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Combinação de leis incriminadoras: uma análise (crítica) doutrinária e jurisprudencial

Combinação de leis incriminadoras: uma análise (crítica) doutrinária e jurisprudencial

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Cometido determinado crime em relação ao qual a pena cominada é de reclusão de 2 a 5 anos, acaba sendo posteriormente editada lei que altera a reprimenda para reclusão de 1 a 6 anos. Nesse caso, como determinar a lei mais favorável?

Sumário: 1. Introdução – 2. Dos posicionamentos doutrinários historicamente lançados em torno do tema – 3. Da singularidade da principiologia e hermenêutica penais – 3.1. A celeuma da proporcionalidade pro reo e pro societate. (In)existência de conflito entre um interesse público (de punir) e interesse privado no manejo de provas ilícitas – 3.2. A hermenêutica penal aplicada à problemática da combinação de leis. 4. Casuística: o §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2008 e o caput do art. 12 da Lei nº 6.368/76 – 5. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O julgamento do Recurso Extraordinário 596152 – 6. Considerações Finais.


1. INTRODUÇÃO

As controvérsias afetas ao estudo da lei penal no tempo sempre ocuparam espaço substancial nos embates acadêmicos.

Na história recente, todavia, tornaram-se imperiosas reflexões mais elaboradas a respeito do tema, uma vez que, em tempos de inflação legislativa, é cada vez mais comum o enfrentamento da temática pelos intérpretes do Direito Penal.

Nesse passo, é importante rememorar que o princípio da legalidade é o critério geral/norteador da validade da lei penal no tempo, eis que é a garantia/limitação central (e histórica) ao direito de punir. Já o critério específico de validade da lei penal no tempo é definido pela retroatividade da lei penal mais favorável / irretroatividade da lei penal maléfica, aplicável em delitos, penas e medidas de segurança.

Revela-se, assim, inequívoca a constatação de que, sobrevindo lei mais benigna, ressalvadas, apenas e tão-somente, as hipóteses de ultratividade da lei penal[1], deve seu conteúdo retroagir, a fim de alcançar os fatos anteriores à sua vigência.

A Constituição da República contém norma específica sobre o tema, sinalizando a regra, qual seja, a não retroatividade da lei penal, e sua exceção, a retroatividade, desde que para beneficiar o réu, assim editada:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Não é outra, aliás, a determinação do Código Penal, expressa no parágrafo único de seu art. 2º, in verbis:

A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

A doutrina, ao comentar o aludido dispositivo, lista diversas situações em que a lei penal poderá ser mais benéfica ao réu. Sucede que, como bem observa o professor Cláudio Brandão, “se por vezes pode ser evidente o benefício da lei nova (como no caso de uma redução na pena), pode também não estar claro se a retroatividade da lei, de fato, beneficia o agente”[2].

Essa dificuldade encontra sua expressão maior quando a aplicação da lei penal mais favorável se depara com diploma posterior que, embora contenha dispositivo benéfico, não possa ser, em seu todo unitário, apontado como a lex mitior.

A problemática em questão é ordinariamente exemplificada pelos doutrinadores na situação em que, cometido determinado crime em relação ao qual a pena cominada é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, acaba sendo posteriormente editada lei que altera a reprimenda para reclusão de 1 (um) a 6 (seis) anos. Nesse caso, como determinar a lei mais favorável?

Indene de dúvidas, o mais favorável seria a combinação de leis, surgindo nova previsão da sanção penal (lex tertia), desta feita, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. Entrementes, é de longa data controvérsia envolvendo o instituto sub examine, objeto de intenso debate entre professores da mais nomeada, a exemplo de Nelson Hungria, Heleno Fragoso, Guilherme de Souza Nucci, Francisco de Assis Toledo, Paulo José da Costa Junior, Cláudio Brandão, Cezar Roberto Bittencourt e Juarez Cirino dos Santos.

Exsurge, desso modo, o objeto do vertente estudo, que pretende delinear os diversos argumentos em derredor da matéria, bem como a evolução do tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal, permeando a discussão com critérios de eqüidade e razoabilidade, a fim de culminar em um raciocínio condizente com os valores estampados na Constituição da República.


2. DOS POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS HISTORICAMENTE LANÇADOS EM TORNO DO TEMA.

A doutrina clássica, capitaneada pelo saudoso Nelson Hungria, consolidou entendimento, seguido de perto por nossos Tribunais, no sentido da impossibilidade da combinação de duas normas para se extrair uma terceira mais benéfica.

Cinge-se o raciocínio ao princípio republicano da separação dos poderes, tendo em vista que, ao reconhecer a lex tertia, estaria o Judiciário usurpando a função legislativa. A propósito, a lição de Hungria[3]:

Cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, de outro modo, estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo.

Heleno Fragoso[4] afirma, peremptoriamente, que “em nenhum caso será possível tomar de uma e de outra lei as disposições que mais beneficiam o réu, aplicando ambas parcialmente”.

