O crime da mala, ocorrido no ano de 1928, se destaca por dois motivos: o primeiro, a brutalidade do crime praticado, o que trouxe grande repercussão na época; e, o segundo, uma eficiência espantosa da polícia da época que, em apenas 24 horas, conseguiu identificar a vítima, o autor e efetuar a prisão do criminoso.
A investigação tem início quando a mala onde se encontrava o corpo da vítima estava sendo embarcada em um navio destinado à França, e esta acaba caindo, sendo constatado que, da citada mala, saía um liquido avermelhado aparentando ser sangue.
A polícia é então acionada, e, ao abrir a mala, encontra o corpo de uma mulher.
Pelas fotos da época é possível observar um fato que, até a presente data, se mostra uma realidade nas investigações no nosso país: a deficiência, ou mesmo ausência, de um isolamento adequado do local do crime, o que pode culminar na contaminação, ou até mesmo na perda de evidências essenciais para se compreender a dinâmica do crime e sua autoria, bem como a comprovação científica da prática criminosa. O isolamento também é importante para garantir a segurança dos peritos (ou policiais) e promover uma maior tranquilidade e eficiência por parte dos investigadores/peritos durante as investigação/análises realizadas (STUMVOLL et al, 2019, p. 32).
Na época do crime em comento, a perícia perinocroscópica (realizada no local do crime por peritos) não era uma realidade, sendo tal perícia, na atualidade, indispensável para a comprovação da dinâmica delitiva e a obtenção de provas técnicas para comprovação do crime. Muitas vezes, informações observadas pelos peritos no local do crime são fornecidas aos investigadores informalmente, já para direcionar as investigações (indicando a aparente causa mortis, instrumento utilizado, possível hora da morte), tendo em vista que o laudo de tal perícia, por vezes, demora a ser confeccionado e entregue à polícia.
Na atualidade, também seria possível a realização de perícia necropapiloscópica da vítima, visando à coleta de digitais e a confrontação desta com o banco de dados para firmar a identidade da vítima. Na época do crime ora em comento, essa confrontação não era possível porque, embora a papiloscopia já fosse conhecida no Brasil, não havia, naquele período, uma prática na realização desse tipo de identificação, muito menos um banco de dados para confrontação.
Outra forma de identificação possível seria por meio da arcada dentária da vítima (STUMVOLL et al, 2019, p. 50), caso estivessem disponíveis os prontuários dentários da vítima (o que nem sempre é possível).
Na atualidade, o DNA também seria importante para se firmar a identidade da vítima (BITTAR, 2019, p. 111). Contudo, até a presente data, não existe em nosso país banco de dados em larga escala para realização da confrontação, sendo esse tipo de identificação realizada com o teste de confrontação entre a vítima e familiares da mesma. No caso ora em análise, isso também não seria possível, pois não havia familiar a ser confrontado, caso esse exame estivesse disponível à época.
Na mala, além do corpo e das roupas da vítima, a polícia localizou uma etiqueta com o local da entrega da mala, sendo solicitada cooperação internacional junto à polícia francesa (país para o qual a citada mala seria destinada), para se identificar a pessoa que receberia aquele objeto. Na atualidade, porém, esse tipo de cooperação costuma ser bastante burocrática e demorada. No caso, e à época do crime em questão, essa solicitação de cooperação pouco auxiliou nas investigações.
Na necropsia realizada no corpo da vítima (que teve o papel pericial mais detalhado na presente investigação), se constatou morte por esganadura, e que as lesões na perna da vítima foram realizadas post mortem, o que indica que as pernas da vítima foram seccionadas para que o corpo coubesse na mala.
