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Lei nº12.403/11: mudanças no Código de Processo Penal na visão de um delegado de polícia

Lei nº12.403/11: mudanças no Código de Processo Penal na visão de um delegado de polícia

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Sem delongas introdutórias, e sem críticas iniciais à nova lei (as mesmas serão tecidas com os comentários a seguir), passemos à sua análise, confrontando a sistemática anterior com a atual.


1.Sistemática da "Prisão em Flagrante":

A Lei 12.403/11 não alterou as situações de flagrante, bem como as classificações daí decorrentes (flagrante próprio, impróprio, presumido, diferido, etc), previstas no art. 302 do CPP. Desta forma, somente naquelas hipóteses é que se permite afirmar que existe a situação flagrancial, situação esta, no primeiríssimo momento da persecução penal, de análise exclusiva da autoridade de polícia judiciária, o delegado de polícia. Assim, apresentado o conduzido ao delegado de polícia, fica ele incumbido de verificar se está presente ou não uma daquelas hipóteses que permitem concluir que o conduzido está em flagrante delito, para que, assim, possa deliberar pela elaboração do auto de prisão em flagrante (ou termo circunstanciado, se infração de menor potencial ofensivo – cuja tipificação inicial deve ser atribuição exclusiva do delegado de polícia), ou pela "liberação" do conduzido, após ser ouvido ou não, para, na sequência, tomar as providências que entender cabíveis (instauração de inquérito policial por exemplo).

Insta destacar que a Lei em comento não alterou as disposições do art. 304 do Código de Processo Penal, que representa, para a autoridade de polícia judiciária, sua discricionariedade regrada quanto à elaboração ou não do auto de prisão em flagrante, de forma que, decidindo pela autuação em flagrante do conduzido (pois uma vez presente o estado flagrancial, por ser fato típico e antijurídico, e não ser o caso da lavratura de termo circunstanciado), deverá a autoridade policial proceder à oitiva das testemunhas (que continua sendo no mínimo duas), da vítima (se possível e conveniente naquele momento) e realizar o interrogatório do conduzido, observando os preceitos constitucionais e legais de tal ato. Por fim, deverá observar os demais requisitos formais exigidos pela lei – elaboração e entrega ao preso da nota de culpa, comunicação da prisão ao Juiz de Direito, comunicação da prisão a algum familiar, comunicação da prisão ao advogado indicado pelo preso ou, caso não tenha advogado, comunicação da prisão à Defensoria Pública, etc). A nova lei determina a comunicação da prisão também ao membro do Ministério Público (mais uma via do auto deverá ser impressa – desnecessariamente, na medida em que o Juiz, ao ter vista do auto de prisão em flagrante, deve dar vista ao Ministério Público).

Até então, nenhuma novidade de relevo foi introduzida pela lei, mesmo porque, repita-se, não foram alteradas as hipóteses de flagrante, nem mesmo as disposições relativas à formalização do auto de prisão em flagrante e demais peças que o acompanham.

Contudo, formalizado o auto de prisão em flagrante, algumas modificações foram introduzidas pela Lei 12.403. A primeira delas (primeira, nestas modestas linhas), seria quanto à concessão ou não, pela autoridade policial, da liberdade provisória mediante a prestação de fiança.

Antes da edição da Lei, a autoridade policial poderia arbitrar fiança exclusivamente aos crimes punidos com detenção. Tratava-se de um rol de crimes muito exíguo, na medida em que a maioria dos crimes punidos com detenção já estavam "absorvidos" pela Lei dos Juizados Especiais Criminais; ou seja, em grande parte das vezes, os crimes punidos com detenção, ainda que presente a situação flagrancial, estavam (e ainda estão) sujeitos à "mera" lavratura de Termo Circunstanciado; e, lavrado o "TC", a liberação do "autor dos fatos" (expressão usada pela Lei 9.099/95) é de rigor (alguns autores inclusive classificam tal "liberação" como uma espécie de "Liberdade Provisória sem fiança obrigatória", para as infrações de menor potencial ofensivo).

Doravante, com a modificação do art. 322 do Código de Processo Penal, a autoridade policial (e, por favor, leia-se "delegado de polícia", obrigatoriamente, pois não se pode admitir o emprego de tal expressão em sentido amplo, para englobar qualquer agente policial, civil ou militar) poderá (ou deverá) conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos. Vislumbra-se, assim, um aumento nas atribuições da autoridade policial, posto que, agora, fica com a incumbência de concessão de liberdade provisória com fiança para um rol de crimes muito maior do que antes das mudanças.

Em resumo, a "liberação" do conduzido (preso em flagrante) pelo delegado de polícia pode se dar:

a)Pessoa conduzida mas que, segundo a autoridade policial, não existe situação de flagrante (art. 302, CPP) – quando então tomará as medidas adequadas ao caso (oitiva do conduzido, oitiva dos policiais que o conduziram, instauração de inquérito policial, etc);

b)Pessoa conduzida, em suposta situação flagrancial, mas o fato é atípico: como o delegado de polícia, obrigatoriamente bacharel em direito, faz a tipificação inicial da conduta que lhe foi apresentada, pode entender que o fato é atípico, e, desta forma, deixar de autuá-lo em flagrante. Vale ressaltar sempre a já mencionada discricionariedade regrada, na medida em que em quase todas as tipificações há uma dose de subjetivismo por parte do operador do direito;

