Capa da publicação A atuação do Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual como amicus curiae na ADPF 132
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A importância da atuação do Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual como amicus curiae no julgamento da ADPF nº 132

07/06/2022 às 15:50

Resumo:


  • O julgamento da ADPF nº 132 em 2011 reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, garantindo os mesmos direitos e deveres de uma união entre homem e mulher.

  • O Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual (GAI) teve papel decisivo no julgamento, atuando como amicus curiae e apresentando argumentos relevantes para a decisão.

  • A atuação do GAI, com argumentos lapidados e embasados, influenciou o entendimento dos ministros do STF, demonstrando a importância do papel dos amici curiae em discussões jurídicas relevantes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A atuação do amicus curie em discussões no STF não deve ser apenas aceita, mas incentivada. Os argumentos de personagens atuantes em uma causa podem ser muito mais relevantes e qualificados do que os de técnicos da lei.

Com a consequência de abalar as disposições conservadoras do direito de família, no dia 4 de maio 2011, houve julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, ação proposta pelo então Governador do Estado do Rio de Janeiro. A decisão de relatoria do Ministro Ayres Brito efetivou juridicamente o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar e garantiu que houvesse os mesmos direitos e deveres de uma união entre um homem e uma mulher.[1]

O processo todo contou com a participação de um total de quinze amigos da corte que tiveram um papel decisivo na maioria dos votos dos ministros da turma julgadora. Será analisada, em especial, a atuação do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual (GAI), que atuou com grande relevância no julgamento, vez que, possuindo vasta bagagem na luta pela efetivação dos direitos dos homossexuais, soube apresentar de forma incisiva os argumentos mais importantes para o correto deslinde da decisão.

Primeiramente, cabem esclarecimentos acerca do instituto do amicus curiae para que fique facilitado o entendimento de como a interferência do GAI pôde ter ocorrido e qual foi o caminho percorrido até o julgamento.

Significando literalmente amigos da corte, caracteriza-se por ser um terceiro para participar do processo, mas não como parte integrante, para que possa prestar esclarecimentos e auxiliar o tribunal no julgamento do caso, por ter muito conhecimento sobre a matéria em debate. O fito da atuação destes entes é efetivar o pluralismo jurídico e oportunizar a participação social de diversos atores da sociedade.[2]

No ordenamento jurídico brasileiro, o amicus curiae foi admitido pela Lei nº 9.868/99 em seu artigo 29 que alterou o parágrafo 3º do artigo 482 do Código de Processo Civil de 1973. Mais precisamente, na legislação que regulava o julgamento de ADPF (Lei nº 9.882/99) também prevê a possibilidade de manifestação de interessados no processo no parágrafo 2º do artigo 6º.

Nesse sentido, visto que o GAI possuía todas as exigências para a atuação no processo, o advogado responsável, Thiago Bottino do Amaral, protocolou o pedido de participação nos autos da ADPF nº 132 na qualidade de amicus curiae no dia 28 de julho 2008. Na petição, houve a elucidação de todos os atos em prol da comunidade homossexual, com evidente representatividade do grupo na luta pela liberdade de oposição sexual, pela promoção e defesa dos direitos de grupos vulneráveis. Além do requerimento de permissão para apresentação dos memoriais, foi requerido a autorização da realização de sustentação oral na sessão de julgamento.[3]

Já em sede de memoriais, com o intuito de tecer considerações e argumentos que contribuíssem para o total conhecimento e provimento dos pedidos elencados pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, foram apresentadas, principalmente, colocações acerca: a) da violação à dignidade humana, à liberdade e à igualdade; b) violação à segurança jurídica; c) da função contra-majoritária do Poder Judicário no Estado democrático de direito; e d) do direito internacional e supranacional. As questões levantadas na petição esclareceram a visão do grupo de que os princípios fundamentais seriam violados se continuasse havendo a negação de direitos de certos indivíduos por conta de sua orientação e identidade sexual. Conclui-se por repassar ao Supremo Tribunal Federal todo o exposto como uma forma de auxiliar o julgamento, diante da representatividade contida pelo GAI que possui inúmeras ações afirmativas que permeiam o tema. Dentre as inúmeras ações, cabem destaques como produção da campanha contra a Violência Xô Coió " , mobilizando as policias e a mídia (1997/1998); a organização do 1º Seminário Nacional Direitos Humanos e Cidadania Homossexual da Câmara dos Deputados (1999); a assessoria para a criação do Disque Defesa Homossexual da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (1999/2004); Implementação de projeto de capacitação de 4.000 policias militares e civis (1999/2000);  a realização da 2ª Conferência Latino-americana e caribenha de GLT, na UERJ - RJ, sendo fundada a ILGALAC Associação Latino-americana de gays , lésbicas e transgêneros (2000); a participação como um representante na delegação oficial do Brasil do processo de organização e debates sobre a participação brasileira na Conferência Mundial Contra o Racismo e as Intolerâncias Correlatas da ONU na África do Sul, com consequente inclusão e defesa, pelo Governo Federal , do tema entre as propostas do Brasil para este fórum (2000/2001).[4]