Paulo José da Costa Junior[5], por sua vez, verbera que são se poderia admitir “combinar elementos da lei ulterior com elementos da lei anterior, criando uma nova lei, que não seria nem a ab-rogada, nem a nova”.

Para não deixar de citar professores da nova escola de penalistas, temos que Guilherme de Souza Nucci[6] igualmente rechaça a possibilidade de combinação de leis. Afirma o professor paulistano: “Em nosso entendimento, contrário que somos à combinação de leis penais, pois o juiz não é legislador, depende do caso concreto para sabermos se é viável a aplicação da lei nova ou a mantença da pena, conforme os critérios da lei anterior”.

Tal inteligência, não se olvide, repercute em recentes julgados, sendo possível inclusive afirmar que é majoritária nos tribunais estaduais e no Superior Tribunal de Justiça, como será devidamente destacado no momento oportuno.

Francisco de Assis Toledo[7], sob outro vértice, ao se filiar à 2ª corrente, leciona, com a percuciência que lhe peculiar, que:

“... em matéria de direito transitório, não se pode estabelecer dogmas rígidos como esse da proibição da combinação de leis. Nessa área, a realidade é muito mais rica do que pode imaginar a nossa "vã filosofia"(...) parece-nos que uma questão de direito transitório - saber que normas devem prevalecer para regular determinado fato, quando várias apresentam-se como de aplicação possível - só pode ser convenientemente resolvida com a aplicação dos princípios de hermenêutica, sem exclusão de qualquer deles. E se, no caso concreto, a necessidade de prevalência de certos princípios superiores (...) conduzir à combinação de leis, não se deve temer este resultado desde que juridicamente valioso. Estamos pois de acordo com os que profligam, como regra geral, a alquimia de preceitos de leis sucessivas, quando umas se destinam a substituir as outras.

Impende consignar, outrossim, que o professor paranaense Juarez Cirino dos Santos, trazendo o raciocínio esposado pelo ilustre Zaffaroni, admite a combinação de leis incriminadoras ao argumento de que “a expressão de 'qualquer modo' (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal) não conhece exceções[8].

Frederico Marques[9], também partidário desta última corrente, reforça a tese com a seguinte inteligência:

Dizer que o Juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções constitucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obediência a princípios de equidade consagrados pela própria Constituição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente legítima

No mesmo sentido são os ensinamentos do emérito professor Cezar Roberto Bittencourt, segundo o qual, igualmente na esteira do professor Francisco Marques, aponta que “se é permitido escolher o `todo´ para garantir tratamento mais favorável ao réu, nada impede que se possa selecinar parte do todo e parte de outro, para atender a uma regra constitucional que deve estar acima de pruridos de lógica formal[10].

O Direito Comparado, malgrado haja discordâncias, inclina-se no sentido da admissibilidade da conjugação de leis incriminadoras, visando a atender, com a intensidade requerida, os princípios do tempus regit actum e da retroatividade da lei penal benéfica, como se pode extrair das lições do professor alemão Günther Jakobs[11], in verbis:

La determinación de la ley mas favorable ha de llevarse a cabo por separado para cada clase de reacción y para cada fase de la determinación, de modo que puede haber que aplicar, en función de cada reacción penal o de la fase de cômputo em cuestión, distintas leyes como em cada caso más favorables. En el supuesto del ejemplo, habría que medir la pena en el marco de la comminación penal de la ley vigente em el momento del hecho (en esta medida, es más favorable la ley antigua), pero sin tener em cuenta la reincidencia (en esta medida, es más favorable la ley nueva).

Vislumbra-se, assim, como já observado na seção introdutória desse estudo, que o tema da combinação de leis é, há muito, objeto de intensa controvérsia. Entrementes, em que pese posicionamentos de doutrinadores incontestes em sentido contrário, bem como da maioria da jurisprudência, somos pela admissibilidade do instituto em questão. Os argumentos a embasar tal raciocínio serão demonstrados a seguir.


3. DA SINGULARIDADE DA PRINCIPIOLOGIA E HERMENÊUTICA PENAIS

Como consabido, as regras de direito penal e processual penal recebem, com rara justeza, tratamento singular da doutrina, uma vez que são os ramos do direito que lidam com os bens mais valiosos da pessoa humana.

Sem rodeios iniciais, cumpre salientar que a simplicidade da ensinamento suso esposado diz muito mais do que aparenta transmitir à primeira leitura.

Deveras, em se tratando das ciências penais, deve-se partir da premissa de que, como já se teve a oportunidade de assinalar, historicamente, sua finalidade evolui no sentido de “limitar o poder punitivo, não de expandi-lo”[12].

Assim, as regras de hermenêutica, bem como a própria construção principiológica denotam que o objeto, o foco, dos institutos relacionados ao direito penal e processual penal, devem, todos eles, sem exceção, relacionar-se com a maximização de suas garantias.

A fim de ilustrar essa singularidade da hermenêutica penal, é mister destacar as soluções e argumentos lançados em torno do princípio da proporcionalidade e suas vertentes pro reo e pro societate, notamente no que tange ao tema das provas ilícitas.