c)Pessoa conduzida, em suposta situação flagrancial, o fato é típico, porém, não é antijurídico: trata-se de questão controvertida na doutrina, mas nunca o foi na prática. É indubitável que o delegado de polícia tem atribuição para reconhecer as excludentes de ilicitude diante de uma situação que lhe é apresentada no plantão da delegacia. Delegado não é "carimbador maluco", sem contar que quando se fala em "prisão em flagrante" está se falando de "flagrante delito" e uma conduta só pode ser tida como delituosa se for, no mínimo, típica e antijurídica (com o devido respeito aos adeptos da corrente tripartite); se se prende alguém em flagrante pela prática de um crime, esta conduta deve ser contrária ao direito, de forma que, se estiver presente, de maneira clara e evidente, alguma excludente de ilicitude, deverá a autoridade policial tomar as providências devidas (oitiva de todos, instauração de inquérito), mas jamais prender em flagrante o conduzido, sob pena de afronta aos princípios basilares do direito; o delegado, neste caso, não está absolvendo ninguém (e, é claro, nem poderia), mas está apenas decidindo pela não lavratura do auto de prisão em flagrante diante de fortes indícios de ocorrência de excludente de ilicitude;

d)Pessoa conduzida, em situação flagrancial, pela prática de infração de menor potencial ofensivo: hipótese em que a autoridade policial deverá determinar a lavratura de Termo Circunstanciado, conforme estabelece a Lei 9.099/95 (não autua em flagrante, e elabora o TC, ressalvadas as raríssimas exceções);

e)Pessoa conduzida, em situação flagrancial, pela prática de crime que tenha pena máxima de até quatro anos: aí sim, uma inovação da lei em comento, quando a autoridade policial deverá lavrar o auto de prisão em flagrante, com todas as formalidades devidas, para, na sequencia, verificando presentes os requisitos autorizadores para a concessão da fiança, arbitrá-la, concedendo-se ao beneficiado a liberdade provisória com fiança que, com as mudanças na lei, passou a abranger mais crimes passíveis de concessão de fiança pela autoridade policial.


Dever ou poder?

Em que pese a previsão do art. 322, no sentido de afirmar que a autoridade policial poderá arbitrar fiança, muito provavelmente se firmará na doutrina e na jurisprudência a orientação de que, presentes os requisitos, a autoridade policial deverá arbitrar a fiança.

Já ouvi de um colega, ainda quando havia a previsão de fiança pela autoridade policial penas aos crimes punidos com detenção que nem esta liberalidade devia existir, para que aquele autuado em flagrante, pelo menos por algumas horas, ou dias, amargasse a condição de estar preso. Trata-se de posicionamento muito radical e que, no atual estágio dos direitos individuais, soa por demais rigorosa. Tanto assim que a nova lei codificou entendimento já há muito apregoado, no sentido de que a prisão deve ser reservada para crimes extremamente graves.

Vale destacar que a lei introduziu no Código situações onde não se arbitrará fiança, nem pelo delegado, nem pelo juiz, bem como manteve algumas situações que, antes da modificação, já existiam e obstaculizavam a concessão de fiança, quais sejam:

Não será concedida fiança:

a)nos crimes de racismo;

b) nos crimes hediondos e equiparados (tráfico, tortura e terrorismo);

c) para aqueles que hajam quebrado a fiança ou infringido as "obrigações do afiançado";

d) em caso de prisão civil ou militar (por óbvio);

E) e, a hipótese mais importante, porque genérica, quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Por primeiro, ressalte-se que, tirante as hipóteses acima, e eventual previsão na legislação extravagante, qualquer crime passa a ser afiançável. A regra, agora, é o da afiançabilidade. Antes, crimes com pena mínima superior a 02 anos eram inafiançáveis; hoje, com a nova lei, não mais existe tal previsão: desde que não haja específica previsão legal, o crime é afiançável (se a pena máxima for igual ou inferior a quatro anos, a fiança é arbitrada pela autoridade policial; acima disto, pelo juiz).

Ademais, a não concessão de fiança naquelas situações onde se façam presentes os requisitos autorizadores da prisão preventiva já estava prevista no Código de Processo Penal (art. 324, inciso IV, na antiga redação). Contudo, o que mudou foram os novos requisitos autorizadores de decretação de prisão preventiva, o que, indiretamente, acarreta mudanças quanto à concessão ou não de fiança. Assim, para continuarmos a análise do instituto da liberdade provisória com fiança, há de se fazer um desdobramento: quais são os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva?


PRISÃO PREVENTIVA - MODIFICAÇÕES

Como se consignou acima, a nova lei modificou as hipóteses em que a prisão preventiva deve ser decretada. Já de plano é necessário ressaltar: trata-se de medida excepcional (e assim já o era, conforme doutrina e jurisprudência pátrias) e somente será concedida quando não houver outra medida cautelar eficaz (a lei trouxe novas hipóteses de cautelares – ex.: monitoramente eletrônico - o que será visto mais abaixo). Tal abordagem ("prisão preventiva como última hipótese") fica bem clara com a leitura do §4º do novo art. 282 do CPP, que dispõe que, na hipótese de descumprimento das medidas cautelares, o juiz deverá substituir a medida não cumprida por outra, impor outra medida cumulativamente, e, somente em último caso, decretar a prisão preventiva.

Além disto, a nova lei restringiu sobremaneira as hipóteses de decretação da prisão preventiva. Tais hipóteses resultariam de uma combinação dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal, com suas novas redações.

O atual art. 312 traz requisitos genéricos para a decretação da prisão preventiva, praticamente repetindo a redação anterior: a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal (são as chamadas hipóteses da prisão preventiva, segundo alguns autores), desde que haja prova da materialidade e indícios de autoria (ainda segundo alguns autores, seriam os pressupostos da prisão preventiva). Até ai, nenhuma novidade pois, como já se disse, foi praticamente mantida a redação anterior.

