Tem sido muito utilizada nas redes sociais a expressão genocídio para o que se passa hoje no Brasil. É certo que vivemos a maior tragédia por que passou a nossa geração.
A colunista Mirian Leitão escreveu para o site do jornal O Globo, no dia 21 de março do corrente ano, que “a palavra habita nossas mentes porque estamos vendo os fatos, temos consciência do destino. Objetivamente, é a única que temos para descrever os eventos deste tempo. Quem se ofende com ela, se fosse pessoa com sentimentos humanos, teria reagido para evitar a tragédia. Nós sabemos, sinceramente, que nada podemos esperar de quem empurrou o país para este momento de barbárie.”
Casos recentes e conhecidos de genocídio podem ser citados, tais como: o genocídio cambojano; o genocídio de Ruanda, o genocídio na Bósnia, e ainda dos curdos, promovido por Saddam Hussein, no Iraque, sem esquecer de registrar a chamada deportação dos chechenos e o genocídio do povo tibetano. O genocídio do povo judeu, durante a segunda guerra mundial, é um dos casos mais emblemáticos da história pela sua crueldade e pela forma como o nazismo o praticou de forma covarde e perversa.
No entanto, a expressão usada para acontecimentos em nosso país, por conta da tragédia da covid-19, não se adequa ao delito penal que ora discutimos.
O presidente da República poderia ser julgado por tal crime perante o Tribunal Penal Internacional de Haia?
Lembro que a Corte Internacional investiga crimes contra a humanidade "praticados dentro de um contexto de ataque generalizado ou sistemático contra a população civil".
Tal foi o caso de Darfur, no Sudão, em que mais de 2 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar, sendo que 300 mil foram mortas, entre 2003 e 2008, em um conflito marcado por execuções sumárias e estupros.
Por causa desses crimes, o TPI expediu mandado de prisão por genocídio contra o ex-presidente do Sudão, Omar Al Bashir. Até hoje, porém, ele não se apresentou à Corte e não pôde ser julgado.
Uma política de saúde, por mais desastrosa que seja, não necessariamente pode ser entendida como um ataque deliberado contra a população civil.
Talvez a Corte Internacional Penal de Haia não leve adiante uma investigação preliminar sobre o caso. Não se julgam políticas de saúde, mas um ataque deliberado à população civil, repito, e isto não está acontecendo no Brasil.
O genocídio, cuja expressão foi inventada por Lemkin, serviu para designar vários atos dirigidos intencionalmente à destruição de um grupo humano, como já se lia na Convenção de 9 de dezembro de 1948, artigo 2º.
Sendo assim, o genocídio é um crime especial, consistente em destruir, intencionalmente, grupos humanos, raciais, religiosos ou nacionais e, como o homicídio singular, pode ser cometido tanto em tempo de paz como em tempo de guerra.
O crime de genocídio é praticado mediante dolo específico consistente na destruição de um grupo humano.
Configura o genocídio, ainda que um só seja a vítima, desde que atingido em caráter pessoal como membro de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como disse Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, parte especial, 7ª edição, pág. 85). O genocídio especifica crime autônomo contra bem jurídico coletivo, diverso dos ataques individuais que compõem as modalidades de sua execução.
A matéria está sujeita à Convenção Internacional, que foi ratificada pelo Brasil, tendo sido promulgada através do Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952, devendo o novo Código Penal revogar a Lei 2.889, de 1956, que trata da tipificação do crime de genocídio, incluindo como tipo o genocídio provocado por gênero, língua ou etnia.
O genocídio, que foi incluído no Código Penal de 1969, entre os crimes contra a pessoa, em orientação oriunda do anteprojeto Hungria, passa, em função dos estudos promovidos por comissão de juristas que formulou uma proposta de reforma do Código Penal, como crime contra a humanidade. A ele deverão ser somados outros crimes nessa categoria, tais como: escravidão, extermínio, tortura provocada contra um grupo de pessoas em razão dele, gravidez e esterilização, falando-se ainda na transgenerização forçada.
A inclusão do genocídio como crime contra a humanidade seguiu o modelo do Código iuguslavo, que o incluiu sob a rubrica de ações puníveis contra a humanidade e o direito das gentes (artigo 124). Por sua vez, o projeto alemão de 1962 classificou esse crime num título especial: fatos puníveis contra a comunidade dos povos.
Não seguiu o Projeto do Código Penal pátrio, o Código Penal alemão, que foi introduzido em 1954, e inseriu o genocídio entre os crimes contra a vida.
Devem as vítimas pertencer a determinado grupo nacional, étnico (que se refere a povo, como grupo biológico e culturalmente homogêneo) ou religioso, ou a determinada raça.
No Projeto do Código Penal, no artigo 459, há o tipo objetivo desse crime, que envolve a prática de condutas (matar alguém, ofender a integridade física ou mental de alguém, realizar qualquer ato com o fim de impedir ou dificultar um ou mais nascimentos, no seio de determinado grupo; submeter alguém a condição de vida desumana ou precária ou transferir, compulsoriamente, criança ou adolescente do grupo ao qual pertence para outro)com o propósito de destruir, total ou parcialmente, um grupo, em razão de sua nacionalidade, idade, idioma, origem étnica, racial ou social, deficiência, identidade de gênero ou orientação sexual, opinião política ou religiosa.
Como lecionou Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 85), não se trata, pois, de considerar a humanidade como bem jurídico, mas, sim, de identificar valores particularmente dignos de proteção jurídica no respeito humano de pessoas que integram certos grupos que de outros se destacam apenas por sua nacionalidade, raça ou religião.
A ação típica configura-se com a efetiva submissão de uma coletividade de pessoas integrantes de grupos, de qualquer forma ou através de qualquer meio, a condições capazes de causar a sua eliminação. Não se exige a superveniência desse resultado, bastando a criação de condições com potencialidade causal para produzir a morte de uma pluralidade de pessoas componentes de um grupo. Essa ação exige como elemento subjetivo o dolo específico.
O crime requer vontade consciente dirigida no sentido de matar, como ainda, e particularmente, o propósito de aniquilamento, no todo ou em parte, no grupo como tal.
Se a ação de matar não for praticada para destruir membros de determinado grupo nacional, étnico (povo, grupo biológico e culturalmente homogêneo) ou religioso como tais, o crime a identificar será apenas o de homicídio, simples ou qualificado, conforme o caso.
No Brasil, há exemplo recente, como o massacre de Haximu, em Roraima, um massacre cometido por garimpeiros contra os índios ianomâmis.
No genocídio realizado, 12 (doze) pessoas foram mortas a tiros e mutiladas com facão. Pelo menos, 22 (vinte e dois) garimpeiros foram acusados de participar da execução dos indígenas.
Em 2006, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, que o crime foi um genocídio e manteve a condenação formulada pela Justiça Federal.
No Brasil, o crime de genocídio, em si, não atrai a competência do Tribunal do Júri. No entanto (RE 351.487/RR), havendo concurso formal entre o genocídio e o homicídio doloso, compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes de homicídio e genocídio, cometidos no mesmo contexto fático.
Direi, ao final, que poderemos ter falhas na política de saúde, que devem ser corrigidas pelos agentes políticos envolvidos. Não há comprovação do ilícito de genocídio no contexto do que trata a Corte Internacional.