RESUMO: O presente trabalho busca analisar a causa principal do fenômeno da corrupção no Brasil. Tem-se como problema de pesquisa a influência que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal exerce no estímulo à corrupção. Como hipótese, elege-se que a inviabilidade da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, por sinalizar com a forte perspectiva de impunidade para o corrupto, constitui o principal fator de estímulo à corrupção no Brasil. Por meio de uma metodologia analítica aplicada ao julgamento do Habeas Corpus nº 126.292/SP, chega-se à conclusão de que a corrupção tende a ser estimulada à medida que o sistema estatal sinaliza para o seu agente que as chances de punição para o seu ato são remotas.
Palavras-chave: Jurisprudência. Corrupção. Impunidade. Estímulo.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Tentativas de explicação do fenômeno da corrupção no Brasil; 1.1 A corrupção explicada a partir do patrimonialismo; 1.1.1 Críticas à explicação da corrupção a partir do patrimonialismo; 1.2 A corrupção vista a partir do funcionalismo e da cultura política; 1.3 A corrupção sob a ótica econômica; 2 O julgamento do Habeas Corpus nº 84.078/MG e a alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal relativa ao início da execução da pena; 3 O julgamento do Habeas Corpus nº 126.292/SP e uma nova alteração de rumo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; 3.1 Os fundamentos do voto do relator do Habeas Corpus nº 126.292/SP; 3.2 Os fundamentos dos votos dos ministros que acompanharam as conclusões do relator do Habeas Corpus nº 126.292/SP; 3.3 Fundamentos dos votos dos ministros que divergiram do relator no julgamento do Habeas Corpus nº 126.292/SP; 4 Presunção de inocência, garantismo excessivo e estímulo à corrupção; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O combate à corrupção no Brasil vem sendo colocado, atualmente, como tema de primeira grandeza. Isso porque a sociedade, gradativamente, vem se apercebendo do potencial lesivo que a apropriação privada dos recursos públicos possui para a coletividade. No entanto, o combate à corrupção passa, necessariamente, pela compreensão do fenômeno, a partir das suas causas e elementos de estímulo.
Explicada tradicionalmente no Brasil com base patrimonialismo, segundo o qual a causa da corrupção se encontra na formação cultural do país - que confere pouca reprovação a quem se apropria de parcelas do Estado em benefício próprio, num sistema de compadrio e troca de favores - o estudo da corrupção evoluiu no Brasil, chegando ao estágio no qual as suas causas são buscadas na teoria econômica, segundo a qual o agente tende a ser estimulado a agir de forma desonesta quando as possibilidades de ganhos com o seu ato superam as chances de vir a ser punido.
O presente trabalho possui como problema de pesquisa o papel que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal exerce no estímulo da corrupção no Brasil. Como hipótese, indicamos que uma jurisprudência que restringe a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória se torna o principal fator de estímulo para a corrupção, pela sinalização aos agentes públicos potencialmente desonestos de que, mesmo sendo os seus atos venham descobertos, terão possibilidades elevadas de não serem punidos.
Por meio de uma metodologia analítica aplicada ao julgamento do Habeas Corpus nº 126.292/SP, relatado pelo Ministro Teori Zavascki, buscamos testar a nossa hipótese como resposta para o problema proposto, chegando às conclusões que se encontram ao final deste ensaio.
1 TENTATIVAS DE EXPLICAÇÃO DO FENÔMENO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
A corrupção no Brasil é um problema bastante antigo. Para ser mais exato, seria possível dizer que os primeiros corrompidos e corruptores foram, respectivamente, os indígenas e o colonizador português, quando trocaram produtos existentes no Brasil “recém descoberto” por bens de valor insignificante na Europa, mas que eram novidades para os indígenas.
Sendo a corrupção um fenômeno nefasto que vem acompanhando o Brasil ao longo de sua história, a tentativa de entender as suas razões também é algo que há muito se faz presente nos ambientes acadêmicos, onde diversas teorias vêm sendo construídas na tentativa de explicá-la.
1.1 A CORRUPÇÃO EXPLICADA A PARTIR DO PATRIMONIALISMO
A primeira corrente que ganhou notoriedade no Brasil na tentativa de explicar os motivos pelos quais ocorre a corrupção dos agentes públicos foi a que ficou conhecida como patrimonialista[1].
De acordo com ela, o que deveria ser encarado como patrimônio de toda a coletividade, é apropriado pela elite local, que passa a usufruir dos bens públicos como se eles constituíssem uma extensão do seu patrimônio individual.
Para os defensores da explicação patrimonialista, a utilização privada dos bens pertencentes à coletividade não é vista como algo reprovável por aqueles que se consideram proprietário de uma parcela do próprio Estado, agregando esse modo de pensar à própria constituição cultural do país, evitando a insurgência da população contra os atos de corrupção.