A novidade introduzida pela Lei é a atual redação do art. 313 (chamado pelos autores de condições de admissibilidade da prisão preventiva), e a modificação é altamente significativa:

a)Relativamente à hipótese de decretação da preventiva em face da reincidência do indiciado/réu em crime doloso, não houve qualquer mudança, pois apenas foi corrigido artigo ao qual se faz remissão ao "período depurativo da reincidência" (passados 5 anos do cumprimento da pena, o condenado "resgata" a sua primariedade – art. 64, I, do Código Penal – e assim não poderá mais ser taxado de "reincidente" a ponto de ser decretada a prisão preventiva, pelo menos não com base neste motivo);

b)Relativamente à decretação da preventiva diante da prática de crimes contra os grupos ou pessoas vulneráveis (violência contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa deficiente) para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. É a prisão preventiva sendo usada como medida coercitiva ao cumprimento das medidas cautelares introduzidas pela nova lei – ou o réu cumpre a medida cautelar, ou então será decretada a sua prisão preventiva. Vale ressaltar que a lei ampliou o rol de pessoas vulneráveis, na medida em que a redação anterior previa tal hipótese de preventiva apenas em se tratando de mulher vítima de violência doméstica; neste caso, pouco importa se a pessoa é reincidente, e também pouco importa a quantidade de pena prevista para tal crime; basta que o suspeito descumpra as medidas protetivas para que seja decretada a sua prisão preventiva (obviamente, deverão ser devidamente demonstrado os indícios de autoria, a prova da materialidade e a necessidade da prisão – fumus comissi delicti e o periculum libertatis);

c)Quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa – hipótese diferenciada de decretação, na medida em que a prisão preventiva serve apenas para a qualificação do suspeito, posto que, nos termos do parágrafo único do art. 313 do CPP, assim que identificado, será imediatamente colocado em liberdade (salvo se se verificar presente qualquer outra das hipóteses permissivas de decretação da preventiva);

d)Na hipótese de descumprimento das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 312, parágrafo único, CPP). Mas uma vez o legislador usa a prisão preventiva como medida coercitiva para forçar ao cumprimento das medidas cautelares. O legislador já fez a ressalva de que a prisão preventiva é medida excepcional, somente sendo decretado caso não seja cabível ou eficaz as outras medidas cautelares. Assim, conforme já previsto no art. 282, §4º, CPP, pode o juiz, em último caso (e isso depois de já tentar substituir a medida cautelar anteriormente imposta, e, e ainda sendo necessário, impor mais uma cautelar, em cumulação) decretar a prisão preventiva;

e)E, enfim, a maior modificação: somente se admite a prisão preventiva para os crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 anos!!! Trata-se, sem dúvida, da principal mudança operada pela nova lei relativamente à disciplina da prisão preventiva. Antes, era cabível a prisão preventiva (ao menos legalmente, em que pese as críticas doutrinárias e os posicionamentos jurisprudenciais) para qualquer crime doloso, punido com reclusão, independentemente do quantum da pena (era um critério com base na qualidade da pena – reclusão - e não quantitativo – qualquer tempo de pena). Também previa, apesar de ser inaplicável na prática, em virtude da Lei 9.099/95 e o seu conceito de infração de menor potencial ofensivo, a prisão preventiva para crimes punidos até mesmo com detenção, em hipóteses excepcionais (mas, repito, sem incidência prática).

Quanto a esta última mudança, vale a pena traçar algumas linhas. Doravante, conforme se verifica acima, somente é possível a decretação da prisão preventiva para crimes dolosos com penas máximas superiores a 4 anos. Antes da reforma da lei, já havia tal posicionamento (não pacífico) na jurisprudência. O principal argumento era (e continua sendo) de que penas inferiores a quatro anos estão sujeitas à substituição por pena restritiva de direitos (arts. 43 e seguintes do Código Penal) e, assim, concluem os defensores de tal corrente, nada justifica a manutenção de uma prisão processual quando, ao final e na pior das hipóteses (a condenação), não ficará o réu sujeito a pena privativa de liberdade.

O raciocínio é sedutor, mas parte da (errada) premissa de que toda pena igual ou inferior a 4 anos deverá ser substituída por pena restritiva de direitos; sabemos, contudo, que não é bem assim, pois o inciso III do art. 44 do Código Penal prevê a análise de requisitos subjetivos para a operação da substituição ("a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente"). Ou seja, mesmo que presentes os requisitos objetivos para a substituição (condenação de até quatro anos em crimes dolosos, não-reincidência, etc), pode o juiz deixar de operar a substituição, fundamentadamente, quando verificar que tal medida não é suficiente para garantir o (esquecido) caráter retributivo. Portanto, pode haver casos (e de fato os há) que a pessoa será condenada a uma pena privativa de liberdade inferior a quatro anos e não fará jus à substituição (em que pese primário), pelo não preenchimento dos requisitos subjetivos, desde que o juiz, obviamente, fundamente tal decisão.

Tal hipótese de não concessão da substituição não foi considerada pelo legislador que modificou os requisitos da prisão preventiva, por certo com base na já mencionada premissa de que condenações inferiores a quatro anos resultarão em penas restritivas de direito e, assim, não justifica a imposição de uma prisão processual.

Entretanto, por ter partido de uma premissa errada, andou mal o legislador neste ponto ao restringir a prisão preventiva apenas aos crimes dolosos com pena máxima superior a quatro anos, sem qualquer hipótese de exceção (como aquela prevista na substituição por pena restritiva de direitos), o que infelizmente impossibilita a decretação da prisão preventiva para crimes que são graves, mas que não atingem o teto de quatro anos.

Vitória do Direito Penal Mínimo, em que pese ocorrida num erro de premissa (este subscritor não é partidário de radicalismos e, por este motivo, não apoia nem o Direito Penal Mínimo, nem o Direito Penal Máximo, mas sim, e por que não, o "Direito Penal Médio", aquele calcado no bom senso, já há muito esquecido pelo legislador e, infelizmente, pelos tribunais pátrios).

Poderá se argumentar que, fora dos casos acima, a decretação da prisão preventiva estaria baseada no poder geral de cautela do juiz. Assim, admitir-se-ia a decretação da prisão com base no art. 312, isoladamente, sem a sua combinação com o art. 313 (bastando, assim, o fumus boni iuris e o periculum libertatis). Tal argumento, contudo, não deve prosperar, pois é cediço que, em matéria de direitos e garantias individuais, as hipóteses de exceção (e a prisão processual é uma exceção à regra, que é a liberdade) devem ser interpretadas restritivamente, não se permitindo dilações.


