculos ultradireitistas que o apoiavam, Ustra acrescentou a fantasiosa ressalva de que tais ordens seriam "legais, nenhuma ordem ilegal". 

Foi na esteira  do primeiro episódio que lancei o melhor de meus muitos artigos sobre o Brilhante Ustra, recolocando a questão nos trilhos corretos: por mais que ele merecesse pessoalmente o repúdio dos civilizados, nunca passou de um elo a mais de uma cadeia de comando no topo da qual  estavam os próprios generais ditadores. 

Não teria uma palavra sequer a alterar hoje. Leiam-no e avaliem:

OS MOTIVOS DO TORTURADOR

Embora seja impossível simpatizar com os motivos de um Brilhante Ustra ou, sequer, aceitá-los, eu compreendo muito bem o que o leva a sentir-se traído e injustiçado.

Ao comandar o DOI-Codi, ele fez exatamente o que dele esperava o Exército: combateu o inimigo por todos os meios a seu dispor, sem importar-se com os direitos humanos, as convenções de Genebra e outras perfurmarias. Saiu-se vitorioso e foi aclamado por seus pares.

Veio a redemocratização e ele passou a ser estigmatizado como um monstro... sozinho! 

Levou merecidamente a culpa por tudo aquilo que seus comandados fizeram. Mas, ninguém se lembrou de cobrar de seus superiores a responsabilidade maior que tiveram nas atrocidades perpetradas pelo DOI-Codi durante os anos de chumbo. As conveniências políticas falaram mais alto do que o senso de justiça.

Se fosse um homem de princípios, Brilhante Ustra se rebelaria contra aqueles que lhe ordenaram que cometesse crimes contra a humanidade e depois se puseram a salvo, não carregando juntos com ele o fardo do opróbrio. 

Mas, de quem fez o que ele fez durante 1970/1974, só poderia esperar-se o caminho tortuoso que preferiu trilhar: tentar convencer o Brasil inteiro de que as vítimas é que eram os algozes e ele, um pobre coitado sem culpa nenhuma no cartório.

Seus dois livros repulsivos, entretanto, atraíram contra si a ira dos justos. Porque são montados a partir das informações arrancadas dos prisioneiros mediante as torturas mais cruéis, seja no próprio DOI-Codi, seja nos aparelhos clandestinos da repressão, de onde não se saia vivo. Era muita impudência utilizar o espólio de sua ignomínia para tentar justificar-se. 

Então, eis Brilhante Ustra, mais do que nunca, sendo visto pelos brasileiros como o torturador-símbolo da ditadura militar.

Mas, não serei tão injusto com ele como ele sempre foi com os outros: afirmo e assino embaixo que seus superiores tiveram culpa ainda maior pelas práticas desumanas e desonrosas do DOI-Codi, nessa que foi uma das páginas mais vergonhosas da História do Brasil(CL)

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Sobre o autor
Celso Lungaretti

Jornalista, blogueiro, escritor e veterano da resistência à ditadura militar. Ingressei na luta contra a ditadura militar ainda secundarista, aos 17 anos. Passei um ano na clandestinidade, como dirigente estadual da VPR e VAR-Palmares. Preso, sofri uma lesão permanente que me prejudicaria tanto no convívio social quanto nos desempenhos profissionais. Mesmo assim, fiz longa carreira jornalística. Hoje sou escritor, articulista e blogueiro, atuando frequentemente na defesa dos direitos humanos. Observador atento da cena política brasileira há mais de meio século, além de haver sido, aos 18 anos, o primeiro e único comandante de Inteligência de uma organização que travava a luta armada, tento dar aos leigos no assunto um quadro realista das perspectivas atuais, para dissipar um pouco das paranoias e alarmismos que tantos pesadelos lhes causam .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUNGARETTI, Celso. Ao defender Brilhante Ustra, o vice Mourão, na verdade, o desmentiu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6310, 10 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85945. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Na década passada, quando tantos ex-torturados e familiares dos mortos e desaparecidos políticos clamavam pela punição dos praticantes das torturas, eu fui um dos poucos a insistir na responsabilização dos mandantes, pois, mesmo tendo sido quase destruído nos porões da ditadura e deles saído com uma lesão permanente, jamais me escapou que pitbulls só mordem quando alguém lhes retira a focinheira (como fizeram os signatários do AI-5).

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