O enfoque primordial do patrimonialismo ao buscar uma explicação para a corrupção no Brasil é a dificuldade que os responsáveis pela gestão estatal têm em separar o patrimônio público do privado.
Assim, a consciência de reprovabilidade da conduta de apropriação de um bem público não consegue se firmar nem mesmo entre os responsáveis pelo combate à corrupção.
A dificuldade de separação entre o público e o privado por agentes estatais, que é o marco explicativo da tese patrimonialista para o fenômeno da corrupção, criando uma situação socialmente aceita, acaba gerando perplexidade quando os agentes corruptos começam a ser alcançados pela malha punitiva do Estado.
1.1.1 Críticas à explicação da corrupção a partir do patrimonialismo
A explicação do fenômeno da corrupção no Brasil, a partir da tese patrimonialista, é bastante criticada por dificultar ou mesmo inviabilizar o seu combate, uma vez que, ao ser considerada como integrante da formação cultural do povo brasileiro, cria-se um cenário de paralisia diante dela, pois a alteração cultural é bastante difícil (AVRITZAR; FILGUEIRAS, 2011, p. 8-9).
Talvez pela disseminação da corrente patrimonialista, a corrupção no Brasil nunca foi objeto de um combate sério, letargia esta associada a uma elevada desigualdade social, que se constata pela concentração do maior bloco das riquezas nacionais nas mãos de poucas pessoas, em detrimento da maioria da população, que enfrenta dificuldades até mesmo para o suprimento das suas necessidades básicas.
É bem verdade que já houve algumas tentativas de enfrentamento da corrupção no Brasil. Relembre-se, por exemplo, que a estruturação de uma burocracia profissional por Getúlio Vargas durante o Estado Novo, que se constituiu numa tentativa de extirpar o patrimonialismo do Estado, que não foi adiante porque foi objeto de boicote da própria burocracia criada, cujos postos foram ocupados por agentes cujos interesses privados continuaram sendo confundidos com o público (OLIVEIRA JR.; COSTA; MENDES, 2016, p. 120).
1.2 A CORRUPÇÃO VISTA A PARTIR DO FUNCIONALISMO E DA CULTURA POLÍTICA
As lacunas existentes na explicação patrimonialista, bem como a letargia que ela enseja no combate a corrupção, motivaram a busca de outras teorias capazes de explicar as suas causas, ganhando espaço concepções como o funcionalismo; a análise da corrupção sob o viés da cultura política e a análise sob a ótica econômica (CORDEIRO, 2017, p. 72).
A concepção funcionalista, que surge na década de 1950, centra-se na ideia de que a corrupção é a causa primordial pela qual as sociedades consideradas subdesenvolvidas não conseguem galgar “um determinado patamar de desenvolvimento econômico” e considera que as dificuldades de institucionalização da política cria um ambiente adequado para a disseminação da corrupção, que passa a desempenhar um papel importante na modernização e fomento do próprio desenvolvimento econômico do país através das benesses indevidas que são pagas aos agentes do Estado para agilizar processos e medidas capazes de modernizar o Estado (CORDEIRO, 2017, p. 72-73).
A explicação funcionalista para o fenômeno da corrupção é bastante problemática, em especial porque a considera como algo inerente ao próprio funcionamento das sociedades consideradas em desenvolvimento, sendo encarada até mesmo como essencial ao avanço na modernização de tais sociedades, o que tornaria a corrupção nefasta apenas quando praticada em sociedades consideradas “maduras” ou desenvolvidas.
Ao lado do funcionalismo, desenvolveu-se uma explicação da corrupção sob o viés da cultura política. De acordo com ela, “a corrupção é estudada a partir das interações entre os atores sociais que definem a ocorrência ou não da corrupção. São considerados por este tipo de análise, para além do sistema institucional e legal, o próprio sistema de valores da sociedade” (CORDEIRO, 2017, p. 73-74), o que acaba por aproximá-la bastante da tese patrimonialista.
1.3 A CORRUPÇÃO SOB A ÓTICA ECONÔMICA
Desde a década de 1980 vem se consolidando a explicação do fenômeno da corrupção a partir de uma ótica econômica. A corrupção passa, então, a ser “explicada por uma teoria da ação informada pelo cálculo que agentes racionais fazem dos custos e benefícios de burlar uma regra institucional do sistema político, tendo em vista uma natural busca por vantagens” (FILGUEIRAS,2008, p. 396).
A explicação da corrupção a partir de um paradigma econômico pode ser complementada com a normal propensão do ser humano em buscar, no relacionamento social, honras e vantagens e não meramente o convívio social em si, tal como já lembrava Hobbes.
