Entrevistado dias atrás pela Deutsche Welle, o vice-presidente Hamilton Mourão pretendeu defender a memória do serial torturer Carlos Alberto Brilhante Ustra, afirmando que o comandante do pior centro de torturas dos anos de chumbo no Brasil (no qual mais de 2 mil cidadãos conheceram o inferno e contra o qual mais de 500 denúncias foram formalizadas) "era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados".
Com isto divergiu do próprio Brilhante Ustra, que em 2008 tentou, com as palavras abaixo, livrar-se de uma ação declaratória no sentido de que ele fosse considerado responsável pelo assassinato do jornalista Luiz Merlino nas dependências do DOI-Codi:
"O Exército brasileiro é uma pessoa jurídica, sendo que, pelos atos ilícitos, inclusive os atos causadores de dano moral, praticados por agentes de pessoas de direito público, respondem estas pessoas jurídicas e não o agente contra o qual têm elas direito regressivo. (...) Todas as vezes que um oficial do Exército brasileiro agir no exercício de suas funções, estará atraindo a responsabilidade do Estado".
Ou seja, em vez de tentar provar inocência, ele preferiu pleitear o arquivamento da ação alegando que o alvo correto de tal acusação deveria ser o Exército brasileiro!
Portanto, Mourão acaba de desmentir o finado torturador que Jair Bolsonaro não cansa de elogiar, pois Ustra, nos momentos de maior exasperação com o abandono a que considerava estar sendo relegado pelo Exército, repetiu a ladainha dos principais carrascos condenados no Julgamento de Nuremberg, seus congêneres: Eu só estava cumprindo ordens...
Mesmo no seu hostil depoimento à Comissão Nacional da Verdade em 2013, ele continuou deixando implícito seu descontentamento com o tratamento que recebeu do Exército, ao ressaltar:
"...quem é que deve estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. É o Exército Brasileiro, que assumiu, por ordem do presidente da República, a ordem de combater o terrorismo e sob os quais eu cumpri todas as ordens...".
Mas, gato escaldado pela má repercussão de seu desabafo de 2008 junto aos círculos ultradireitistas que o apoiavam, Ustra acrescentou a fantasiosa ressalva de que tais ordens seriam "legais, nenhuma ordem ilegal".
Foi na esteira do primeiro episódio que lancei o melhor de meus muitos artigos sobre o Brilhante Ustra, recolocando a questão nos trilhos corretos: por mais que ele merecesse pessoalmente o repúdio dos civilizados, nunca passou de um elo a mais de uma cadeia de comando no topo da qual estavam os próprios generais ditadores.
Não teria uma palavra sequer a alterar hoje. Leiam-no e avaliem:
OS MOTIVOS DO TORTURADOR
Embora seja impossível simpatizar com os motivos de um Brilhante Ustra ou, sequer, aceitá-los, eu compreendo muito bem o que o leva a sentir-se traído e injustiçado.
Ao comandar o DOI-Codi, ele fez exatamente o que dele esperava o Exército: combateu o inimigo por todos os meios a seu dispor, sem importar-se com os direitos humanos, as convenções de Genebra e outras perfurmarias. Saiu-se vitorioso e foi aclamado por seus pares.
Veio a redemocratização e ele passou a ser estigmatizado como um monstro... sozinho!
Levou merecidamente a culpa por tudo aquilo que seus comandados fizeram. Mas, ninguém se lembrou de cobrar de seus superiores a responsabilidade maior que tiveram nas atrocidades perpetradas pelo DOI-Codi durante os anos de chumbo. As conveniências políticas falaram mais alto do que o senso de justiça.
Se fosse um homem de princípios, Brilhante Ustra se rebelaria contra aqueles que lhe ordenaram que cometesse crimes contra a humanidade e depois se puseram a salvo, não carregando juntos com ele o fardo do opróbrio.
Mas, de quem fez o que ele fez durante 1970/1974, só poderia esperar-se o caminho tortuoso que preferiu trilhar: tentar convencer o Brasil inteiro de que as vítimas é que eram os algozes e ele, um pobre coitado sem culpa nenhuma no cartório.
Seus dois livros repulsivos, entretanto, atraíram contra si a ira dos justos. Porque são montados a partir das informações arrancadas dos prisioneiros mediante as torturas mais cruéis, seja no próprio DOI-Codi, seja nos aparelhos clandestinos da repressão, de onde não se saia vivo. Era muita impudência utilizar o espólio de sua ignomínia para tentar justificar-se.
Então, eis Brilhante Ustra, mais do que nunca, sendo visto pelos brasileiros como o torturador-símbolo da ditadura militar.
Mas, não serei tão injusto com ele como ele sempre foi com os outros: afirmo e assino embaixo que seus superiores tiveram culpa ainda maior pelas práticas desumanas e desonrosas do DOI-Codi, nessa que foi uma das páginas mais vergonhosas da História do Brasil. (CL)