A partir daí, encerrado o que podemos chamar de investigação preliminar (que seria aquela realizada após a descoberta do corpo da vítima em crimes de homicídio, consoante ensinamentos de BLANCHET – 2017, p. 34), passamos à investigação de seguimento. É interessante observar, no caso em analise, que a polícia seguiu passos bastante detalhados, levando, de uma evidência a outra, à conclusão do caso, fazendo uso de provas testemunhais - que, embora hoje em dia sejam provas bastante contestadas, em razão da pouca confiabilidade, na época, era uma das fontes probatórias mais utilizadas. Ainda hoje a prova testemunhal é uma realidade nas investigações criminais, não podendo ser de todo dispensada, porquanto toda a prova é importantes dentro de uma investigação criminal (BARCELOS e VIDAL, 2017, p. 63).
Em primeiro lugar, são encontrados e levados a prestar esclarecimentos dois cidadãos romenos, que embarcaram a mala no citado navio. Alegaram que haviam embarcado aquele objeto a pedido de um outro individuo, indicando suas características físicas. Na atualidade, seria possível a confecção de uma reprodução artística do rosto desse individuo (ou retrato falado) para auxiliar nas investigações, o que hoje pode ser feito com o auxilio de programas de computador (BITTAR, 2019, p. 117).
Na mala fora encontrada, também, uma etiqueta de despacho de trem da mesma, o que seria interessante para rastrear a origem daquele objeto. Ao se procurar a estação de trem que emitiu aquele documento, constatou-se que a mala fora despachada de São Paulo para Santos, e testemunhas que trabalhavam na estação confirmaram a descrição do suspeito que a despachou, confirmando a versão dos romenos, e, ainda, acrescentando que o suspeito possuía um sotaque italiano (nesse momento, um retrato falado poderia ser reconhecido por essas testemunhas).
A polícia então realiza uma vigilância (campana) na estação de trem esperando o suspeito voltar àquele local, posto que o suspeito comprou passagens de ida e volta. Contudo, essa diligência se mostrou infrutífera.
Uma das testemunhas ouvida/entrevistada na estação, um carregador, informou aos policiais acerca de uma pensão que o mesmo indicou ao suspeito para passar a noite, e, ao diligenciar em tal estabelecimento, os policiais encontraram seu nome no livro de registro da pensão, embora esse nome, posteriormente, tenha se provado falso.
Como o caso chamou a atenção por sua hediondez, a imprensa da época divulgou fotografias da mala, sendo a mesma reconhecida pelo vendedor que a comercializou para o suspeito, vindo esse vendedor a procurar a polícia a fim de reconhecer a mala que havia vendido (nesse caso, a realização de um auto de reconhecimento de objeto para formalizar o reconhecimento por parte da testemunha da mala por ele vendida seria importante, devendo ser seguidas as formalidades constantes dos artigos 226 e 227 do Código de Processo Penal). Um funcionário do vendedor que havia vendido a mala ao suspeito levou os policiais até o local da entrega do citado objeto.
Ao chegar ao local da entrega e falar com os proprietários do imóvel onde o suspeito residia, estes confirmaram que, no local, havia um casal de italianos, ainda fornecendo aos policiais o verdadeiro nome do suspeito. Também foi fornecida aos policiais a descrição da esposa da vítima, que se encaixa com a descrição do corpo encontrado na mala, sendo o nome da vítima também descoberto (poderia ter sido realizado um reconhecimento do cadáver por essas testemunhas).
Ao verificar a casa onde a vítima e o suspeito residiam, foram encontrados vestígios de sangue. Atualmente, poderia ter sido realizada a coleta para confirmação de sua natureza (se era realmente sangue humano) e confrontar o mesmo com o DNA do corpo da vítima (BITTAR, 2019, p. p. 111 a 117), o que comprovaria o local onde ocorreu o homicídio ora investigado, e possibilitaria buscar manchas latentes de sangue constante naquele imóvel, ajudando na reconstrução da dinâmica criminal (STUMVOLL et al, 2019, p. p. 86 e 87).
Os proprietários do imóvel ainda indicaram aos policiais o local onde o suspeito poderia ser encontrado. Os policiais permaneceram realizando vigilância, até a chegada do suspeito, que fora identificado e preso por eles.