O cenário ideal para que o indivíduo se torne corrupto é aquele no qual se associa a sua busca de vantagens e reconhecimento social a um sistema punitivo frágil ou inexistente. Pode-se dizer que “(...) a corrupção tem seu nascimento no indivíduo que deixa de seguir os padrões éticos da sociedade, sendo levado, pelo sentimento de favorecimento pessoal, reconhecimento e poder, a cometer atos de corrupção ” (ALVES, 2016, on line).
Numa cultura que prima pelo materialismo como a brasileira, na qual o reconhecimento e a aceitação advêm do patrimônio material que o indivíduo ostenta no meio social, a busca por vantagens econômicas se torna um imperativo, o que acaba tornando secundária a licitude ou ilicitude na obtenção de bens materiais.
A agregação do desejo de aceitação dentro de uma sociedade materialista, quando associado a um sistema punitivo frágil, produz as condições ideais para a transgressão das normas que buscam proteger a probidade no trato da coisa pública.
Aplicando o cálculo no qual as vantagens e desvantagens da ação são sopesadas, conforme se sustenta numa explicação da corrupção a partir de uma ótica econômica, o indivíduo tende a raciocinar nos seguintes termos: a aceitação e o reconhecimento social é algo desejável na cultura brasileira. O sistema punitivo é bastante frágil no que se refere ao alcance daqueles que cometem atos de apropriação dos bens que pertencem à coletividade.
Dessa forma, ao se associar as vantagens advindas de um acúmulo patrimonial acentuado - ainda que produzido por atos de desonestidade no trato da coisa pública - com a rara possibilidade de punição pelos atos cometidos, o cálculo do agente tende a se inclinar para a prática da corrupção.
Pode-se dizer, portanto, que um cenário de instituições frágeis no combate à corrupção associado a uma cultura que valoriza a ostentação de posses materiais estimula, de forma individualmente calculada, a geração de administradores desonestos, (OLIVEIRA JR.; COSTA; MENDES, 2016, p. 120-121)[2].
Com isso, entendemos que, não obstante a tese patrimonialista, ao buscar na formação cultural brasileira - na qual a separação entre o público e o privado sempre foi vista de forma um tanto frágil - tenha seus méritos na tentativa de explicação do fenômeno da corrupção no país[3], entendemos que ela é incrementada pelo cálculo que claramente favorece o agir com desonestidade no trato da coisa pública, uma vez que os potenciais malefícios sinalizados pelas instituições não se mostram capazes de desestimular a atuação do corrupto, contribuindo para isso, de forma acentuada, a jurisprudência que se consolidou no Supremo Tribunal Federal a partir de 2009.
2 O JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS Nº 84.078/MG E A ALTERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RELATIVA AO INÍCIO DA EXECUÇÃO DA PENA
Da promulgação da Constituição Federal de 1988 até 2009, o Supremo Tribunal Federal manteve hígida a interpretação há muito consolidada na corte de que a interposição de recursos extraordinários não inviabiliza o início da execução da pena privativa de liberdade fixada na sentença.
Isso porque os recursos extraordinários não são possuem efeito suspensivo e não reavaliam o acervo probatório, não se prestando a discutir a justiça ou a injustiça da decisão, servindo, somente, para a unificação interpretativa de teses jurídicas.
No entanto, numa inflexão da jurisprudência da corte em 2009, quando do julgamento do Habeas Corpus Nº 84.078/MG[4], relatado pelo ministro Eros Grau, passou-se a adotar o entendimento de que o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, é incompatível com a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Com isso, prevaleceu a visão de que o texto constitucional de 1988 adotou um sistema de superação da presunção de não-culpabilidade - construída a partir das ideias iluministas e consagrada em diversos documentos internacionais de direitos humanos - apenas com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Incorporou-se, por exemplo, um tratamento mais rigoroso do que o indicado pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que encampou um sistema que admite a superação da presunção de não-culpabilidade pelo duplo grau de jurisdição, viabilizando a execução da pena a partir da confirmação da sentença condenatória por uma corte de apelação (MARQUES, 2017, p. 29-30).
Consolidou-se um quadro institucional capaz de praticamente inviabilizar a punição de qualquer responsável pela prática de algum ilícito, pois o Brasil possui um intrincado sistema recursal que pode postergar por décadas o trânsito em julgado de uma sentença[5].
Para agentes públicos desonestos, construir fortunas pessoais às custas do patrimônio público ou da exploração da função pública exercida se tornou algo acentuadamente vantajoso no Brasil. O retorno financeiro dos atos de corrupção, em geral, é elevado e o risco de punição, praticamente inexistente.
É preciso, apenas, que no cálculo das vantagens financeiras advindas da corrupção, o agente inclua uma provisão para o custeio de sua defesa, caso venha a ser descoberto, a fim de evitar o trânsito em julgado da sentença condenatória, o que inclui, necessariamente, a contratação de advogados capazes de utilizar adequadamente os mecanismos processuais de protelação.