Revela-se oportuno o mencionado destaque, eis que os argumentos lançados sobre o problema refletem os mesmos (pré)conceitos discutidos no tema objeto deste estudo.


3.1 A CELEUMA DA PROPORCIONALIDADE PRO REO E PRO SOCIETATE. (IN)EXISTÊNCIA DE SUPREMACIA ENTRE UM INTERESSE PÚBLICO (DE PUNIR) E O INTERESSE PRIVADO (DO RÉU) NO MANEJO DE PROVAS ILÍCITAS.

É consenso hoje, na doutrina e jurisprudência, à luz do princípio da proporcionalidade, a possibilidade de se excepcionar a vedação da utilização da prova ilícita no processo penal, a priori afastada em absoluto pela norma estampada no inciso LVI do art. 5º da Constituição da República, para acolhê-la em hipóteses em que aplicada no intuito de evitar que o acusado seja injustamente prejudicado ou ainda evitando a condenação de um inocente.

Nesse esteio, cite-se, por todos, o professor Renato Brasileiro de Lima, acolhendo a chamada proporcionalidade pro reo[13]:

A rigor, doutrina e jurisprudência têm admitido a possibilidade de utilização de prova ilícita no processo quando ela for produzida em benefício do acusado. E isso por conta do princípio da proporcionalidade. Entende-se que o direito de defesa (CF, art. 5º, inc. LV) e o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5º, inc. LVII) devem preponderar no confronto com o direito de punir

Merece transcrição, ainda, a Súmula 50 das mesas de Processo Penal dirigidas por Ada Pellegrini Grinover, e vinculadas ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: “Podem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa.”

Prevalece, entrementes, que não se pode admitir o raciocínio contrário, isto é, a utilização do princípio da proporcionalidade para justificar a valoração da prova ilícita no intuito de sustentar condenação a acusado (proporcionalidade pro societate).

Não se olvida, aqui, o posicionamento de parte da doutrina, capitaneada pelo professor Fernando Capez, o qual, embora admita seja a questão da adoção da proporcionalidade pro societate mais delicada, argumenta:

A prova, se imprescindível, deve ser aceita e admitida, a despeito de ilícita, por adoção do princípio da proporcionalidade, que deve ser empregada pro reo ou pro societate[14].

O professor da UERJ, José Carlos Barbosa Moreira, segue o mesmo raciocínio, para ele a aplicação do princípio da proporcionalidade também autoriza a utilização da prova ilícita em favor da sociedade, como, por exemplo, nas hipóteses de criminalidade organizada, quando esta é superior às Polícias e ao Ministério Público em atenção ao princípio da igualdade. Vejamos:

Todavia, se a defesa - à diferença da acusação - fica isenta do veto à utilização de provas ilegalmente obtidas, não será essa disparidade de tratamento incompatível com o princípio, também de nível constitucional, da igualdade das partes? Quiçá se responda que, bem vistas as coisas, é sempre mais cômoda a posição da acusação, porque os órgãos de repressão penal dispõem de maiores e melhores recursos que o réu. Em tal perspectiva, ao favorecer a atuação da defesa no campo probatório, não obstante posta em xeque a igualdade formal, se estará tratando de restabelecer entre as partes a igualdade substancial. O raciocínio é hábil e, em condições normais, dificilmente se contestará a premissa da superioridade de armas da acusação. Pode suceder, no entanto, que ela deixe de refletir a realidade em situações de expansão e fortalecimento da criminalidade organizada, como tantas que enfrentam as sociedades contemporâneas. É fora de dúvida que atualmente, no Brasil, certos traficantes de drogas estão muito mais bem armados que a polícia e, provavelmente, não lhes será mais difícil que a ela, nem lhes suscitará maiores escrúpulos, munir-se de provas por meios ilegais. Exemplo óbvio é o da coação de testemunhas nas zonas controladas pelo narcotráfico: nem passa pela cabeça de ninguém a hipótese de que algum morador da área declare à polícia, ou em juízo, algo diferente do que lhe houver ordenado o "poderoso chefão" local. [15].

O posicionamento dos respeitados professores Fernando Capez e José Carlos Barbosa Moreira reflete discussão que, em verdade, é seu pressuposto, qual seja, a existência, ou não, de conflito entre um interesse público (de punir) - representado no trecho destacado pela pretensão da sociedade em impedir o “o fortalecimento da criminalidade organizada” - e o interesse privado - o direito do réu em ver afastada a prova ilícita.

Esse interesse público, lido, nesse contexto, como interesse público de punir, assinala que as ciências criminais devem privilegiá-lo, em detrimento dos direitos individuais, que consistem no interesse oposto, ou seja, a proteção e garantia às liberdades do cidadão, aqui representada pela vedação à prova ilícita em detrimento do acusado.

