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Uma vacina sem autorização da Anvisa?

10/04/2021 às 11:50
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A Câmara dos Deputados aprovou mudança na legislação para permitir que empresários comprem vacinas contra a covid-19, mesmo sem o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Foram 317 votos a favor e 120 contra. E agora?

 A Câmara dos Deputados aprovou o texto-base de uma mudança na legislação para permitir que empresários comprem vacinas contra a covid-19, mesmo sem o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Foram 317 votos a favor e 120 contra. Em parecer apresentado no dia 6 de abril do corrente ano, a deputada Celina Leão (PP-DF) sugeriu que podem ser comprados imunizantes com aval de uso concedido por qualquer autoridade sanitária estrangeira “reconhecida e certificada” pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

A mudança libera a compra mesmo sem o consentimento da Anvisa, que faz análises próprias sobre segurança e eficácia de vacinas ainda que elas já tenham sido aprovadas em outros países. O projeto ainda precisa passar pelo Senado.

Em substitutivo, a deputada Celina Leão abriu a possibilidade de doação de somente metade das doses, mesmo antes de o SUS terminar de vacinar grupos prioritários. O restante dos imunizantes deve ser aplicado de forma gratuita nos trabalhadores das empresas que comprarem os produtos, segundo as prioridades estabelecidas pelo Plano Nacional de Imunização. Empresas que não cumprirem a regra estarão sujeitas a multa equivalente a 10 vezes o valor gasto na aquisição de imunizantes.

Data vênia, caberá à ANVISA o papel determinante de aprovação com relação a aplicação de vacinas que combatam o terrível mal da COVID-19.

O papel da ANVISA, dentro de uma devida discricionariedade técnica, é de ser agente normatizador na área de saúde.  

A Lei 9.782/99 prevê competir à Anvisa, entidade administrativa independente (art. 4o), a concessão de registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação (art. 7º., IX) e proibir fabricação, importação, armazenamento, distribuição e comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde (art. 7o., XV). Por sua vez, a Lei 6.360/76 determina que nenhum produto de que trata, inclusive os importados, possam ser industrializados, expostos à venda ou entregues ao consumo, antes de registrados na Anvisa. Dessa forma, para que o Ministério da Saúde incorpore uma nova vacina no PNI seria necessário o registro na Anvisa, mesmo que o produto fosse apenas produzido fora do país e tivesse registro sanitário na origem.

É verdade que a própria lei 9782/99 prevê uma exceção. Dispõe o art. 8o, Parágrafo 5o:

“A Agencia poderá dispensar de registro os imunobiológicos, inseticidas, medicamentos e outros insumos estratégicos quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas.”

Ocorre que, no julgamento das ADIs 6.586 e 6.587, os ministros do STF deixaram claro na fundamentação de seus votos que a autorização excepcional e temporária da Lei 13.979 não depende de registro definitivo em agência sanitária estrangeira, sendo suficiente o emergencial, dadas as peculiaridades da crise sanitária enfrentada. O Ministro Gilmar Mendes, inclusive, propôs que a interpretação da norma em questão constasse da tese fixada no dispositivo, para assentar que a autorização excepcional pode ocorrer diante de registro definitivo ou temporário em agência sanitária estrangeira.

No entanto, o ministro Ricardo Lewandowski entendeu não ser necessário, uma vez que constava da fundamentação dos votos proferidos e, ainda, havia sido por ele tratado em decisão monocrática na ACO 3.451 e na ADPF 770.

Na ADPF 770, inclusive, o Ministro Ricardo Lewandowski lembra que o STF, ao julgar o RE-RG 657.718 (Tema 500), autorizou, excepcionalmente, o fornecimento de medicamento sem registro quando: houver pedido de registro na Anvisa, já tiver registro em órgão sanitário no exterior, e for único, sem similar nacional. Tal precedente, de certa forma, seguiria como norte de interpretação do Parágrafo 7o.-A para vacinas contra a Covid. Destaco o seguinte trecho da decisão monocrática:

“Não desconheço a aprovação da Resolução DC/AMVISA 444 de 10/12/2020, a qual ‘estabelece a autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19 para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2)’.

No entanto, a publicação da referida Resolução emanada de Diretoria Colegiada, ao propiciar mais uma maneira de aprovação das vacinas contra a Covid-19 – em caráter experimental -, não exclui, até porque não poderia fazê-lo, as formas já existentes, de modo que remanescem, tanto o registro previsto no art. 12 da Lei 6.360/1976, como a autorização excepcional e temporária estabelecida no art. 3o., VIII, da Lei 13.979/2020.

