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Mais um projeto que se opõe à democracia

10/11/2020 às 11:40
Leia nesta página:

A proposta do governo de controlar ONGs e barrar suas atividades em nome de “interesses nacionais” é inconstitucional.

I – ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

Organização social (OS) é um tipo de associação privada, com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de relevante interesse público, como, por exemplo, a saúde pública.

O Poder Executivo pode, de acordo com o comando da Lei 9637, de 15 de maio de 1998, qualificar as entidades privadas, que exerçam aquelas atividades, como organizações sociais, desde que: 1. Comprovem o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre os requisitos previstos no artigo 2º, entre os quais, a natureza social de seus objetivos, finalidade não lucrativa, e obrigando-se ela a investir o excedente financeiro no desenvolvimento das próprias atividades; previsão obrigatória de um conselho de administração e uma diretoria, como órgãos de deliberação superior e direção. O conselho deverá, segundo os estatutos, ter composição e atribuições normativas e de controle básicas, previstos nesse diploma legal. O Poder Público e a comunidade deverão estar representados nessas entidades, cujos membros serão de notória capacidade profissional e idoneidade moral.  2. Atendendo à conveniência e oportunidade, o Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade, que corresponde ao seu objeto social, e o Ministro de Estado da Administração  Federal  e Reforma do Estado aprovem sua qualificação como organização social. 

Como acentuou Belarmino José da Silva Neto (Organizações Sociais – Ius Navigandi):

“Assim, criou-se a oportunidade para que pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, em parceria com o Estado, prestem serviços públicos à sociedade num regime distinto da concessão ou permissão, porquanto o elo que vincula as organizações sociais e o Poder Público é o contrato de gestão, avença pela qual se viabiliza a administração por objetivos, onde prepondera os resultados alcançados ante os típicos controles formais que se verificam no regime jurídico de direito público.”

Sua natureza jurídica de direito privado está expressa na própria Lei 9.637/98 quando, em seu art. 1º, está disciplinado que o Poder Executivo poderá qualificar pessoas jurídicas de direito privado como organizações sociais, desde que desafetadas de intuito lucrativo. Isto, pois, sua essência jurídica antecede ao próprio título que lhe é atribuído.

No âmbito do direito administrativo, as organizações sociais podem ser classificadas como entes de cooperação, uma vez que cooperam com o Estado para a consecução de seus fins. Configuram-se como pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, que prestam serviços públicos não exclusivos do Estado, existindo para suprir as necessidades deste em determinadas áreas.

A Lei nº 9.637/98 determina em seu artigo 2º:

Art. 2º São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social:

I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:

a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação;

b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;

c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;

e) composição e atribuições da diretoria;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão;

g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto;

h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade;

i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados;

II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado.

Por sua vez, tem-se do artigo 16 daquele diploma normativo:

Art. 16. O Poder Executivo poderá proceder à desqualificação da entidade como organização social, quando constatado o descumprimento das disposições contidas no contrato de gestão.

§ 1º A desqualificação será precedida de processo administrativo, assegurado o direito de ampla defesa, respondendo os dirigentes da organização social, individual e solidariamente, pelos danos ou prejuízos decorrentes de sua ação ou omissão.

§ 2º A desqualificação importará reversão dos bens permitidos e dos valores entregues à utilização da organização social, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

A Organização Social, como posto, é um instrumento de interlocução da sociedade com o Poder Público.

Como tal não se concebe uma Organização Social dentro de um Estado Autocrático.

Durante a ditadura militar (1964 a 1985), a liberdade de expressão e de organização era quase inexistente. Partidos políticos, sindicatos, agremiações estudantis e outras organizações representativas da sociedade foram extintas ou sofreram intervenções do governo.

Nesse contexto, as organizações sociais têm importante papel dialógico.

Na democracia, há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo, rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.

São as organizações sociais instrumentos do Estado de Direito.


II – UM PROJETO INCONSTITUCIONAL

Vem a notícia do Estadão, em seu site, no dia 9 de novembro de 2020, de que “o governo Jair Bolsonaro planeja formas de estabelecer controle sobre as organizações não governamentais (ONGs) que atuam na Amazônia. Por meio de um marco regulatório, a proposta é ter o “controle” de 100% das entidades na região até 2022, e inclui limitar entidades que, na avaliação do Executivo, violam “interesses nacionais”. O plano consta de documentos, obtidos pelo Estadão, elaborados pelo Conselho Nacional da Amazônia Legal.”