PRISÃO PREVENTIVA NO CURSO DO INQUÉRITO

Por fim, deixa claro o legislador que a prisão preventiva é cabível tanto na fase pré-processual do inquérito policial, como também durante o processo. Assim, fica derrubada a tese defendida por alguns juristas que defendiam ser incabível a prisão preventiva durante a fase policial, sob o argumento de que, por exigir indícios de autoria e prova da materialidade, somente após terminar o inquérito policial é que tais elementos estariam presentes e, portanto, não poderia ser decretada a prisão preventiva durante o inquérito policial. Sempre contestamos tal orientação, mesmo porque existem várias hipóteses em que os indícios de autoria e a prova da materialidade já se fazem presentes, e mesmo assim o inquérito policial não pode ainda ser relatado e encerrado, às vezes por questões formais (ex.: o inquérito policial aguarda o retorno de uma carta precatória, ou a juntada de um laudo ou de um ofício que ainda não aportaram na delegacia, etc).

A nova lei deixa expressa a possibilidade de prisão preventiva durante o inquérito (art. 311) e, por incrível que pareça, tal previsão já existia, mas aqueles autores contrários à decretação da prisão preventiva no curso de inquérito defendiam que tal previsão teria sido revogada pela Lei 7.960/89 (a lei da prisão temporária), o que é de todo inaceitável. Aduziam, ademais, que a prisão preventiva exige, para a sua decretação, demonstração dos indícios de autoria e de prova da materialidade, de forma que tais indícios e prova somente estariam demonstrados ao fim do inquérito policial e, portanto, não se poderia decretá-la durante o inquérito.

Com a devida vênia, entendemos equivocada tal abordagem, posto que já presidimos diversos inquéritos policiais nos quais estavam amplamente demonstrados tais requisitos da prisão preventiva, mas o inquérito policial ainda não estava encerrado, por conta de questões "burocráticas" (por exemplo, uma precatória que ainda não retornou, um laudo secundário ainda não juntado aos autos, etc.).


PRISÃO PREVENTIVA PELO NÃO CUMPRIMENTO DE OUTRA MEDIDA CAUTELAR

Como já foi mencionado acima, existe a hipótese de decretação da prisão preventiva caso o indiciado/réu descumpra as obrigações decorrentes de outras medidas cautelares.

De fato, quer o legislador que a prisão provisória seja a última das opções do juiz como medida garantidora do processo e da sociedade. Tanto assim que prevê diversas medidas cautelares antes só previstas na legislação extravagante (v.g., a Lei Maria da Penha). Assim, em vez de determinar a prisão preventiva de uma pessoa que não tenha residência fixa, ou emprego fixo (ou seja, haja o iminente risco de fuga), pode o juiz determinar o monitoramento eletrônico desta pessoa, evitando (ou minorando) a possibilidade de fuga e, consequentemente, garantindo-se a aplicação da lei penal.

Não pretendemos, nesta poucas linhas, analisar as medidas cautelares introduzidas no CPP pela Lei 12.403, mas uma questão deve ser trazida à baila: já que a prisão preventiva deve ser a última hipótese, acredita o legislador que as medidas cautelares sejam eficazes para garantir a ordem pública, a ordem econômica, a aplicação da lei penal e a instrução criminal.

Mas, deve-se perguntar: quem vai fiscalizá-las? A lei não prevê. A lei simplesmente diz que, na hipótese de descumprimento das medidas cautelares, o juiz pode decretar a medida cautelar mais severa (a prisão preventiva), de ofício ou atendendo ao requerimento do promotor ou do assistente de acusação (omitindo a "representação" pela autoridade policial). Mas nada fala a respeito de agentes públicos que, de fato, fiscalizem tais medidas.

E, já vimos este filme antes. Já há anos presenciamos o declínio da confiabilidade na Justiça Criminal. Parte desta incredulidade na Justiça Criminal advém dos inúmeros benefícios com os quais são agraciados os criminosos e suspeitos. Em nome do esvaziamento das cadeias (que estão superlotadas e o Poder Público não quer gastar dinheiro, construindo mais), criam-se benefícios os mais diversos: progressão de regimes, livramento condicional, regime aberto no malfadado "regime albergue-domiciliar", prisão domiciliar, etc... sem um agente público sequer que fiscalize o seu cumprimento.

Não há órgão que fiscalize a regularidade do seu cumprimento (como, por exemplo, os "agentes de condicional" que vemos nos filmes norte-americanos). Apenas quando tais "confianças" são quebradas, é que se verifica o erro de tê-las concedido. Daí, e somente daí, expedem-se novos mandados de captura, e joga-se para a Polícia o dever de cumpri-los. Mas, então, já é tarde.

Ressalte-se que o novo artigo que menciona que o juiz poderá decretar a prisão preventiva diante do descumprimento das medidas cautelares excluiu a figura da representação pela autoridade policial. Ou seja, ou foi um lapso do legislador, ou, de fato, não se quis a atuação da autoridade policial (o que contribuirá ainda mais para a impunidade). Preferimos acreditar na primeira hipótese. Mas que esta missão (de fiscalização) não foi entregue aos órgãos policiais, isto ficou evidentemente demonstrado (o que é bom, pois seria mais uma tarefa incumbida aos policiais, que já não dão conta de cumprir as suas missões constitucionais de segurança pública, em razão do reduzido efetivo).