É nesse sentido, de primazia do “bem comum” em vista de “pseudodireitos individuais”, a expressão fascista presente na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal vigente (Decreto-lei nº 3.689/1941). Vejamos:

Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum (...) No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de mal avisado favorecimento legal as criminosos

Sucede que tal raciocínio não se coaduna com o Direito Penal moderno. Não há falar-se em supremacia do interesse público em detrimento do interesse privado. Tal, em verdade, é a lição dos administrativistas nas primeiras linhas de seus compêndios. Trata-se, aqui, do Direito Penal, no qual a ênfase sempre estará, ao menos deveria estar, na defesa do cidadão indiciado/acusado em face do jus puniendi estatal.

Nessa senda, é de rara relevância a transcrição dos ensinamentos do brilhante professor Aury Lopes Jr. no sentido de que, “em matéria penal, todos os interesses em jogo – principalmente os do réu – superam em muito a esfera do `privado´, situando-se na dimensão de direitos e garantias fundamentais (portanto, `público´, se preferirem)[16]”.

Falar-se-ia, destarte, em duas leituras do que se entende por interesse público: o (verdadeiro) interesse público, o interesse público ideal, que consiste no anseio da sociedade em ver as garantias constitucionais preservadas a todo custo, na linha da lição do professor Aury, e o mencionado interesse público de punir, representado pela vontade de vingança social face ao agente delituoso refletida desde 1941 em nosso ordenamento por via do Código de Processo Penal fascista.

A expressão “interesse público”, destarte, em nosso sentir, tratando-se da matéria penal, só pode ser admitida se interpretada conforme a realidade constitucional, no sentido de que representa o interesse do público em ver respeitadas, total e de forma irrestrita, as garantias do indiciado/acusado.

Desse modo, nem mesmo a falacia da supremacia do interesse público (de punir) e da busca do “bem comum”, poderia infirmar a interpretação absoluta das normais penais em favor do mais débil na relação jurídica, o acusado.

Nesse passo, registre-se que o interesse em se preservar as garantias, protegendo o cidadão dos inúmeros riscos do processo penal é (ou deveria ser) de toda a sociedade, já que, todos, sem exceção (ao menos em tese) são susceptíveis de figurar como acusados no processo penal, sendo interesse da coletividade que as garantias sejam, sempre, observadas.

Esta a razão pela qual a grande maioria da jurisprudência e da doutrina não vem admitindo a chamada proporcionalidade pro societate, o que termina por ratificar o posicionamento ora esposado. Isto é, a hermenêutica penal é singular, restringindo interpretações que vão de encontro às garantias constitucionais.

Nesse esteio, é importante deixar registrado, uma vez mais, os ensinamentos do professor Aury Lopes Junior, que afasta, peremptoriamente, a hipótese da proporcionalidade pro societate, acolhendo a crítica em torno do binômio interesse público (de punir) e interesse privado:

O perigo dessa teoria é imenso, na medida em que o próprio conceito de proporcionalidade é constantemente manipulado e serve a qualquer senhor. Basta ver a quantidade imensa de decisões e até de juristas que ainda operam no reducionismo binário do interesse público x interesse privado, para justificar a restrição de direitos fundamentais (e, no caso, até a condenação) a partir da “prevalência” do interesse público... (...) Em suma, no processo penal, há que se compreender o contéudo de sua instrumentalidade, recusar tais construções.[17]


3.2 A HERMENÊUTICA PENAL APLICADA À PROBLEMÁTICA DA COMBINAÇÃO DE LEIS.

No esteio do raciocínio esposado até o momento, não se pode olvidar, com renovada menção às palavras do professor Aury Lopes, que “o sistema penal (material e processual) não pode ser objeto de uma análise estritamente jurídica”[18]. Vale dizer, não é possível contentar-se com argumentações derivadas de uma lógica formal, portanto, estanques, frias, do ordenamento penal, tal qual a vedação à criação da lex tertia, sob a tese de que não pode o Judiciário usurpar a função legislativa.

Como dito acima, a mesma disputa travada no que tange à admissibilidade da utilização da prova ilícita sob o princípio da proporcionalidade permeia a questão da combinação de leis. Aqui, não pode ser outro a conclusão senão a mesma à que se chega naquele ponto.

Deveras, a hermenêutica penal deve prevalecer sobre uma lógica formal para reconhecer a possibilidade de combinação de leis nos seus aspectos favoráveis. Até porque o mesmo ordenamento que não prevê expressamente a hipótese de combinação de leis, atesta, em sede constitucional, no art. 5º, XL que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”

O Código Penal, por sua vez, em seu art. 2º, parágrafo único, traz a previsão de que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

Assim, é o próprio ordenamento vigente, como afirma o ilustre professor Juarez Cirino dos Santos, que não só autoriza, como determina, ao se valer da expressão “de qualquer modo”, a combinação de leis já que não se conheceria exceção alguma no que tange à retroatividade mais benéfica.

Não resta dúvidas, destarte, que não se admite a leitura do sistema penal flexibilizando garantias constitucionalmente asseguradas, seja em face da singularidade da hermenêutica penal que deve, sempre, buscar a maximização dos aspectos de proteção do indivíduo, seja em vista da própria formatação do ordenamento que contém dispositivos que autorizam a aplicação da combinação de leis.