No seu plano, o governo prevê “ações setoriais”, como “criar marco regulatório para atuação das ONGs”. Não há uma proposta pronta de nova legislação. A missão de preparar a minuta está nas mãos dos ministérios da Justiça, do Meio Ambiente e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

A proposta do governo de controlar ONGs e barrar suas atividades em nome de “interesses nacionais” é inconstitucional.

Tal concepção que surge é fruto de um conceito de soberania nacional voltado a um modelo de segurança nacional próprio de um Estado Ditatorial, tal como ocorreu naquele ciclo da história brasileira.

Esse projeto estático de soberania desconhece a ação das organizações sociais como projetos de ação política, algo inerente ao fundamental direito à liberdade de ideias, um dos fundamentos da Democracia.

Volta-se às ideias de Golbery do Couto e Silva, para quem a segurança nacional significa a destruição de possíveis ameaças à rotina da sociedade, ao funcionamento do Estado e à rotina dos governantes.

Para garantir a segurança nacional, o Estado precisava planejá-la, colocando em prática uma política de segurança nacional, demandando que objetivos e metas fossem claramente definidos. Golbery separava-os em dois grupos. O primeiro reunia os objetivos nacionais permanentes (ONP), de caráter eminentemente político, abrangendo interesses e aspirações constantes do país e sendo, portanto, essenciais para a sobrevivência da nação sem ameaças ao seu fracionamento. Esses objetivos estavam amparados em pelo menos três condições básicas, segundo Golbery — autodeterminação, integração crescente e prosperidade. Tratava-se, pois, de planejamento capaz de ser empreendido apenas pela alta cúpula da administração pública e de interesse fundamental para o chefe de Estado.

Octávio Pena Pieranti, Fábio dos Santos Cardoso e Luiz Henrique Rodrigues da Silva (Em Reflexões acerca da política de segurança nacional) expuseram que “a política de segurança nacional dependia de um entendimento pleno do que Golbery do Couto e Silva chamou de poder nacional e potencial da nação, funções intimamente interligadas. Somente se o Estado fosse capaz de trabalhar de forma apropriada, o potencial do país em setores econômicos diversos, o poder nacional — entendido, aí, como resultado dos setores político, bélico e econômico —se fortaleceria. Para isso, fazia-se necessário reconhecer o Estado como planejador da economia nacional e dos investimentos que dela decorrem.”

Assim, nessa concepção, cabe ao Estado, de forma centralizada, normatizar, executar tarefas inerentes aos interesses da sociedade, nas quais ela seja sua parceira nessas concepções. É um projeto, repito, centralizador em que a sociedade dela não participava, mas seria sua beneficiária.


III – OS CHAMADOS DIREITOS COLETIVOS E DIFUSOS

A organização social expressa projetos políticos que devem ser respeitados na ampla concepção de uma democracia discursiva, onde o palpitar de ideias é a oxigenação da democracia.

Por outro lado, não cabe ao Estado se apropriar da expressão interesse difuso, que é próprio daquele que é tutelado pela Constituição.

O direito a um meio ambiente sadio é um interesse difuso.

Sabe-se que, a partir de 1974, com os estudos de Mauro Cappelletti (Formazioni sociali e interessi di gruppo davanti alla justizia civile, Rivista di diritto processuale, v. 30/367), falou-se numa categoria de direitos coletivos, que são aqueles referentes a toda uma categoria de pessoas, interesses metaindividuais, atingindo grupos de pessoas que têm algo em comum. Para ele, a sociedade atual é uma sociedade de massa, onde as principais violações da ordem jurídica seriam violações de interesses de massa tutelados pelo direito, perdendo a significação a dicotomia público e privado, pois os interesses típicos dessa sociedade seriam os interesses difusos, para ele, sendo que isoladamente o cidadão não tem condições de obter a tutela com relação a certos interesses. Chegou a dizer que o Ministério Público, e mesmos os agentes estatais, não poderiam atender à necessidade de tutela de interesses difusos, isso pelo apego conservador da Instituição a formas tradicionais de processo, como narra Ronaldo Cunha Campos (Ação Civil Pública, Rio de Janeiro, 1989, Aide Editora, pág. 61).