O discurso de que a defesa da presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória - declamado como algo sagrado e baliza do Estado Democrático de Direito no Brasil, como se a nossa democracia fosse mais perfeita e avançada do que a existente em países de democracia madura, construída e aperfeiçoada ao longo de século - na verdade traduz o sentimento de uma casta corrupta, que há muito tempo vem construído fortunas pessoais às custas dos tributos pagos pelos brasileiros, que suportam uma das cargas tributárias mais elevadas do mundo e, em contrapartida, recebem como retorno serviços públicos dignos de nações incapazes de garantir o mínimo de assistência aos seus cidadãos[6].
Dessa forma, se o Estado Brasileiro muito arrecada e pouco retribui aos que contribuem com a sua manutenção, é possível sustentar que esse excedente de arrecadação serve para financiar a corrupção existente no país, protegida por uma interpretação constitucional que parece haver sido moldada sob medida para proteger os seus agentes de qualquer possibilidade concreta de punição.
Como lembra Marques (2017, p.29), a sociedade começa a enxergar com clareza que a presunção de inocência, diríamos, a interpretação que a ela se busca conferir no Brasil, somente se presta a gerar um sentimento de impunidade, pois os ricos lançam mão dos mecanismos processuais para lograr a obtenção da prescrição, enquanto os pobres, na maioria das vezes, mal conseguem acessar os tribunais de apelação, que constituem a segunda instância da organização judiciária brasileira.
Aquilo que se verbaliza como direito e garantia sagrada dos brasileiros, alçado à categoria de baliza instransponível no texto da Constituição de 1988, somente exala um quadro de desigualdade social crônica, onde o cárcere se destina a acomodar e a isolar os excluídos socialmente, que não se submetem como cordeiros impassíveis à exploração econômica e ao menosprezo social que lhes vem sendo conferido ao longo da formação histórica do Brasil.
Com isso, a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio da presunção de inocência, quando do julgamento do HC 84.078-7/MG, não foi uma conquista civilizatória, tal como se procurou alardear na ocasião. Foi apenas um passo voltado à proteção do cenário social onde os incluídos não devem frequentar o cárcere brasileiro, ainda que sejam responsáveis pela prática dos mais horrendos delitos.
3 O JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS Nº 126.292/SP E UMA NOVA ALTERAÇÃO DE RUMO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A gradativa conscientização de que o discurso que se busca difundir no Brasil, de que a presunção de inocência inviabiliza a execução de uma sentença condenatória antes do seu trânsito em julgado, não protege a coletividade, motivou uma nova visita ao tema pelo Supremo Tribunal Federal. Isso foi realizado quando do julgamento do HC 126.292/SP, relatado pelo ministro Teori Zavascki.
3.1 OS FUNDAMENTOS DO VOTO DO RELATOR DO HABEAS CORPUS Nº 126.292/SP
No voto proferido no plenário do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do HC 126.292/SP, o ministro Teori Zavascki iniciou as suas considerações sustentando a necessidade de se buscar um equilíbrio entre o princípio da presunção de inocência e a efetividade da função jurisdicional penal.
Sustentou que o Supremo Tribunal Federal, ao se deparar inicialmente com o tema após a promulgação da Constituição de 1988, quando do julgamento do HC 68.726, relatado pelo ministro Néri da Silveira, julgado 26/06/1991, reconheceu que o princípio da presunção de inocência não inviabiliza a execução da pena fixada em sentença condenatória confirmada em grau de apelação, uma vez que os recursos de natureza extraordinária, dentre os quais se insere o recurso especial direcionado ao Superior Tribunal de Justiça e o recurso extraordinário, de competência do Supremo Tribunal Federal, não são dotados de efeito suspensivo.
Continuou discorrendo que essa orientação permaneceu consolidada no Supremo Tribunal Federal até 05/02/2009, quando a corte, ao enfrentar novamente o tema com a sua composição plena durante o julgamento do HC 84.078/MG, relatado pelo ministro Eros Grau, abraçou a interpretação de que o princípio da presunção de inocência inviabiliza o início da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ressalvada a possibilidade de prisão cautelar do réu, quando os seus requisitos legais se encontrarem preenchidos.
Em seguida, o ministro Teori Zavascki argumenta que o exame dos fatos e provas se exaure nas instâncias ordinárias, pois os recursos extraordinários não são dotados de devolutividade ampla, não integrando, portanto, um desdobramento do duplo grau de jurisdição, o que fica claro ao se analisar os artigos 637 do Código de Processo Penal e 27, §2º, da Lei nº. 8.038/1990[7].