O festejado professor Luis Roberto Barroso traz à lume o princípio constitucional da interpretação efetiva, alertando que “deve ser dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista que levem as normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias de cada caso”[19].

Com efeito, ao invés de se admitir interpretações que limitam as garantias individuais, como a admissão da prova ilícita pro societate, e, notadamente, a vedação da combinação de leis, deve-se consolidar a índole constitucional do Direito Penal brasileito, sob pena de subverter a ordem jurídica e natural das coisas. No ponto, imperiosa a reprodução da advertência feita, novamente, por Luis Roberto Barroso, desta feita acompanhado da professora Ana Paula Barcellos[20]:

(...) deve-se ter em linha de conta os antecedentes de País, onde as exceções viram regra desde sua criação (vejam-se, por exemplo, as medidas provisórias). À vista da trajetória inconsistente do respeito aos direitos individuais e da ausência de um sentimento constitucional consolidado, não é nem conveniente, nem oportuno, sequer `de lege ferenda`, enveredar por flexibilizações arriscadas

Certo é, destarte, que a singularidade da principiologia e hermenêutica penais demandam do jurista muito mais do que a mera manipulação de dispositivos e a reprodução de ensinamentos consolidados em período pré-constituição de 1988.

Deve-se ter, sem sombra de dúvidas, humildade e arrojo científico bastante para ultrapassar barreiras e romper com (pre)conceitos, tudo com vistas a conferir efetividade a linhas de raciocínio amparadas, integralmente, com o norte constitucional.


4. CASUÍSTICA: O §4º DO ART. 33 DA LEI Nº 11.343/2008 E O CAPUT DO ART. 12 DA LEI 6.368/76

Os argumentos colacionados até o momento guardam relevância, como registrado linhas acima, quando do exame das circunstâncias em diploma posterior que, embora contenha dispositivo benéfico, não possa ser, em seu todo unitário, apontado como a lex mitior, o que tem sido debatido constantemente desde que entrou em vigor a Lei nº 11.343/06.

Deveras, a partir da edição da lei de drogas o debate sobre a combinação de leis encontrou raro espaço em nossos Tribunais.

A explicação deriva da constatação de que o §4º do art. 33 da nova lei de drogas trouxe causa de diminuição de pena que não havia sido positivada em nosso ordenamento até então, atribuindo à nova lei de drogas o caráter de lei parcialmente favorável. Afinal, em que pese a nova causa de diminuição de pena, a Lei nº 11.343/2006 elevou a pena mínima de 3 (três) anos do delito previsto no art. 12 da Lei nº 6.368/76 para 5 (cinco) anos, além de ter cominado pena de multa muito superior àquela antes prevista. Vejamos:

Lei nº 6.368/76

Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Lei nº 11.343/2003

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

(...)

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Delineia-se, assim, a discussão jurisprudencial a respeito da aplicabilidade ou não da causa de diminuição da nova lei de drogas àqueles que praticaram o delito de tráfico de drogas quando ainda vigente da antiga lei de tóxicos.

Pois bem, como alinhavado na introdução do estudo, o posicionamento prevalente nos Tribunais Estaduais, bem como no Superior Tribunal de Justiça, vem sendo no sentido de que não é possível a aplicação isolada da causa de diminuição da nova lei de drogas, uma vez que se estaria em face de lex tertia e da usurpação pelo Judiciário da função legislativa. Acolhe-se, portanto, os argumentos da doutrina clássica, capitaneada pelo mestre Nelson Hungria. A propósito:

PROCESSO PENAL - ENTREVISTA RESERVADA COM O DEFENSOR ANTES DO INTERROGATÓRIO - OPORTUNIDADE NÃO CONCEDIDA - NULIDADE - INOCORRÊNCIA - AUSÊNCIA DE PROTESTO OPORTUNO - PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO - TRÁFICO DE DROGAS - CRIME CONFIGURADO - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - RÉU SURPREENDIDO VENDENDO DROGASPARA USUÁRIO - DEPOIMENTO DE POLICIAIS - VALIDADE - § 4º, ARTIGO 33 LEI 11.343/06 - APLICAÇÃO IMPOSSIBILIDADE - PENA - SUBSTITUIÇÃO DA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS - INVIABILIDADE. - (....). - A aplicação da causa de diminuição prevista no § 4º, do artigo 33 da Lei 11.343/06, aos condenados pelo delito de tráfico cometido sob a égide da Lei 6.368/76, mostra-se inviável, por importar em indevida combinação de leis. - (TJMG - AC n° 1.0024.06.026880-2/001(1) – Rel. Desa. Beatriz Pinheiro Caires – j. 29.01.2009)

APELAÇÃO CRIME. TRÁFICO DE DROGAS. LEI 6.368/76. PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. (...) MINORANTE DO § 4º DO ART. 33 DA LEI 11.343/06. INAPLICABILIDADE. VEDAÇÃO DE COMBINAÇÃO DE LEIS. (...) - (TJRS - Apelação Crime Nº 70035375526, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marlene Landvoigt, Julgado em 31/05/2011)

