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A vacina da covid-19 como um mínimo existencial no Brasil pandêmico

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No atual cenário de pandemia, pode-se dizer que o direito à vacinação contra a covid-19 integra o mínimo existencial?

O que é muito difícil é você vencer a injustiça secular

que dilacera o Brasil em dois países distintos:

o país dos privilegiados e o país dos despossuídos.

Ariano Suassuana

O conceito de mínimo existencial é, em linhas gerais, o conjunto de condições materiais indispensáveis à existência humana. Bonavides (2003) explica que o direito ao mínimo existencial corresponde às condições materiais básicas para uma vida digna. É um direito fundamental derivado diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana, que também se manifesta em parte nos direitos fundamentais sociais que estão presentes na Constituição de 1988, dentre eles, saúde, educação, moradia, alimentação, previdência e assistência social etc., estando também presente em alguns direitos individuais, como no acesso à justiça.

Percebe-se o aspecto mutável do mínimo existencial, variando de acordo com o tempo, o espaço e o povo. Um exemplo disso é que a jurisprudência vem reconhecendo prestações ligadas ao mínimo existencial que não estão positivadas na Constituição. O STF, como exemplo, já se valeu do mínimo existencial para proteger o direito de acesso à água no semiárido nordestino.

Na atual sociedade pandêmica, pode-se dizer que a vacina faz parte desse mínimo existencial. Trata-se de uma questão de sobrevivência. Os dados, deste momento, de vacinados contra a covid no Brasil ainda deixam a desejar: apenas pouco menos de 60% da população já tomou a segunda dose da vacina. Isso significa que 40% das pessoas não estão ainda vacinadas. Segundo dados do IBGE, em 2021 ultrapassamos a marca de 213 milhões de habitantes. Imagine-se então que 40% da população equivalem a pouco mais de 85 milhões de pessoas. Essas pessoas poderão vir a morrer de covid, caso não sejam vacinadas ou demorem a conseguir a vacina.

Talvez seja um exagero se dizer que as 85 milhões de pessoas falecessem de covid. Todavia, considerando que o maior genocídio - crime caracterizado pelo sistemático extermínio de uma população ou etnia - da história da humanidade foi o holocausto, com pouco menos de 6 milhões de mortos, mesmo que apenas metade dos 85 milhões de pessoas morressem de covid, teríamos o maior e, talvez, o único genocídio da humanidade que nunca seria ultrapassado na história da civilização humana.   

É importante que se diga que vacinar, ou mesmo proporcionar condições dignas de vida para as pessoas, é um direito fundamental que deve ser atendido pelo Estado. Não se trata, absolutamente, de uma ajuda, bondade, ou benefício concedido de modo paternalista por algum governante ou autoridade. É um direito das pessoas. Um direito básico.

Esta última visão foi claramente enjeitada pela Constituição de 1988, da qual se extrai a garantia do mínimo existencial como direito fundamental. Tal ideia provém não apenas da positivação dos direitos sociais no texto constitucional, como também da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado e da ordem jurídica brasileira. A literatura jurídica nacional é praticamente unânime ao apontar o acolhimento do direito ao mínimo existencial, o mesmo ocorrendo com a nossa jurisprudência. Esta, porém, é relativamente recente, e vem se difundindo a partir da célebre decisão proferida pelo STF em 2004. Trata-se da ADPF 45 MC, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.2004. Cuidava-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada contra o veto presidencial a dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias que garantira recursos financeiros mínimos para a área da saúde.

Apesar do seu reconhecimento normativo, o mínimo existencial não é de fato assegurado a parcelas expressivas da população brasileira, que não desfrutam de acesso efetivo a bens e direitos essenciais para uma vida digna. Legiões de pessoas ainda vivem na mais absoluta miséria, expostas à insegurança alimentar, sem acesso à moradia adequada, sem saneamento básico, saúde e educação de mínima qualidade. À margem das conquistas civilizatórias do Estado Democrático de Direito, ainda existe um Brasil escondido, onde a privação reina e os direitos não são para todos. Essa situação, além de acarretar injusto sofrimento às suas vítimas, gera um comprometimento das capacidades dessas pessoas que vivem à margem do Brasil, sem poderem exercer, de forma plena e consciente, os seus direitos civis e políticos, e muito menos, o seu direito à dignidade.

A prova do nosso progresso não é se aumentamos a abundância dos que têm muito, mas se providenciamos o suficiente para os que têm muito pouco.

Franklin D. Roosevelt

A teoria do mínimo existencial não é isenta de críticas. No Brasil, não têm maior relevo social, político ou jurídico as críticas conservadoras, contrárias à proteção constitucional do mínimo existencial. Entretanto, importante é a objeção proveniente do lado oposto do espectro político, que afirma que a teoria é conservadora e fica aquém da Constituição de 1988 no que concerne à proteção dos direitos sociais.

A crítica afirma que uma ordem constitucional justa deveria aspirar à justiça social, e não se contentar com a garantia do mínimo para aplacar a miséria. Nessa perspectiva, há quem associe o mínimo existencial a uma visão elitista e excludente, própria do neoliberalismo, que busca limitar a atuação do Estado no campo social e preservar a essência das estruturas econômicas do capitalismo. Nesse sentido:

"...fruto secular das sociedades divididas em classes sejam elas escravistas, feudais ou capitalistas a provisão de mínimos sociais, como sinônimo de mínimos de subsistência, sempre fez parte da pauta de regulações desses diferentes modos de produção, assumindo preponderantemente a forma de uma resposta isolada e emergencial aos efeitos da pobreza extrema (PEREIRA, 2014, p. 15)."

Segundo Sarmento (2020, p.209) ao invés de se contentar com migalhas, o jurista comprometido deveria usar as armas da Constituição para transformar o status quo, buscando muito mais do que a simples garantia das condições mínimas de subsistência.