A finalidade dos recursos direcionados aos tribunais superiores, argumentou o ministro Teori Zavascki, não é a discussão da justiça ou injustiça da decisão, pois a culpa, uma vez reconhecida a partir dos exame do acervo probatório constante dos autos, resta selada com a confirmação da sentença em segunda instância, o que faz com que o aguardo do trânsito em julgado da sentença para fins de execução da pena somente se preste a estimular o manejo de recursos protelatórios intentados pela defesa do condenado em busca do decurso do prazo prescricional, concluindo pela admissão da execução da pena após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
3.2 OS FUNDAMENTOS DOS VOTOS DOS MINISTROS QUE ACOMPANHARAM AS CONCLUSÕES DO RELATOR DO HABEAS CORPUS Nº 126.292/SP
O ministro Edson Fachin, ao proferir seu voto acompanhando o relator, fez referência ao emaranhado de recursos viabilizados pelo sistema processual brasileiro, o que acaba por inviabilizar o trânsito em julgado de uma sentença condenatória dentro de um prazo razoável, destacando que a interposição de embargos declaratórios de forma ilimitada pode simplesmente obstar a execução de uma pena privativa de liberdade.
O ministro Luís Roberto Barroso, na mesma linha encampada pelo relator, argumentou que a presunção de inocência ou de não-culpabilidade é um princípio, e não uma regra. Logo, é passível de restrição por outras normas de estatura constitucional, desde que seja preservado o seu núcleo essencial, o que impõe a ponderação dela com os outros objetivos e regras do jogo.
O ministro Luís Roberto Barroso argumentou que a interpretação que interdita a prisão antes do trânsito em julgado da sentença representa uma proteção insatisfatória a direitos fundamentais, dentre os quais se destaca a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas.
Ressaltou que é importante que se considere que a forma como a sociedade se comporta diante de determinadas regras constitucionais provoca mutações no modelo constitucional, a fim de assegurar que ele tenha condições de continuar a reger determinada sociedade.
Os ministros Luiz Fux, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes, ao também acompanharem o relator, ressaltaram a necessidade de se conferir eficácia a sistema processual penal.
O ministro Luiz Fux apontou a disfuncionalidade do sistema, que viabiliza a um indivíduo reiteradamente condenado, adentrar na jurisdição do Supremo Tribunal Federal como presumidamente inocente e com a prescrição em curso, sem que tenha havido inércia do Ministério Público.
A ministra Carmen Lúcia defendeu que apenas as consequências que extrapolam a esfera penal ficam obstadas aguardando o trânsito em julgado da sentença condenatória.
O Ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto, relembrou que, anteriormente, contribuíra para a modificação da jurisprudência da corte, que passou a não mais admitir a prisão do condenado antes do trânsito em julgado da sentença.
Mas, ao revisitar o tema, fez reflexões a respeito da ineficácia do nosso sistema de justiça criminal, que viabiliza até mesmo a ocorrência de prescrição de crimes como o homicídio, que é submetido ao prazo prescricional mais dilatado em nosso sistema jurídico, argumentando, por fim, que a culpa vai sendo sedimentada à medida que o processo avança, o que viabiliza a adoção sequenciada de providências mais gravosas pelo Estado contra o réu, como o encarceramento após a confirmação da sentença condenatória em segunda instância.
O ministro Dias Toffoli, embora tenha participado do julgamento, não teve as considerações do seu voto disponibilizada juntamente com o inteiro teor do julgamento no sítio do Supremo Tribunal Federal na data em que o consultamos (04 de setembro de 2017). No entanto, ele acompanhou, na ocasião, a tese de que a sentença condenatória pode ser executada após a sua confirmação pela segunda instância, conforme consta do Acórdão, na qual o seu nome não é computado entre os votos vencidos.
3.3 FUNDAMENTOS DOS VOTOS DOS MINISTROS QUE DIVERGIRAM DO RELATOR NO JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS Nº 126.292/SP
Os ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, durante o julgamento em análise, mantiveram-se fiéis à intepretação que defende a inviabilidade da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
A ministra Rosa Weber, em suas considerações, afirmou que ainda não refletira de forma mais cuidadosa a respeito do tema, tendo se limitado a referendar a posição adotada pelo STF em 2009.
O ministro Marco Aurélio defendeu a tese de que a presunção de inocência é garantia constitucional que não pode ser revista, sequer, por emenda constitucional. Além disso, argumentou que a redação constitucional é clara e a interpretação não pode se converter em instrumento de modificação do sentido da norma.
O ministro Celso de Mello sustentou que a presunção de inocência é garantia constitucional do réu, cujo estado de liberdade deve ser mantido até o trânsito em julgado da sentença condenatória, sendo esta uma garantia respaldada por diversos documentos internacionais de direitos humanos, aduzindo, ainda, que a lógica de interpretação do princípio, vigente em nações vinculadas à tradição do direito anglo-saxônico, é incompatível com o sistema constitucional brasileiro.