RETOMANDO O TEMA: FIANÇA

Assim, retornando-se à indagação que se fez acima, qual seja, se o delegado de polícia pode deixar de arbitrar fiança, a resposta é de que, se o preso em flagrante preencher os requisitos para a mesma, não poderá o delegado de polícia negar a fiança, por se tratar de um direito subjetivo do preso (posição mais aceita atualmente); salvo aquelas hipóteses previstas nos atuais artigos 323 e 324 (e somente estas, posto que a interpretação deve ser restritiva), o preso em flagrante fará jus ao arbitramento da fiança pela autoridade policial.

Questiona-se se a autoridade policial poderia deixar de arbitrar fiança sob o argumento de que, naquele caso concreto, estariam presentes os requisitos autorizadores da prisão preventiva. Entendemos que não. Conforme já analisado acima, as hipóteses de decretação de prisão preventiva foram restringidas com a nova lei – em especial, quando prevê o cabimento da preventiva apenas para crimes com pena máxima superiores a 4 anos; ora, o delegado de polícia somente pode arbitrar fiança para os crimes com pena máxima abaixo disso, ou seja, todos os crimes passíveis de fiança pela autoridade policial não estão sujeitos à decretação da prisão preventiva, de forma que sob este argumento, a autoridade policial não pode negar a fiança.

Ademais, como a prisão preventiva é decretada pelo juiz, somente ele, e não a autoridade policial, é que poderá verificar se estão presentes ou não os seus requisitos, a fim de se posicionar pelo não arbitramento da fiança, com fundamento neste inciso IV, do art. 324, do Código de Processo Penal.

Aproveitando-se a oportunidade, em que estamos analisando as hipóteses de não concessão de fiança, outra novidade a se destacar é que a lei não contempla mais a hipótese dantes prevista no (revogado) inciso V, do art. 323, que proibia o arbitramento da fiança na hipótese em que, preso em flagrante por crime punido com reclusão, houvesse, naquele caso concreto, "clamor público" ou "que tenha sido cometido com violência contra a pessoa ou grave ameaça", que era uma forma de analisar a situação a cada caso, deixando de se arbitrar a fiança em casos que se verificava que a manutenção da prisão seria a melhor hipótese, pois, por mais incrível que pareça, havia (e vai continuar a haver) situações em que a manutenção da custódia cautelar era mais garantidora ao preso do que a sua soltura.

Este subscritor, na qualidade de delegado de polícia, e escalado em plantão de delegacia, já passou por situações em que o autuado foi mantido preso, sem concessão de fiança pois, diante do clamor público, a soltura do preso em flagrante levaria ao seu linchamento em praça pública. Também já passamos por situação em que o preso, ainda quando era conduzido para a Delegacia de Polícia após brigar com seu vizinho, proferia ameaças contra o agredido, dizendo que "quando solto, iria ‘terminar o serviço’". Fácil deduzir que, se esta pessoa fosse colocada em liberdade (lesão corporal, ainda que grave, é afiançável), e no calor do nervosismo, poderia de fato cumprir aquilo que prometeu, matando o seu desafeto. Tais hipóteses (que não são exemplificativas,mas sim reais, e fazem parte do dia-a-dia de uma delegacia de polícia), doravante, não permitirão a negativa de concessão de fiança pela autoridade policial, pois a nova lei retirou, ao nosso ver, qualquer análise subjetiva da autoridade policial diante do caso concreto.

As críticas no sentido de que "análises subjetivas representam insegurança para o sistema" partem de quem se posiciona sempre desconfiando da boa-fé e do bom senso da autoridade policial ou judicial. Se soubessem o quanto incomodam os presos indevidamente mantidos nas delegacias, por certo compreenderiam que, se a autoridade policial deixou de arbitrar fiança, mantendo preso o conduzido em flagrante, é porque se trata de um caso seriíssimo e excepcional, pois não quer a autoridade policial que sequer mais um preso ingresse na cadeia, de tão lotada que ela se encontra. Ademais, eventuais abusos seriam (e o são) severamente punidos – a autoridade coatora está identificada e é um agente público, o que se teme?

Ao legislador, e aos defensores de um sistema absolutamente positivo e sem permissões do "bom senso" (o qual, já se disse, há muito esquecido pelo legislador) falta a experiência dos balcões de delegacia e dos fóruns, para que pudessem constatar que uma certa margem de discricionariedade deve ser reservada a tais autoridades, porque não lidam com questões matemáticas,mas sim com pessoas, pessoas que passam pelos seus piores momentos.

Mas, retornando à análise da lei, conclui-se que as hipóteses proibitivas do art. 324, a nosso ver, fogem às atribuições dos delegados de polícia e demandam análise da autoridade judicial. Assim, salvo as hipóteses proibitivas do artigo 323, não poderá a autoridade policial deixar de arbitrar fiança, sob pena de infringir dispositivo constitucional (art. 5º, inciso LXVI), e, ainda, incorrer em crime de Abuso de Autoridade (art. 4º, alínea e, da Lei 4.898/65).

Ressalte-se que, nas raríssimas hipóteses em que a autoridade policial deixar de arbitrar fiança, quando podia fazê-lo (crimes com pena máxima inferior a quatro anos), tal recusa poderá ser reformada pela autoridade judicial, consoante disposto no art. 335 do CPP. Ocorrendo uma hipótese proibitiva à concessão de fiança pela autoridade policial, tal proibição poderá ser revista pela autoridade judicial, conforme disposto no art. 335, que dispõe que "recusando ou retardando a autoridade policial a concessão de fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 horas".

O artigo em tela disciplina a hipótese do juiz suprir a recusa (nas hipóteses já analisadas) e o retardamento da concessão de fiança pela autoridade policial. E a partir de que momento a autoridade policial estaria retardando a concessão? Entendemos que a concessão de liberdade provisória mediante fiança (e o arbitramento desta) deve se dar no próprio auto de prisão em flagrante, na parte em que o delegado delibera a respeito do crime, da situação flagrancial e, agora (obrigatoriamente), a respeito da concessão de fiança. Isto porque, se assim não for, não se vislumbra outro momento, na medida em que ao autoridade policial deverá comunicar a prisão em 24 horas; comunicada a prisão sem que tenha sido concedida a fiança (e desde que cabível), o Juiz suprirá tal falta, interpretando tal omissão como uma recusa.