Na delegacia, o suspeito confessa o crime e apresenta como motivo para o delito uma possível traição da vítima, motivo este que fora rechaçado pela dona do imóvel onde vítima e autor moravam, pois esta afirmou que, na data da suposta traição que motivou o crime, a citada testemunha estava com a vítima em sua casa. Na atualidade, existem técnicas de entrevista e interrogatório que podem auxiliar os policiais a adquirir confissões dos autores de delitos, como a técnica PEACE, desenvolvida na Inglaterra, e que visa à identificação de mentiras por meio da análise do discurso, e se baseia em técnicas de entrevistas cognitivas, técnica esta que não faz uso de métodos confrontativos para se mostrar eficiente (BLANCHET, BITTENCOURT e MELO, 2019, p.p. 148 a 150).
O casal de proprietários do imóvel onde vítima e autor residiam também relatou ter ouvido uma discussão, seguida de um barulho e um silêncio na casa da vítima e do autor, sendo que a vítima não fora mais vista após esse evento, indicando um possível momento da prática do delito em comento.
Uma carta escrita pela vítima para sua sogra (prova documental) indica, como motivo do crime, o fato de o autor tentar dar um golpe financeiro em um conhecido, tendo feito, inclusive, a vítima mentir para esse individuo. Em virtude de a vítima não concordar com o que o autor estava fazendo, discutiram, e o autor, movido pelo calor da discussão, matou-a, aparentando uma motivação passional nesse delito.
Na atualidade, visando a demonstrar os motivos do crime, seria importante a realização de perfil psicossocial da vítima e do autor, com vistas a compreender as características psicológicas destes e esclarecer, de forma mais adequada, o que motivou tal crime (BARCELOS e VIDAL, 2017, p. p. 82 a 90).
Também com vistas a demostrar, de maneira mais clara, a dinâmica do crime, seria possível realizar a reprodução simulada do crime, com a possibilidade de participação do autor para este, na presença dos peritos, informar como se deu a prática delitiva, e essa alegação ser verificada pelo corpo pericial, conferindo um maior esclarecimento da dinâmica delitiva (STUMVOLL et al, 2019, p. p. 51 a 53).
Ante o exposto, podemos concluir que:
1. A investigação fez uso de diversos meios para a comprovação do crime ora em comento e de sua autoria, tais como provas periciais, documentais, testemunhais, análise do local do crime e diligências em busca do autor do crime.
2. A prova técnica, por excelência, utilizada nessa investigação, e disponível na época, foi o exame necroscópico, que constatou a causa mortis e a lesão post mortem da vítima.
3. Na atualidade, poderíamos utilizar alguns exames periciais para esclarecer o citado delito, entre eles, o exame de DNA para constatar a identidade da vítima e o local da prática do crime, perícia perinecroscópica para constatar evidências no local do crime, e realização de reprodução simuladas dos fatos, dentre outras perícias já citadas.
REFERÊNCIAS:
BARCELOS, D.; e VIDAL, L. Homicídios: método de investigação/ técnicas de entrevista e interrogatório. São Paulo: Chiado, 2017.
BLANCHET, L. R. Manual prático de investigação de homicídios. Curitiba: Íthala, 2017.
BLANCHET, L. R.; BITTENCOURT, J. C.; e MELO, F. P. Técnicas de entrevista e interrogatório. Curitiba: Intersabes, 2019.
BITTAR, N. Medicina legal e noções de criminalística. Salvador: Juspodivm, 2019.
HOFFMANN, H et al. Investigação criminal pela polícia judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
MENDRONI, M. B. Curso de investigação criminal. São Paulo: Atlas, 2013.
MORAES, R. F. M.; e JUNIOR, J. P. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: Juspodivm, 2018.
STUMVOLL, V. P et al. Criminalística. Campinas: Millennium, 2019.
ZANOTTI, B. T. et al. Temas atuais de polícia judiciária. Salvador: Juspodivm, 2016.