O ministro Ricardo Lewandowski, ao se juntar aos que defenderam a tese de que a sentença condenatória somente pode ser executada após o seu trânsito em julgado, fez referência ao fato de que o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, sendo este um problema que tenderia a se agravar com a interpretação que possibilita a execução a pena antes do trânsito em julgado da sentença. Acrescentou que o sistema penal brasileiro pune, de forma mais gravosa, a lesão ao patrimônio, quando a lógica imporia uma tutela maior a integridade física e moral da pessoa.
4 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, GARANTISMO EXCESSIVO E ESTÍMULO À CORRUPÇÃO
Há evidências sólidas de que a impunidade é a causa principal da corrupção no Brasil e ela tende a ser maior em países que ostentam um elevado grau de desigualdade socioeconômica (CORDEIRO, 2017, p. 86-89).
Não se trata apenas de um cenário que culturalmente a estimula. O que se tem, na verdade, é um quadro de tamanha falta de perspectivas de punição, que o cálculo dos agentes potencialmente corruptos se inclina facilmente para as vantagens em praticá-la, uma vez que as possibilidades de punição são muito remotas.
Para isso contribui um modelo interpretativo do princípio da presunção de inocência, que inviabiliza a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, associado a um modelo processual que permite a interposição ilimitada de recursos, capaz de inviabilizar o trânsito em julgado até mesmo nos casos de crimes como o homicídio, que possui o prazo prescricional mais elevado em nosso sistema jurídico, conforme ressaltou o ministro Gilmar Mendes quando do julgamento do HC 126.292/SP.
O sistema que impõe que se aguarde o trânsito em julgado da sentença condenatória talvez se mostre viável dentro de um sistema jurídico, cuja sistemática processual seja bastante enxuta, com o trânsito em julgado ocorrendo logo após a confirmação da sentença em segunda instância e os recursos de natureza extraordinária possuam efeitos meramente rescisórios em caso de provimento.
Isso chegou a ser proposto pelo ministro Cezar Peluso por meio da Proposta de Emenda à Constituição que recebeu no Senado Federal número 15/2011 e foi apresentada naquela casa legislativa pelo Senador Ricardo Ferraço[8], cuja tramitação não avançou, não chegando, sequer, a ser deliberada no plenário do Senado Federal.
Mas no modelo processual atualmente em vigor no Brasil, bastante confuso e capaz de estender a tramitação do processo ao infinito, a adoção do sistema de execução da pena somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória chega a ser trágico, quando se lida com réus financeiramente bem aquinhoados – que são, em geral, os que praticam atos de corrupção – pois chegar ao fim da tramitação do processo penal em relação a eles se torna uma tarefa hercúlea ou mesmo impossível de ser alcançada, já que sempre haverá um agravo interno, um embargos de divergência, um embargo de declaração nos embargos de divergência no agravo interno a serem interpostos e assim por diante, pois a criatividade dos nossos processualistas é invejável.
A interpretação estritamente literal do disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988 conduz, de fato, à conclusão de que a execução da pena somente é possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Mas, não se trata de um modelo hermenêutico intocável, impossível de ser reavaliado de forma a contemplar os anseios do momento social e político no qual o país se encontra.
Não se pode esquecer que uma constituição decorre de um pacto social que somente subsiste enquanto for capaz de corresponder, de forma ampla, aos anseios da sociedade que se propõe a reger. É com base nisso e a fim de evitar sucessivas rupturas com modelos constitucionais que a doutrina passou a admitir que os textos constitucionais sofrem mutação interpretativa, não obstante permaneçam com suas redações inalteradas.
A mutação ou transição constitucional ocorre por meio de uma “revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto” (CANOTILHO, 2003(?), p.1228).
Como produto de um compromisso político firmado em um determinado momento histórico, a constituição precisa ser atualizada a fim de continuar sendo vista como instrumento jurídico capaz de agregar os diversos segmentos sociais em torno dos seus princípios e normas. Se não houver essa constante atualização, a constituição tende a envelhecer e a não mais representar os anseios sociais, impondo-se a sua substituição.
Admitir a mutação constitucional sem alteração de texto é uma forma de manter viva a constituição. O apego excessivo ao sentido literal de suas normas, sem considerar os novos contextos políticos e sociais que surgem ao longo do tempo, é o caminho mais curto para a perda de eficácia de um texto constitucional, com todos os riscos que advém dos processos de substituição de uma constituição, uma vez que o poder constituinte, não submetido, por natureza, a quaisquer freios, somente deve ser convocado em situações extremas, nas quais a manutenção do pacto social sobre a ordem constitucional em vigor, já não é mais possível.
Aceitar que os textos constitucionais são mutáveis e devem ser interpretados de acordo com o momento político e social vivenciado, ainda que de forma aparentemente contrária à sua redação literal, embora tenha riscos, pode conduzir, por outro lado, à manutenção do pacto social que gerou a constituição, contribuindo para a sua sobrevivência.