A atuação do grupo como amicus curiae no caso sob comento se estendeu em uma sustentação oral, feita pelo seu procurador, Thiago Bottino do Amaral, onde foram reafirmadas as colocações feitas em âmbito de memoriais. O advogado reforçou a importância da função contra-majoritária como uma forma de proteção de minorias, ressaltando que, na omissão do Poder Legislativo, quando ele marginaliza, quando ele exclui, quando ele discrimina pela omissão, há um vício na democracia, o vicio só pode ser sanado pelo Poder Judiciário. Nas últimas colocações colocou que as associações da sociedade civil vieram ao Supremo para se colocarem como vozes de uma minoria que não tem voz no Poder Legislativo, mas que mesmo sem voz, ou com uma voz muito abafada, tem direitos que devem ser protegidos para que se possa dizer que o Brasil é, sim, um Estado Democrático de Direito.[5]

Ainda que grupos que estivessem seguindo a mesma linha de argumentos apresentados pelo GAI, na função de amigo da corte, ressalta-se a relevância do que fora apresentado, visto que até mesmo o Ministro Celso de Mello utilizou em seu voto os pontos levantados em sede dos memorais pelo grupo. Veja-se a parte do voto[6] que o Ministro Celso de Mello se utiliza do auxílio prestado pelo GAI em sede de memoriais:

É evidente que o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade e da liberdade, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito.

É por isso que tenho por inteiramente procedentes as observações que fez, em precisa abordagem do tema, o Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual.

Acerca das abordagens apontadas no voto do Ministro, segue o trecho citado:

O papel desempenhado pelos direitos fundamentais na restrição da soberania popular decorre da limitação imposta pelo princípio do Estado de direito, que não admite a existência de poderes absolutos, nem mesmo o da soberania popular e do fato de que uma dimensão formal de democracia não está habilitada para proteger efetivamente o funcionamento democrático do Estado.

Portanto, da mesma forma que se veda à maioria que faça determinadas escolhas - suprimindo direitos necessários à participação política de determinados cidadãos - é igualmente vedado a essa maioria que deixe de tomar decisões necessárias à efetivação da igualdade entre os indivíduos.

Ao não estabelecer regras jurídicas que regulem a construção de uma vida afetiva em comum pelos casais homossexuais, o Poder Legislativo - representando a maioria da população brasileira - exclui, marginaliza e diminui o papel social dos indivíduos que mantêm relações homoafetivas. Retira-lhes a condição de igualdade necessária para que possa haver igualdade de participação no debate público.

Para salvaguardar os requisitos essenciais à participação dos indivíduos no processo democrático, o Judiciário é mais uma vez chamado a tomar tal posição de vanguarda, garantindo o livre exercício da liberdade e igualdade, atributos da cidadania, e principalmente a dignidade humana. É preciso atuar onde não há certeza e efetividade do sistema nas relações privadas, em prol dessas garantias.

Com efeito, não pode o Estado democrático de direito conviver com o estabelecimento de uma diferença entre pessoas e cidadãos com base em sua sexualidade. Assim como é inconstitucional punir, perseguir ou impedir o acesso dos homossexuais a bens sócio- -culturais e é igualmente inconstitucional excluir essa parcela de cidadãos do direito à segurança em suas relações afetivas.

São irrelevantes, do ponto de vista jurídico, as opiniões morais ou religiosas que condenam as relações homossexuais. Ainda que tais opiniões constituíssem o pensamento hegemônico hoje nos órgãos políticos representativos (...), nem a maioria, nem mesmo a unanimidade dessas opiniões, está acima da Constituição.

Nesse passo, o Poder Judiciário assume sua mais importante função: a de atuar como poder contramajoritário; de proteger as minorias contra imposições dezarrazoadas ou indignas das maiorias. Ao assegurar à parcela minoritária da população o direito de não se submeter à maioria, o Poder Judiciário revela sua verdadeira força no equilíbrio entre os poderes e na função como garante dos direitos fundamentais. (grifos do Ministro Celso de Mello)

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Nota-se, portanto, que a atuação do grupo cumpriu que um amicus curiae se propõe a cumprir quando faz o requerimento de ingresso ao processo: prestar esclarecimentos e auxiliar o tribunal no julgamento do caso, por ter muito conhecimento sobre a matéria em debate.