STJ - Informativo 432. Como consabido, vem do art. 5º, XL, da CF/1988 o reconhecimento do princípio da retroatividade da lei mais benéfica como garantia fundamental, aplicando-se, imediatamente, a nova norma mais favorável ao acusado até mesmo após o trânsito em julgado da condenação. Contudo, a verificação da lex mitior no confronto de leis é feita in concreto, pois a norma aparentemente mais benéfica em determinado caso pode não sê-lo em outro. Daí que, conforme a situação, há retroatividade da norma nova ou a ultra-atividade da antiga (princípio da extra-atividade). Isso posto, o § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 (nova lei de tráfico de drogas), que, ao inovar, previu causa de diminuição de pena explicitamente vinculada ao novo apenamento constante no caput daquele mesmo artigo, não pode ser combinado ao conteúdo do preceito secundário do tipo referente ao tráfico previsto no art. 12 da Lei n. 6.368/1976 (antiga lei de tráfico de entorpecentes), a gerar terceira norma, não elaborada e jamais prevista pelo legislador. A aplicação dessa minorante, inexoravelmente, aplica-se somente em relação à pena prevista no caput do art. 33 da nova lei. Dessarte, há que se verificar, caso a caso, a situação mais vantajosa ao condenado, visto que, conforme apregoam a doutrina nacional, a estrangeira e a jurisprudência prevalecente no STF, jamais se admite a combinação dos textos para criar uma regra inédita. Precedentes citados do STF: RHC 94.806-PR, DJe 16/4/2010; HC 98.766-MG, DJe 5/3/2010, e HC 96.844-MS, DJe 5/2/2010. EREsp 1.094.499-MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgados em 28/4/2010.

5. A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 596152/SP

Como não poderia deixar de ser, a controvérsia chegou ao Supremo Tribunal Federal, sendo que, após diversos julgados tanto em um sentido, quanto em outro, a matéria foi vinculada ao pleno da Corte Suprema em sede do Recurso Extraordinário 596152/SP. Encontra-se acirrada a discussão entre os Ministros e pendente a matéria de julgamento definitivo. É o que se passa a demonstrar.

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou a questão da possibilidade ou não de combinação de leis incriminadoras, como ocorreu, v.g., quando do julgamento do HC 68416, da relatoria do Min Paulo Brossard, quando assentou que “os princípios da ultra e da retroatividade da "lex mitior" não autorizam a combinação de duas normas que se conflitam no tempo para se extrair uma terceira que mais benefície o réu”, nos idos do ano de 1992.

Extrai-se, outrossim, do informativo 432 do STJ colacionado linhas acima, que até muito recentemente, o posicionamento do Suprema era na mesma linha de raciocínio.

Não é demais destacar, portanto, que a posição da Corte Suprema, historicamente, sempre foi no sentido de inadmitir a conjugação de leis penais.

Sucede que a atual composição do Supremo, tem editado julgados que revelam a possibilidade de mudança nessa postura. Para tanto, é mister notar que existem posicionamentos díspares nos julgamentos realizados em sede da competência de suas 2 (duas) turmas, por vezes acolhendo a tese da combinação de leis, por outras afastando. Vejamos:

1ª Turma

Não admitindo a combinação: (Informativo 594)

A Turma indeferiu habeas corpus em que condenada por crime de tráfico de drogas praticado sob a vigência Lei 6.368/76 pretendia fosse aplicada à sua pena-base a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º da Lei 11.343/2006 (“§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”). Aduziu-se, de início, que a sentença condenatória considerara diversos fatores que afastariam a diminuição da pena, tais como maus antecedentes, quantidade de droga apreendida, entre outros. Destacou-se, ademais, que a nova lei majorou a pena mínima aplicada a tal crime de três para cinco anos, daí o advento da referida causa de diminuição. Por fim, considerou-se não ser lícito tomar preceitos isolados de uma e outra lei, pois cada uma delas deve ser analisada em sua totalidade, sob pena de aplicação de uma terceira lei, criada unicamente pelo intérprete. Declarou-se, ainda, o prejuízo do pedido de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (HC 103153/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, 3.8.2010)

2ª Turma

Não admitindo a combinação: (Informativo 570 do STF)

A Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenada à pena de 4 anos de reclusão por tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12) em que pleiteada a diminuição da pena para o mínimo legal (3 anos), tendo em vista ser ela primária e preponderarem circunstâncias judiciais favoráveis. Requeria-se, também, por idênticas razões, a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, que possibilita a redução da pena de um sexto a dois terços em tais casos. Considerou-se que a sentença condenatória estaria devidamente fundamentada, com motivação suficiente para a elevação da pena-base acima do mínimo legal. Rejeitou-se, de igual modo, o pleito de incidência do novo dispositivo da Lei 11.343/2006, pois a causa especial de diminuição nele estabelecida tem como parâmetro a nova pena imposta ao crime de tráfico de entorpecentes pelo diploma legal em questão, que parte do mínimo de 5 anos. Assim, combinar referida norma com a pena imposta à paciente, sob a égide da Lei 6.368/76, significaria criar uma terceira pena, não estabelecida em lei, o que seria vedado ao órgão julgador, por força dos princípios da separação dos poderes e da reserva legal. (HC 96844/MS, rel. Min. Joaquim Barbosa, 4.12.2009).