No caso da presunção de não-culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, conforme consta do artigo 5º, LVII, da Constituição de 1988, deve-se admitir que ele não é um obstáculo intransponível ao início da execução da pena antes do exaurimento de todos os recursos possíveis de serem manejados contra a sentença condenatória.
É possível, dentro do sistema jurídico brasileiro, sem ruptura com as balizas da Carta de 1988, construir um modelo interpretativo que assegure a eficácia da jurisdição penal sem descurar dos direitos dos réus.
Nesse contexto, é importante considerar que não foi intenção do constituinte criar um sistema para assegurar imunidade penal a quem seja dotado de capacidade financeira para custear defensores com a finalidade de levar a tramitação do processo penal ao infinito, inviabilizando o seu trânsito em julgado antes do decurso do prazo prescricional.
Se é possível o encarceramento cautelar do indivíduo, antes mesmo do início da ação penal, em situação em tudo semelhante àquela que vivenciará se vier a ser condenado pelo crime que lhe é imputado - o que vem sendo admitido sem maiores polêmicas mesmo pelos mais combativos defensores da impossibilidade do início de execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória - torna-se difícil compreender qual seria a aberração em se admitir o início da execução da pena de quem já teve a sua culpa reconhecida por duas instâncias do poder judiciário, após uma exaustiva avaliação do acervo probatório colacionado aos autos, que não mais será submetido a escrutínio nas instâncias extraordinárias, caso venham a ser acessadas.
A atenuação gradativa do princípio da presunção de inocência no decorrer da tramitação do processo penal, com a possibilidade de aplicação de medidas sucessivamente mais gravosas ao réu no decorrer do processo, conforme sedimenta-se a comprovação de sua culpa, parece-nos ser a interpretação que melhor compatibiliza o respeito da presunção de inocência com a garantia de mínima eficácia da jurisdição penal. O contrário significa a manutenção de um quadro perverso no qual somente quem não seja capaz de custear bons advogados enquanto aguarda o decurso do prazo prescricional do crime que cometeu, é que continuará a frequentar o cárcere no Brasil.
Assim, se o recurso especial direcionado ao Superior Tribunal de Justiça e o recurso extraordinário, de competência do Supremo Tribunal Federal, não possuem efeito suspensivo[9], uma condenação confirmada em grau de apelação pode ser executada, somente devendo ser aguardado o trânsito em julgado para imposição das consequências que extrapolam o âmbito penal, como a perda da função pública, o lançamento do nome do réu no rol dos culpados, etc.
Tem-se, portanto, uma interpretação que garante eficácia à jurisdição penal, sem descurar da presunção de inocência do condenado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
É bem verdade que uma interpretação isolada e literal do disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, aparentemente se mostra incompatível com esse início de execução da pena após a confirmação da sentença penal condenatória pela segunda instância poder judiciário.
No entanto, considerando o cenário de corrupção endêmica vivenciado pela o Brasil, no qual os recursos públicos que deveriam ser aplicados em favor de toda a coletividade são drenados para o enriquecimento pessoal de agentes públicos desonestos, enquanto se nega à população o mínimo necessário em termos de saúde, educação e segurança, constitucionalmente garantidos, admitir a antecipação do início da execução da pena privativa de liberdade após a sua confirmação em segunda instância, Parece-nos ser o caminho mais acertado e que viabiliza, inclusive, a própria manutenção da legitimidade do sistema constitucional em vigor.
Para isso, consolidar a interpretação que já prevaleceu no Supremo Tribunal Federal até ser bruscamente alterada por ocasião do julgamento do HC 84.078/MG em 2009, mas retomada oportunamente pela corte no julgamento do HC 126.292/SP, é o caminho a ser trilhado.
O argumento de que a Constituição Federal não viabiliza a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, criou um cenário que tornou o direito penal desprovido de um mínimo de eficácia, quando se trata de punir a parcela mais rica da sociedade brasileira.
O desacerto dessa mudança de interpretação do texto constitucional foi tão evidente que um dos seus maiores defensores durante o julgamento do HC 84.078/MG, o ministro Cezar Peluso, quando ocupou a presidência do Supremo Tribunal Federal, elaborou e tentou viabilizar a aprovação da já referida PEC nº 15/2011 (Senado Federal), antecipando o trânsito em julgado das sentenças para o momento subsequente à sua confirmação em segunda instância.
A PEC nº 15/2011 (Senado Federal) não avançou em sua tramitação, provavelmente porque, dentre os grandes prejudicados com a mudança que de sua aprovação resultaria encontra-se, exatamente, muitos dos nossos legisladores.
O discurso que se oculta sob o manto da retórica dos ferrenhos defensores da impossibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, consciente ou inconscientemente, não defende os humildes. Ao contrário, ele busca proteger os ricos, cuja a simples perspectiva de encarceramento pelos crimes que cometem já causa rubor na parcela da sociedade que sempre viveu às custas da apropriação indevida dos bens coletivos.