A dispensação excepcional de medicamento sem registro na ANVISA, de resto, não constitui matéria nova nesta Suprema Corte, já tendo sido apreciada no RE 657.718 (...)

Seja como for, as disposições constantes do art. 3o, VIII, a, e Parágrafo 7o.-A, da Lei 13.979/2020, gozam da presunção de plena constitucionalidade, revelando, portanto, a solução encontrada pelos representantes do povo reunidos no Congresso Nacional para superar, emergencialmente, a carência de vacinas contra o novo coronavírus. (...)”

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Como disse Ana Paula Carvalhal (Lei e jurisprudência sobre autorização emergencial para a vacina contra a covid, Consultor Jurídico), a análise conjunta da legislação sanitária e dos precedentes do STF na matéria permitem concluir que as vacinas contra a Covid-19 poderão ser distribuídas à população brasileira nos seguintes casos: após registro na Anvisa (art. 16 da Lei 6360/76); após autorização para uso emergencial na Anvisa (Resolução 444/2020 da Anvisa); dispensado o registro na Anvisa quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais para uso em programa de saúde pública (art. 8o., Parágrafo 5o., da Lei 9782/99); e sem registro na Anvisa, para autorização excepcional e temporária para importação e distribuição, quando autorizado seu uso pela FDA, pela EMA, pela PMDA ou pela NMPA (art. 3o., Parágrafo 7o.-A, da Lei 13.979).

Os principais objetivos da regulamentação como instrumento de regulação são:

  • Subsídios às ações sanitárias.
  • Diminuição de desigualdades resultantes dos conflitos trazidos pela relação de produção e consumo.
  • Prevenir e evitar riscos à saúde de toda a população.
  • Indução de comportamentos em benefício da coletividade.
  • Transparência, harmonização e igualdade de tratamento.

A ANVISA, como as demais agências regulatórias, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, e não primária, como faz o Legislativo, por lei, ou o Executivo, por medidas provisórias (com os limites de urgência e necessidade dados pela Constituição).

Não cabe ao legislador primário uma função regulatória. Esta cabe às agências reguladoras. Disse bem Justen Filho (Direito das Agências Reguladoras Independentes, 2002) que "a função regulatória (ou reguladora) visa a realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo "em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores".

Daí porque bem resumiu Carlos Roberto Siqueira Castro (A Constituição aberta e os direitos fundamentais, pág. 213) que a competência normativa exercida pelas Agências Reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o "poder regulamentar", primário, de competência do chefe do Poder Executivo, que se faz através de regulamentos de execução (reproduzindo de forma analítica a lei, ampliando-a, se for o caso, e completando-a segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos e detalhes que a lei expressa ou implicitamente outorga à esfera regulamentar). O poder regulamentar do Executivo, lembre-se, envolve regulamentos (decretos) de regulamentação e regulamentos de organização, não autônomos, pois a Constituição não os permite.

As Agências Reguladoras, verdadeiras autarquias, como é o exemplo da ANVISA, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hierarquicamente superiores. Essa função normativa é secundária, repita-se.

Há previsão em legislação, também recente, de a agência acelerar a análise de imunizantes aprovados em uma lista de países ou autoridades com o mais elevado grau de certificação da OMS ou que sejam reconhecidos por outros fóruns internacionais.

Por essa regra, a ANVISA teria sete dias para emitir um parecer sobre o pedido de importação ou uso de vacinas que têm aval nesses países. A agência, porém, pode suspender a análise, caso precise de mais documentos, e até negar o pedido, se considerar que não há dados suficientes para comprovar a segurança e eficácia das vacinas.

Confira-se que tal aprovação poderia fugir à razoabilidade.

A razoabilidade deve ser vista na seguinte tipologia:

a) Razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;

b) Razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;

c) Razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Não se pode eleger uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação estatal. Os princípios constitucionais do Estado de Direito (artigo 1º) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV), da Constituição exigem o confronto com parâmetros externos a elas.

Não se pode conviver com discriminações arbitrárias.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida e, ainda, uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins. No caso em tela, há absoluta dissonância entre os motivos, meios e fins da medida, de forma a aduzi-la como fora do razoável.

Seria, pois, fora do razoável possibilitar essa não autorização pela ANVISA para determinados casos de vacinação, sob o pretexto de que tais vacinas já estariam aprovados por órgãos no exterior. Mas, qual teria sido essa metodologia? Quais as consequências que poderia trazer para a população brasileira? Tal aprovação por entidade estrangeira, baseada em experiências fora do Brasil, poderia trazer conclusões arbitrárias, que não se enquadrariam em nossa realidade.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma vacina sem autorização da Anvisa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6492, 10 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89692. Acesso em: 2 nov. 2024.

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