No caso sob análise, cabe destacar a qualidade dos argumentos postos e que tais argumentos são frutos de um exercício árduo e quase escultural, característicos de grupos/pessoas que lutam rotineiramente em uma causa. Os argumentos foram tão perfeitamente lapidados, que revelam o cerne da discussão e o ponto chave para a decisão ocorrida no deslinde final do julgamento: o total conhecimento e provimento dos pedidos elencados pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, ou seja, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar e, consequentemente, com todos os direitos e deveres contidos em uma união entre um homem e uma mulher.

Cabe trazer um trecho, ainda do voto do Ministro Celso de Mello, que ilustra pontual e corretamente a relevância do que se decidiu naquele julgamento: "Na realidade, Senhor Presidente, o julgamento que hoje se realiza certamente marcará a vida deste País e imprimirá novos rumos à causa da comunidade homossexual".[7]

Por fim, conclui-se que a atuação do amicus curie em discussões no Supremo Tribunal Federal não deve ser apenas aceita, mas incentivada. Os argumentos de personagens atuantes em uma causa podem ser muito mais relevantes e muito mais qualificados do que os de técnicos da lei. Este foi o presente caso, em que um grupo, que lida diariamente com circunstâncias que envolvem o tema debatido, levantou pontos fundamentais e que interferiram certeiramente na interpretação dos julgadores que não vivem sob essa perspectiva.


REFERÊNCIAS

AGU ADCOCACIA-GERAL DA UNIÃO. AGU Explica Amicus Curiae, 2016. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=trz-kW8u31g>. Acesso em: 05 abr. 2021.

BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Brasília: Presidência da República, 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 29 mar. 2021.

BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Brasília: Presidência da República, 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm>. Acesso em: 02 ago. 2020.

BRASIL. Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal. Brasília: Presidência da República, 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 29 mar. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. DJ: 05 maio 2011. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 29 mar. 2021.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MORAES, Raquel; CAMINO, Leoncio. Homoafetividade e direito: um estudo dos argumentos utilizados pelos ministros do STF ao reconhecerem a união homoafetiva no Brasil. Rev. direito GV, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 648-666, Dec.  2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322016000300648&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  07 abr.  2021.

STF, Portal de notícias. Entidades de direitos humanos e homossexuais defendem união homoafetiva. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178757>. Acesso em: 03 abr. 2021.

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. DJ: 05 maio 2011. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: 29 mar. 2021.

[2] AGU ADCOCACIA-GERAL DA UNIÃO. AGU Explica Amicus Curiae, 2016. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=trz-kW8u31g>. Acesso em: 05 abr. 2021.

[3] AMARAL, Thiago Bottino do. in BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. DJ: 05 maio 2011. Nº 54 Petição (110724/2008) - GAI - requer ingresso "amicus curiae".  Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2598238>. Acesso em: 29 mar. 2021.

[4] Id.

[5] STF, Portal de notícias. Entidades de direitos humanos e homossexuais defendem união homoafetiva. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178757>. Acesso em: 03 abr. 2021.

[6] MELLO, Celso de. in BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132-RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. DJ: 05 maio 2011. p. 240. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2598238>. Acesso em: 29 mar. 2021.

[7] Id. p. 227.

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Sobre o autor
João Eduardo Andrade Pereira

Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2023). Pós-graduado em "Processos didáticos-pedagógicos para cursos na modalidade a distância" pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (2023). Foi professor substituto, na condição de estagiário supervisionado em docência, de Lógica Jurídica, de Hermenêutica Jurídica, de Ética Geral e Jurídica, Direito Internacional Privado, Processo Civil, Prática Jurídica e de Temas Emergentes do Direito Processual de 2021 a 2023 na UNESP-Franca. Foi estagiário concursado junto à Advocacia Geral da União (Procuradoria Seccional de Franca) e no escritório Borges, Cunha e Vaz Sociedade de Advogados. Foi membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão "Constituição e Cidadania" (NEPECC). Advogado. Tem experiência na área de Direito, com ênfase no desenvolvimento de pesquisa acadêmica na área da Hermenêutica Constitucional e atuação prática profissional na área do Direito Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, João Eduardo Andrade. A importância da atuação do Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual como amicus curiae no julgamento da ADPF nº 132. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6915, 7 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98364. Acesso em: 21 dez. 2024.

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