Entendemos que, da mesma forma que o juiz pode conceder a fiança na hipótese de retardo ou recusa da autoridade policial, também poderá reformular os valores da fiança, ou, ainda, afastar a fiança e conceder a liberdade provisória sem fiança. "Quem pode o mais, pode o menos".

Por fim, quanto aos valores da fiança, nota-se um expressivo aumento nos seus patamares, na medida em que a nova lei prevê valores de até R$500.000,00 (quinhentos mil reais), para situações gravíssimas. E, por conta da excessiva liberalidade da lei, não dando margem à discricionariedade do juiz ou do delegado, já é de se esperar a imposição de fianças obstativas, ao arrepio da lei. Ou seja, diante de evidências de que aquela pessoa, por critérios específicos e subjetivos, não faria jus à fiança, mas mesmo assim fica tal autoridade obrigado a concedê-la, concedê-la-á em valores exorbitantes, com nítido caráter obstativo da liberdade provisória, o que fará a pessoa a se socorrer das vias judiciais (se a fiança obstativa for arbitrada pelo delegado de polícia), ou ainda das instâncias superiores (caso tenha sido arbitrada pelo juiz de primeiro grau).

Com o aumento dos patamares dos valores das fianças tenta-se resgatar o verdadeiro sentido do instituto da liberdade provisória com fiança, ou seja, deve o beneficiado ficar atrelado ao processo, temeroso em cumprir as obrigações do afiançado (comparecimento sempre que intimado, não se ausentar da comarca sem comunicação às autoridades, caso se mude, que informe o novo endereço, apresentação á prisão, caso venha a ser condenado). Os patamares da fiança até antes da mudança operada pela lei era simplesmente ridículo, de forma que o afiançada não se sentia vinculado ao processo: o máximo que poderia acontecer, caso descumprisse as obrigações a que se submeteu, seria a perda de poucos reais, posto que os valores eram muito baixos. Agora, com tais modificações, espera-se que os valores da fiança imponham respeito aos deveres do afiançado.


COMUNICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE AO JUIZ E AS CONSEQUÊNCIAS

Lavrado o auto de prisão em flagrante, posto que indiciariamente demonstrada a tipicidade da conduta e a não-incidência de excludentes de ilicitude, e independentemente de ter sido ou não arbitrada a fiança pela autoridade policial, deverá haver a imediata comunicação ao Juiz competente (bem como ao Ministério Público – novidade da Lei – e ao defensor público, caso o autuado manifeste que não tem condições de constituir um defensor técnico), no prazo de 24 horas.

Até então, nenhuma novidade, pois tal regra de comunicação em 24 horas já estava prevista em nosso ordenamento. O que mudou foram as ações da autoridade judiciária diante do recebimento do auto de prisão em flagrante, o que pode se dar das seguintes formas:

a)O Juiz relaxa o auto de prisão em flagrante, diante de vício ou ilegalidade da prisão, colocando o réu em liberdade. Ou seja, por vários motivos (excesso de prazo, inexistência de situação flagrancial, inexistência de fato típico, incidência de excludente de ilicitude, inobservância das garantias contitucionais), deve o Juiz relaxar o flagrante (como delegado, faço a comparação do relaxamento da prisão em flagrante com a inépcia da petição inicial: para o delegado de polícia, o relaxamento de uma prisão em flagrante que conduziu é motivo de preocupação, pois em algum momento descuidou das formalidades que devem constar de todo auto de prisão em flagrante delito). Nada impede que, em situações extremas, a autoridade judiciária relaxe o flagrante e, na mesma decisão de relaxamento, decrete a prisão preventiva, o que já poderia acontecer anteriormente às modificações ora analisadas, desde que, obviamente, façam-se presentes os requisitos da prisão preventiva. É que, ao contrário da prisão temporária, a prisão preventiva pode ser decretada de ofício pelo Juiz. Por fim, nada impede que, mesmo relaxando a prisão em flagrante, o juiz imponha as medidas cautelares (diversa da prisão preventiva), na medida em que não há vedação para tanto, e o próprio artigo 282 (nova redação) permite tal interpretação (o juiz poderá até mesmo aplicar a medida cautelar de ofício, nos termos de referido artigo);

b)O Juiz "homologa" o auto de prisão em flagrante, dando-o como "formalmente em ordem". Sempre questionamos a expressão "homologação" ou "ratificação" do auto de prisão em flagrante pelo Juiz. É que tanto a "homologação" como a "ratificação", originárias do Direito Administrativo, dão a conotação de superioridade (da autoridade judiciária) e submissão (do delegado de polícia). De fato, tanto a homologação quanto a ratificação, dizem os Administrativistas, são oriundas do Poder Hierárquico, exigindo-se, no emprego de tais institutos, relação de subordinação da autoridade que emana o ato, para aquela que o ratifica ou homologa. De se ressaltar que em nenhum momento a lei processual penal utiliza tais expressões, mesmo porque são absolutamente inadequadas. Superadas as críticas ao uso de tais terminologias, no momento em que o Juiz recebe o auto de prisão em flagrante, cuida de analisar se foram observados os seus requisitos. Deve ser lembrado que a prisão em flagrante é hipótese excepcional de prisão sem ordem judicial, de forma que o rigoroso cumprimento de suas formas e exigência é medida que se impõe, sob pena de relaxamento. Ausentes tais requisitos, deverá o Juiz relaxar a prisão, conforme já foi considerado no tópico acima. Se a prisão (ou melhor, o auto de prisão) em flagrante estiver formalmente em ordem, não sendo o caso de relaxamento, é a partir daí que a Lei trouxe modificações, as quais serão analisadas a seguir:

- Prisão formalmente em ordem (não foi relaxado o flagrante) :

i. O Juiz converte a prisão em flagrante em prisão preventiva: outra grande novidade da Lei. Anteriormente às atuais modificações, na hipótese de flagrante formalmente em ordem, era com este título (flagrante) que a pessoa era mantida presa, se o caso, durante todo o processo. Bastava o Juiz "homologar" a prisão, que, a partir de então, passava a ser a autoridade coatora (inclusive para fins de "habeas corpus") e assumia a responsabilidade pela manutenção da prisão em flagrante. Agora, não é mais assim. Recebido o auto de prisão em flagrante, vencida a etapa da análise formal do mesmo e não o relaxando, deverá a autoridade judiciária convolar a prisão em flagrante em prisão preventiva se, e somente se, estiverem presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva. Neste ponto, vale trazer abaixo trecho de artigo muito interessante:

"Analiso esta parte da reforma (o legislador atuou aqui de forma antagônica ao que vislumbrou na fiança) como um enfraquecimento da atuação do delegado de polícia, operador do direito que é. O poder legislativo agiu desconfiado com atuação da polícia judiciária. Deixou a manutenção da prisão sob responsabilidade única e exclusivamente do JUIZ DE DIREITO".

ANDRADE, Mateus Oliveira de. A recente reforma no Código de Processo Penal e seus reflexos na atividade dos operadores do direito criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2877, 18 maio 2011. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/19132. Acesso em: 18 maio 2011.

Com a devida vênia ao colega, ouso discordar. É que tais exigências para a manutenção da prisão em flagrante já vinham, de uma maneira ou de outra, sendo observadas pelas autoridades judiciárias, diante de vários julgados que determinavam que o despacho de manutenção da prisão em flagrante deveria ser motivado, e motivado justamente nas hipóteses em que se permitira a decretação da preventiva. Ou seja, ainda que indiretamente, já se vinha exigindo da autoridade judiciária que recebeu o auto de prisão a devida motivação, onde deveria constar não só o fumus boni iuris (que, aliás, é indissociável do flagrante que não foi relaxado, pela sua própria natureza de "certeza visual do crime"), mas também e principalmente em razão da necessidade da manutenção da prisão (periculum), o que se fazia (e vai continuar sendo feito) com base nas hipóteses do art. 312 do CPP.

Por fim, vale trazer a baila um posicionamento ouvido de um colega, delegado de polícia, e também analisando a presente lei, no sentido de que, agora, seria prudente que a autoridade policial, no momento de autuação em flagrante, autuasse o suspeito, e, num único momento, instaurasse o inquérito policial e, neste mesmo ato, já o relatasse, posto que somente assim o juiz poderia converter a prisão em flagrante em prisão preventiva. Ousamos discordar.

É que tal entendimento deriva daquele já criticado anteriormente, no sentido de que a prisão preventiva só poderia ser decretada ao término do inquérito policial. Assim, o colega, preocupado com tal posicionamento, defendeu esta idéia, de se instaurar o inquérito policial e imediatamente concluí-lo, tudo dentro do prazo de comunicação ao Juiz (24 horas), pois somente assim poderia a autoridade judiciária decretar a prisão preventiva; entretanto, a própria lei prevê a decretação da preventiva no curso do inquérito policial, de forma que, podemos concluir, a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva não precisa de anterior conclusão do inquérito policial, pois pode ser decretada no curso deste.

Reduzir o inquérito policial às diligências do auto de prisão em flagrante, e relatá-lo em 24 horas, seria tornar mais ineficaz do que já é, e reduziria ainda mais o já ridículo prazo de 10 dias previsto no art. 10 do Código de Processo Penal.

ii. Ausentes os requisitos para decretação de prisão preventiva, torna-se impositiva a concessão de Liberdade Provisória, com ou sem fiança. Desta forma, há que se falar em Liberdade Provisória Obrigatória, na medida em que, ausente o periculum, a necessidade de manter-se a pessoa presa, passa a ser direito subjetivo do preso a sua imediata soltura. Trata-se de aspecto da lei que vem recebendo massivas críticas populares, pelo seu aspecto liberatório. Porém, deve-se reconhecer que as críticas vêm ocorrendo apenas porque se tem dado visibilidade (na mídia) a tal aspecto, posto que já há muito vêm os juízes decidindo neste sentido (de que faz-se encessária a demonstração da necessidade - periculum - para que seja mantida a prisão em flagrante. A hipótese, portanto, não é novidade. A bem da verdade, o que mudou radicalmente foram as hipóteses de possibilidade de se decretar uma prisão preventiva, conforme já foi analisado acima, e isto sim trará reflexos imediatos quando da análise do auto de prisão em flagrante, e acarretará a soltura do preso em flagrante (e este aumento das hipóteses de soltura é que, sim, será objeto das críticas populares). Também convém ressaltar que, concedendo a Liberdade Provisória, com ou sem fiança, nada impede que o Juiz decreta as medidas cautelares do artigo 282 do Código de Processo Penal, sendo até mesmo recomendável tal imposição, pois seria mais uma forma de controle (em que pese as observações já lançadas acima, no sentido de que não há fiscalizadores de tais medidas).

Importante ressaltar, mais uma vez, que a imposição da prisão preventiva (quer na "conversão" da prisão em flagrante em prisão preventiva – "preventiva-conversão" -, quer na sua decretação nos casos em que a lei admite – "preventiva-decretação", quer na hipótese de descumprimento de medidas cautelares anteriormente aplicadas – "preventiva-descumprimento") é medida excepcional, e deve ser analisada sempre em caráter de subsidiariedade às outras medidas cautelares, ou seja, se o Juiz entender que a aplicação ou a cumulação de medidas cautelares já for suficientemente necessária, deixará de decretar a prisão preventiva, colocando o preso em liberdade.