Admitindo a combinação: (Informativo 574 do STF)

A Turma deferiu habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de condenado por tráfico ilícito de entorpecentes na vigência da Lei 6.368/76 para determinar que magistrado de 1ª instância aplique a causa de diminuição de pena trazida pelo § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, bem assim para que fixe regime de cumprimento compatível com a quantidade de pena apurada após a redução. Consignou-se que a Constituição Federal determina que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (CF, art. 5º, XL) e, tendo em conta que o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 consubstancia novatio legis in mellius, entendeu-se que ele deveria ser aplicado em relação ao crime de tráfico de entorpecentes descrito em lei anterior. (HC 101511/MG, rel. Min. Eros Grau, 9.2.2010. (HC-101511)

Diante da divergência em destaque, a matéria foi afetada ao pleno da Corte Suprema no julgamento do Recurso Extraordinário 596152/SP interposto pelo Ministério Público Federal em face de acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a possibilidade de combinação de leis em sede de Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, cuja autoridade indigitada coatora foi o Tribunal de Justiça paulista.

A repercussão geral foi reconhecida, encontrando-se os autos do recurso extremo, atualmente, em conclusão ao Ministro Luiz Fux após pedido de vista.

Até o momento 6 (seis) foram os votos emitidos. Os Ministros Joaquim Barbosa e Carmem Lúcia acompanharam o Ministro Ricardo Lewandowski, relator, que entendeu não ser possível a conjugação de leis incriminadoras (v. Informativo 611 do STF).

Já os Ministros Dias Toffoli e Ayres Britto acompanharam a divergência suscitada pelo Ministro Cezar Peluso em voto-vista, que, por sua vez, reiterou as razões lançadas no julgamento do HC 95435 acima ementado, aduzindo que “aplicar a causa de diminuição não significaria baralhar e confundir normas, uma vez que o juiz, ao assim proceder, não criaria lei nova, mas apenas se movimentaria dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível” (v. Informativos 611 e 626 do STF).

Deflui-se, assim, que a matéria encontra-se pendente de julgamente definitivo no Supremo, o qual deve ser realizar ainda neste ano de 2011, haja vista que mais da metade dos votos já foram proferidos no julgamento do mencionado RE 596152/SP.

Espera-se que a atual composição da Corte Suprema siga realizando julgamentos históricos na esfera penal, concretizando os ideais constitucionais no intuito de afastar interpretações que não encontram respaldo na singularidade da hermenêutica criminal como foi o julgamento do Habeas Corpus 82.959-7/SP, que afastou o erro histórico de mais de 15 (quinze) anos da redação originária da Lei de Crimes Hediondos, autorizando a até então vedada progressão de regime.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os aspectos doutrinário e jurisprudencial do Direito Penal demandam raro esforço técnico de seus intérpretes e operadores, ao passo que seus efeitos práticos são discutidos com rara paixão pelos mesmos estudiosos, haja vista seu reflexo imediato na sociedade. Deriva daí a particularidade com que se constrói o pensamento penal.

Não é outra a constatação em face do tema tratado neste estudo.

Destacou-se que é de longa data a discussão doutrinária a respeito do tema, sendo que a grande maioria da chamada doutrina clássica, capitaneada pelo saudoso Nelson Hungria, inclina-se pela impossibilidade da criação da chamada lex tertia decorrente da combinação de leis. Já a doutrina moderna, em sua maioria, a exemplo do festejado Juarez Cirino dos Santos, tende a admitir a combinação de leis.

Neste breve estudo buscou-se a construção de um raciocínio que leva a uma só constatação: é não só perfeitamente possível como imperiosa a aceitação da combinação de leis em nosso ordenamento.

Isso porque, em apertada síntese, diante da singularidade da hermenêutica penal, deve-se, sempre, buscar a maximização dos aspectos de proteção do indivíduo, que não deve sucumbir nem mesmo diante de um suposto interesse público (de punir). Afinal, à luz do pensamento constitucional pós CR/88, a única leitura de interesse público autorizada é o interesse público trazido pelo professor Aury Lopes Jr. em sua obra, isto é, o interesse de toda a sociedade em ver respeitada as regras do jogo e a preservação dos direitos e garantias fundamentais.

Asseverou-se, outrossim que, não obstante inexista dispositivo expresso autorizando a combinação de leis, também não há despositivo estabelecendo sua vedação. Ao revés, uma leitura sistemática dos dispositivos aplicáveis à espécie autoriza a aplicação da combinação de leis.