Esse é o primeiro ponto que deve ser esclarecido: o mínimo existencial não pode se limitar às condições necessárias à sobrevivência física. Ele tem de ser mais amplo para abarcar as condições básicas para uma vida digna, abrangendo também o mínimo sociocultural (SARLET, 2015, p. 21-22). Prestações materiais que não se afigurem indispensáveis para a sobrevivência física, mas sejam condições elementares para a vida digna, como, por exemplo, o acesso à educação básica, também devem estar abarcadas.

Por outro lado, é preciso compreender o papel do mínimo existencial na ordem constitucional brasileira. Em primeiro lugar, ela não define as prestações materiais que devem ser asseguradas pelo Estado a cada indivíduo em condição de vulnerabilidade, mas apenas estabelece um piso, abaixo do qual não se pode descer. O legislador tem ampla liberdade para ir além do mínimo existencial, buscando concretizar, pelos mais variados meios, uma realização mais plena da igualdade material.

Ademais, mesmo no plano constitucional, o mínimo existencial não pode ser empregado para justificar genericamente a denegação de prestações materiais previstas na própria Lei Fundamental, mas que nele não se insiram, como, por exemplo, benefícios previdenciários superiores ao salário mínimo, gratuidade das universidades públicas, 13º salário para trabalhadores e servidores públicos etc. O mínimo existencial não permite que o intérprete se converta em uma espécie de censor conservador do poder constituinte, com a faculdade de reduzir a proteção social conferida expressamente pela própria Constituição, para descartar ou negar eficácia a tudo aquilo que não repute tão essencial.

O mínimo existencial desempenha dois papéis muito importantes, e nenhum deles fragiliza a dimensão social da Constituição. O primeiro papel é o de fundamentar pretensões positivas ou negativas que visem a assegurar as condições materiais essenciais para a vida digna e que não estejam abrigadas por outros direitos fundamentais expressamente positivados. O outro papel é o de servir de parâmetro para a ponderação que é travada entre, de um lado, o direito reivindicado e, do outro, os princípios que com ele colidirem. É que os direitos prestacionais, conquanto exigíveis, não são absolutos, configurando, em geral, direitos subjetivos garantidos prima facie. Por envolverem custos, eles dependem da alocação de recursos escassos, e é competência do legislador, também prima facie, a realização das escolhas sobre o que deve ser priorizado.

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Adotadas essas perspectivas, não se pode dizer que o mínimo existencial fragiliza os direitos sociais ou dilua as pretensões emancipatórias da Constituição. Pelo contrário: a categoria fortalece e racionaliza o imperativo ético, constitucionalmente consagrado, de assegurar a todos as condições materiais básicas de vida.

 Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, segundo Aristóteles.

A dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional fundamental, que tem enorme potencial para a proteção da personalidade humana em todas as suas dimensões, inclusive no que diz respeito à garantia do mínimo existencial. Entretanto, o princípio não pode continuar sendo usado como fórmula retórica flácida, maleável de acordo com as preferências do intérprete, nem tampouco como artifício para a imposição de modelos de vida boa às pessoas, ou para a preservação de privilégios e hierarquias entrincheiradas.

Tal princípio, corretamente compreendido e aplicado, converte-se em um poderoso instrumento em favor da inclusão e do respeito a todas as pessoas nas estruturas sociais e nas relações intersubjetivas. Todavia, seria inocente supor que a correta interpretação do princípio constitucional seja, por si só, capaz de equacionar todos os gravíssimos problemas que afetam a dignidade humana no Brasil. Afinal, tais problemas não são apenas jurídicos, pois estão profundamente enraizados em nossa cultura e nas estruturas sociais, econômicas e políticas do país.

Contudo, se o Direito Constitucional não é onipotente, ele tampouco é desprovido de força, inclusive para interferir na cultura e nas estruturas. O seu poder maior não vem da coerção jurídica, mas da capacidade de inspirar os sonhos individuais e coletivos. A dignidade humana é uma ideia poderosa, que fala aos corações e à imaginação moral. Ela pode fazer as pessoas sonharem, e, eventualmente, até marcharem juntas. Eduardo Giannetti  (2016, p. 136-138) destaca que a capacidade de sonho e o desejo de mudar fertilizam o real, expandem as fronteiras do possível e reembaralham as cartas do provável. (...) No universo das relações humanas, o futuro responde à força e a ousadia do nosso querer. O desejo move.

Em algum lugar do futuro, com a dose adequada de idealismo e de determinação política, a dignidade humana se tornará a fonte do tratamento especial e elevado destinado a todos os indivíduos: cada um desfrutando o nível máximo atingível de direitos, respeito e realização pessoal. Todas as pessoas serão nobres. Aqui e agora, todavia, temos um desafio aparentemente mais singelo: construir uma sociedade em que todos sejam tratados como gente. Pode parecer pouco, mas, pelo menos no Brasil, é uma enormidade.


REFERÊNCIAS

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BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

TORRES, Ricardo Lobo. A Jusfundamentabilidade dos Direitos Sociais. Rio de Janeiro, Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, 2003. v.12.

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Sobre os autores
Ana Clara de Melo

Doutora em Letras. Graduação em Direito e Letras. Especialista em Educação em Direitos Humanos, Métodos Adequados de Solução de Conflitos, Gestão Tributária e Empresarial. Professora de Direito Constitucional. Escritora e Pesquisadora. Assessora e Consultora Acadêmica. Advogada. @ana.claradv

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Ana Clara ; SÁ, Bruno Melo. A vacina da covid-19 como um mínimo existencial no Brasil pandêmico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6750, 24 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95451. Acesso em: 21 nov. 2024.

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