CONCLUSÃO

Vozes já se levantam em favor da lei, e tantas outras em seu desfavor, conforme se verifica abaixo, apenas a título de exemplo:

Posicionamento em favor da lei:

"A prisão preventiva passou a ser excepcionalíssima (réu primário só pode ser preso se a pena do crime for superior a quatro anos). Cadeia, para os que são presumidos inocentes, só em último caso. Por que isso? Porque os juízes andaram abusando: 44% da população prisional não tem condenação definitiva. Muita gente que não oferece nenhum perigo está recolhida indevidamente nos presídios-jaula do país."

GOMES, Luiz Flávio. Cadeia só para casos muito graves. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2898, 8 jun. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19289>. Acesso em: 9 jun. 2011.

Posicionamento contrário à lei:

"Em outras palavras, a prisão estará praticamente inviabilizada no país, já que se exige a aplicação, pelo juiz, de um total de nove alternativas antes dela, restringindo-a sensivelmente. O legislador resolveu "resolver". O crime econômico e financeiro, em quase toda a sua extensão, ficou de fora. Aos olhos do legislador, o crime econômico não seria grave. Seria correta a concretização de um garantismo que nem o jurista e filósofo italiano Luigi Ferrajoli seria capaz de idealizar? Seria o direito penal do amigo? Por outro lado, o Congresso manteve a prisão em condições especiais para autoridades e para os detentores de diploma de curso superior. Temeu excesso de poder - preocupação, aliás, que não se observa para os que não detenham a benesse processual."

Fausto M. De Sanctis; 03/05/2011 - http://advivo.com.br/blog/luisnassif/de-sanctis-e-o-codigo-de-processo-penal

A preocupação está no ar. Se é fato que a prisão cautelar não deve servir ao caráter retributivo da pena, o que é correto, posto que não é pena, não podemos nos afastar da realidade social, de que a sociedade espera e reclama respostas imediatas diante de casos graves. Não há como a sociedade entender que um homicida, um estuprador ou até mesmo um autor plurireincidente de crimes patrimoniais se apresente na Unidade Policial, confesse o crime e saia pela porta da frente (aliás, o instituto da apresentação espontânea, em que pese não mais previsto, continua sendo motivo impeditivo para a lavratura do auto de prisão em flagrante). Tal situação, entre diversas outras, é motivo de galhofa entre os envolvidos no mundo criminoso, e fato gerador de desprestígio para a polícia e para a justiça.

Se fosse apenas isso (ridicularização do sistema criminal como um todo), não haveria qualquer problema (como policial, estamos acostumados a engolir muitos "sapos" e este não seria o primeiro e nem o último); mas a realidade é que tal descrédito serve de estímulo ao criminoso, ao passo em que reforça a descrença no sistema, e estimula a prática criminosa, gerando um círculo vicioso incontrolável.

Aprendemos que os juízes devem ser homens de seu tempo. E que devem ser pacificadores sociais, substituindo-se às querelas privadas e tomando para si o poder-dever de aplicar o "castigo" – o que serve de "conforto" à vítima e a conforma (afinal, foi feita a Justiça). Levamos muitos anos para chegarmos a este ponto de nosso evolucionismo criminal. Quando os "pacificadores sociais" deixam de cumprir o seu dever (por "culpa" da Lei, ou não), começa-se novamente a pensar na vingança privada, o que, obviamente, representa um retrocesso (e não um progresso, como apregoam os defensores do Direito Penal Mínimo).

Nos plantões das delegacias, já ouvimos de vítimas ou parentes de vítimas: "já que a justiça não faz nada, nós vamos fazer". A vingança privada ganha novo fôlego. Se o sistema criminal se afastar das realidades sob o pretexto de torná-lo mais humano, distanciando-se das exigências sociais, graves resultados serão percebidos, como já o vem sendo. A sociedade pretenderá retomar para ela o direito de julgar, condenar e aplicar "a pena" – o que também alimenta o já mencionado círculo vicioso.

No livro "O Homem X", escrito pelo jornalista Bruno Paes Manso (Editora Record, 2005), o autor constata tal realidade, de resgate da vingança privada. O jornalista faz o estudo dos homicídios e seus autores, na cidade de São Paulo; em trechos do livro, deixa evidente que um dos fatores que contribuem para o aumento da criminalidade (em especial, dos homicídios) é a falta de resposta pelo sistema criminal. Vale a pena trazer à colação trecho de interessante obra:

"A ajuda do judiciário ou da polícia tende a ser descartada. Nos bairros tradicionalmente violentos, a violência ganhou aspectos de problema privado, que interessa apenas aos envolvidos no conflito, sem a intromissão das autoridades públicas – mesmo porque tais autoridades, principalmente os policiais militares (...) também usam e abusam da violência para tentar se fazer respeitar, assim como os homicidas (...). Este apelo constante às soluções privadas caracteriza o comportamento de parte dos moradores dos bairros mais violentos."

Ressalte-se que o mesmo autor, em um outro capítulo, no qual entrevista policiais militares que se encontram presos por homicídios, "justifica" a ação de tais policiais em razão da "ineficácia" do sistema criminal como um todo. Ou seja, além de estimular a "vingança privada", a falta de resposta do sistema criminal estaria estimulando a criação de "justiças paralelas" nas próprias instituições estatais.

No mínimo, é preocupante.

Como já foi mencionado anteriormente, não se pretendia, neste ensaio, análises mais aprofundadas, mas apenas alguns pontos que consideramos como "mudanças radicais". E só. A prudência nos recomenda que aguardemos os julgados e a abordagem a ser dada pelos juízes e pelos tribunais, antes de um maior alarde (apesar que, no presente caso, a previsão é pessimista). Mais uma vez, esperemos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Cristiano Augusto Quintas dos. Lei nº12.403/11: mudanças no Código de Processo Penal na visão de um delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2946, 26 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19640. Acesso em: 25 abr. 2024.