De outro lado, destacou-se que a mesma discussão travada na doutrina é refletida pela jurisprudência. Ocorre que nos Tribunais tem prevalecido, com maior magnitude, a vedação da combinação de leis, com fundamento na doutrina clássica.

Recentemente o STF foi instado a se manifestar a respeito do tema, especificamente no que tange à problemática envolvendo o §4º do art. 33 da nova lei de drogas e o art.12 da antiga Lei nº 6.368/76, sendo que, após julgados divergentes entre suas turmas, a matéria foi afetada ao Pleno, que está presestar a definir seu posicionamento.

Até o presente momento foram 6 (seis) votos encontrando-se precisamente empatada a discussão, com 3 (três) votos a favor da combinação e três votos contra, dentre eles o do relator Ricardo Lewandowski.

A expectativa é a de que, na linha de outros julgados que se destacaram no cenário jurídico dos últimos anos, a exemplo da releitura da lei de crimes hediondos para autorizar a progressão de regime, seja reconhecida a possibilidade de combinação de leis incriminadoras em seus aspectos favoráveis ao réu.

Certo é que a discussão, além de atual é de suma relevância para o desenvolvimento do pensamento penal. É a oportunidade que se tem para avaliar, de uma vez por todas, o papel do STF na aplicação do Direito Penal a fim de torná-lo efetivo e guardião do verdadeiro interesse público.

O anseio é de que se ratifique as palavras do próprio STF, que, por meio de acórdão da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, já assentou que “a proteção do cidadão no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária”[21].

Afinal, como dito, não é possível contentar-se com argumentações derivadas de uma lógica formal. Deve-se ter humildade e arrojo científico bastante para ultrapassar barreiras e romper com (pre)conceitos, tudo com vistas a conferir efetividade a linhas de raciocínio amparadas, integralmente, com o norte constitucional.


REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luis Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. A viagem redonda: habeas data, Direitos Constitucionais e as Provas Ilícitas, In: Temas de direito constitucional, t. I, 2ª ed., 2002 Revista Trimestral de Direito Público 24/14, 1998. Revista de Direito Administrativo 213/149, 1998. p.149-163

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. V1. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 16.

BRANDÃO, Cláudio. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense. 2008.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 15 ed. Saraiva: São Paulo. 2008.

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FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT. 2002.

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LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Impetus. Rio de Janeiro. v.1. 2011

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2009.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva. 1964. v. 1

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TOLEDO, Franciso de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva. 2002.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006.

SANTOS, Igor Raphael de Novaes. Regime disciplinar diferenciado. Solução ou discurso paliativo para o problema da execução penal?. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1959, 11 nov. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11957>

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT. 1997.


Notas

  1. Assim definida no art. 3º do Código Penal. No ponto, vale ressaltar que essa exceção à regra da retroatividade benéfica é rechaçada por parte da doutrina, a exemplo do festejado professor Juarez Cirino dos Santos. (v. p. 52 de sua obra)
  2. BRANDÃO, Cláudio. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense. 2008. p. 69
  3. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. apud Brandão, Cláudio. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense. 2008. p. 70
  4. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense. 16ed. 2003. p. 126.
  5. COSTA JUNIOR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva. p. 38
  6. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: RT. 8ed. p. 65
  7. TOLEDO, Franciso de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva. 2002. 5 ed. p. 38.
  8. SANTOS, Juares Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. ICPC; Lumen Juris: Curitiba. 2006. p. 50.
  9. MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Saraiva: São Paulo. 1964. v. 1. p. 210/211
  10. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Saraiva: São Paulo. v.1. 2006. p. 213.
  11. JAKOBS, Gunther. Parte General: Fundamentos y Teoria de la imputación. Marcial Pons: Madrid. 1997. 2ed. p. 126.
  12. SANTOS, Igor Raphael de Novaes. Regime disciplinar diferenciado. Solução ou discurso paliativo para o problema da execução penal?. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1959, 11 nov. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11957>. Acesso em: 11 jul. 2009.
  13. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Impetus: Rio de Janeiro. v.1. 2011. p. 921.
  14. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. Saraiva: São Paulo. 15 ed. 2008. p. 38-39
  15. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A constituição e as provas ilicitamente obtidas. Revista Forense, v. 337, p. 128
  16. LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2009. 4ª ed. p. 11
  17. Idem. p. 581
  18. Ibidem. p.15
  19. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed. Rev. E atual. São Paulo: Saraiva. 2001. p. 246
  20. BARROSO, Luis Roberto. BARCELLOS, Ana Paula de. A viagem redonda: habeas data, Direitos Constitucionais e as Provas Ilícitas, In: Temas de direito constitucional, t. I, 2ª ed., 2002 Revista Trimestral de Direito Público 24/14, 1998. Revista de Direito Administrativo 213/149, 1998. p.149-163
  21. STF, 2ª Turma, HC 91.386/BA, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 16/05/2008

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Igor Raphael de Novaes. Combinação de leis incriminadoras: uma análise (crítica) doutrinária e jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3073, 30 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20535. Acesso em: 25 abr. 2024.