A esse respeito, disse Francesco Carnelutti (Instituciones del nuevo Proceso Civil Italiano, tradução Jaime Guasp, Bosch, Barcelona, 1942, pág. 41) que pode ocorrer que a pretensão ou a resistência afetem, ao invés de um único conflito de interesses, a uma série indeterminada de conflitos semelhantes. Fala-se numa lide coletiva ou lide de categoria, que se distingue, de muito, de um conflito singular.

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Propriamente falaremos no que Campos Batalha (Direito Processual das coletividades e dos grupos, São Paulo, LRT, 1991, pág. 38 ) chamava de interesses gerais, que são os que dizem respeito a todos os que, cidadãos ou não, residentes ou não residentes em caráter definitivo, se acham adstritos a uma realidade política, a um Estado. Todos eles têm interesses de caráter geral, político, social e econômico.

É conhecida a classificação de interesses trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, que aqui se traz:

a) Difusos: são aqueles que envolvem interesses de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático muito preciso. São interesses ou direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato(artigo 81, I, do Código de Defesa do Consumidor). É o caso daqueles constituídos na defesa do meio ambiente, da defesa do patrimônio público, do patrimônio histórico e artístico nacional;

b) Coletivos: que abrangem uma categoria determinada, ou pelo menos determinável de pessoas. Em sentido lato, envolvem não só os interesses transindividuais indivisíveis(Código de Defesa do Consumidor, artigo 81, II) e ainda os interesses individuais homogêneos(artigo 82, III)., como é o caso dos direitos do consumidor, numa sociedade de massa.

Em feliz síntese, Rodolfo de Camargo Mancuso (Interesses Difusos – Conceito e legitimação para agir, São Paulo, Ed. RT, 7ª edição, pág. 93) ensinou que os chamados interesses difusos apresentam as seguintes notas básicas: indeterminação de sujeitos; indivisibilidade do objeto; intensa conflituosidade17; duração efêmera, contingencial.

Em verdade, a característica primacial dos interesses difusos é a sua não coincidência com o interesse de uma determinada pessoa. Ela abrange toda uma categoria de indivíduos unificados por possuírem um denominador fático qualquer em comum.

Por sua vez, os interesses difusos são indivisíveis, no sentido de serem insuscetíveis de partição em quotas atribuíveis a pessoa ou grupos preestabelecidos. Há, como concluiu José Carlos Barbosa Moreira (A legitimação para a defesa dos interesses difusos no direito brasileiro, RF n. 276, pág. 1) uma espécie de comunhão, tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica, por força, a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui lesão da inteira coletividade.

Com relação aos interesses coletivos, strictu sensu, dir-se-á que são transindividuais, superando a dimensão individual, traduzindo interesses comuns vinculados a um grupo, já que visam à satisfação, que é da coletividade como um todo, dentro de uma relação jurídica de base, que dá consistência a um agrupamento. É o caso da ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil em defesa de seus membros, com relação às prerrogativas institucionais da advocacia; dos portadores de talidomida, através de associação para isso conferida, das associações de vítimas de acidente aéreo, etc..

Aliás, para Vigoritti (Interessi collettivi e processo. Milano, Giuffrè, 1979, pág. 59 e 60), o detalhe relevante vem na organização, uma vez que o interesse coletivo se caracteriza na coordenação da vontade e da atividade dos titulares dos interesses individuais, que, organizados, resultam no coletivo.


IV – CONCLUSÕES

Digo, assim, que esses interesses de massa não podem ser apropriados pelo Estado, traduzindo uma visão de soberania nacional, que é própria do Estado de exceção.

Vivemos sob o império de uma Constituição Democrática, Cidadã, que é refratária a essa forma de intervenção estatal que ora foi noticiada pelo Estadão.

Lembro a bela síntese de Lincoln ao expressar-se sobre democracia: “Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”.

O interesse coletivo, expresso na formação de organizações sócias, é esse palpitar de democracia.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Mais um projeto que se opõe à democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6341, 10 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86608. Acesso em: 19 abr. 2024.

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