O cárcere, no Brasil, sempre foi visto como local para pobres, excluídos, e para os indesejáveis socialmente. Admitir a possibilidade de que um delinquente rico o frequente é algo que sempre foi impensável para a elite política e econômica nacional.
Daí a insistência de grandes bancas de advocacia brasileiras em defender uma interpretação constitucional construída sob medida para garantir a impunidade de quem pode custear os seus serviços enquanto aguarda, comodamente, a prescrição do crime cometido.
Mas, a constituição não foi elaborada para reger ideias, seres imaginários, ficções jurídicas e alimentar discursos pomposos. Ela, para se legitimar, precisa ser vista como capaz de responder aos anseios da maioria da sociedade a que se propõe regulamentar, que não suporta mais conviver com a corrupção endêmica que persegue o Brasil ao longo de sua história, sem que jamais tenha sido combatida de forma séria e eficiente.
Se considerarmos a impunidade como sendo a maior causa e o elemento fomentar da corrupção brasileira, desconstruir um modelo que a sedimente é o caminho a ser seguido e a Constituição deve respaldá-lo, sob pena de ela mesma perder a sua legitimidade perante a sociedade, daí porque a sua interpretação não pode ser realizada de costas para os anseios populares.
Com isso, levando em consideração que os recursos especial e extraordinário não se prestam ao reexame de fatos e provas e não gozam de efeito suspensivo, temos como juridicamente sustentável a interpretação que admite a execução da pena confirmada em segunda instância, uma vez que eventuais excessos sempre poderão serem sanados por meio de medidas cautelares incidentais aos recursos especial e extraordinário eventualmente interpostos ou mesmo pela via sempre eficaz do habeas corpus.
CONCLUSÃO
A corrupção no Brasil foi, tradicionalmente, analisada segundo o patrimonialismo, que tributa à formação cultural do país a responsabilidade pela pouca reprovação social que se conferia à apropriação privada dos recursos públicos.
Mas, o avanço das discussões a respeito do tema trouxe outras direções de avaliação do problema, destacando-se, na atualidade, uma análise econômica da corrupção, que avalia o agir desonesto como produto de um cálculo realizado por seu agente, no qual as perspectivas de ganhos superam as chances de punição que pode vir a sofrer.
Têm-se, portanto, segundo a análise econômica da corrupção, que a impunidade é a sua principal causa, de forma que o seu combate efetivo precisa ser focalizado na estruturação de um sistema jurídico eficiente voltado para a punição dos agentes corruptos, tornando o agir desonesto no trato da coisa pública potencialmente desvantajoso.
A interpretação que se difundiu no Brasil e encontrou abrigo no Supremo Tribunal Federal a partir de 2009, com o julgamento do Habeas Corpus 84.078/MG, tornou-se um grande empecilho a qualquer combate sério à corrupção no país, que passou a ser melhor enxergada a partir da transparência e publicidade que a democracia norteada pela Constituição de 1988 viabilizou.
Mesmo exposta claramente para a sociedade, a corrupção continuou a se aprofundar, pois as sucessivas condenações de corruptos não podiam ser executadas diante da interpretação prevalecente no Supremo Tribunal Federal desde 2009, que não viabilizava o início da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
O trânsito em julgado da sentença, para aqueles que podem custear bons advogados, é uma possibilidade muito remota, dada a quantidade acentuada de recursos existentes no sistema processual brasileiro, que pode levar a tramitação do processo ao infinito, fazendo a prescrição do crime ocorrer antes do trânsito em julgado da sentença.
Os recorrentes escândalos de corrupção descortinados no Brasil nas últimas décadas, criou um sentimento na sociedade de não ser mais possível tolerar a corrupção, haja vista os inúmeros danos sociais que ela provoca. Isso motivou uma retomada, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência tradicional, que prevaleceu na corte até 2009. Assim, a partir do julgamento do HC 126.292/SP, em 2016, o Supremo Tribunal Federal voltou a viabilizar o início da execução da pena após a confirmação da sentença condenatória pela segunda instância do Poder Judiciário.
Considerando que os recursos de natureza extraordinária não se prestam a rediscutir fatos e provas, estando a culpa do agente selada com a condenação confirmada em segunda instância, entendemos que o início da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença não viola o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, pois os recursos especial e extraordinário não possuem efeito suspensivo, não obstando que o título judicial objeto de impugnação possa gerar, de imediato, os efeitos que dele consta.
Esse nos parece ser o modelo de interpretação mais acertado, quando se trata de assegurar o respeito à presunção de inocência do réu, sem aniquilar a garantia de eficácia da jurisdição penal, assegurando um combate eficaz à corrupção e garantindo a legitimidade social do sistema constitucional que, a duras penas, foi implantado no Brasil em 1988 e que, é verdade, precisa ser aperfeiçoado, mas, acima de tudo, preservado.