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Contraditório administrativo na demarcação de terras indígenas

Contraditório administrativo na demarcação de terras indígenas

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Não há ofensa ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa a demarcação de terras tradicionais indígenas realizada nos termos do Decreto 1.775/98.

SUMÁRIO: Introdução; Contraditório; Decreto 1.775/96. Índio e Terra Tradicionalmente Ocupada; Indenização das Benfeitorias Decorrentes da Ocupação de Boa-fé; Conclusão; Referências.


RESUMO

Debate-se por meio deste artigo a oportunização do contraditório administrativo aos ocupantes não-índios no procedimento de demarcação de terras indígenas. O tema é atual pois, mesmo após o julgamento da questão Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal, existem no Judiciário inúmeros processos em que se alega que não foi respeitado o princípio constitucional do contraditório na demarcação de terras indígenas. No desenvolver da tese passaremos pela busca de um conceito do que seja terra de ocupação tradicional indígena nos moldes preconizados no artigo 231, § 6º, da Constituição Federal de 1988.


INTRODUÇÃO

Antes de adentrarmos no debate acerca do contraditório no processo de demarcação das terras indígenas, mister compreendermos a densidade semântica e social do substantivo índios, repetido por seis vezes e do adjetivo indígenas, repetido por onze vezes na Constituição Federal de 1988.

Segundo notícia estampada no site da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, na data de 26/12/2011, no Brasil vivem hoje mais de 800.000, cerca de 0,4% da população brasileira, conforme o Censo 2010 do IBGE. Estão distribuídos entre 683 terras indígenas e algumas áreas urbanas, como Águas Belas no Pernambuco e Coroa Vermelha na Bahia.Existem também 77 referências de grupos indígenas não-contatados, dos quais, 30 foram confirmados.

As pessoas que habitavam das Américas foram chamados de índios pelos europeus que aqui chegaram. Uma denominação genérica, provocada pela primeira impressão que eles tiveram de haverem chegado às Índias. Mesmo em descobrindo que não estavam nas índias, mas sim numa terra até então desconhecida, os europeus continuaram a chamá-los assim, desconsiderando refletidamente as diferenças lingüístico-culturais.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial e a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a relação das nações com o autócnes começaram a mudar, afastando-se até mesmo a denominação silvícola por se restringir aos indivíduos que vivem na selva.

Na década de 50, o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro baseou-se na definição elaborada pelos participantes do II Congresso Indigenista Interamericano, no Peru, em 1949, para assim definir, no texto "Culturas e línguas indígenas do Brasil", o indígena como: "(...) aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato."

O critério da auto-identificação étnica vem sendo o mais amplamente aceito pelos estudiosos da temática indígena. Juridicamente, a positivação está no artigo 3º da Lei nº 6.001/73, Estatuto do Índio, e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratifica pelo Decreto 5.051, de 19/04/2004.

Ressaltamos que o objeto deste trabalho se limitará a abordar a observância do princípio do contraditório no processo administrativo de identificação/demarcação/homologação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não abrangendo as áreas reservadas e as terras de domínio das comunidades indígenas.

A justificativa se dá em face da natureza jurídica da demarcação ser declaratória e não constitutiva, tendo como consequência a previsão expressa no artigo 231, § 6º, que são indenizadas apenas as benfeitorias decorrentes da ocupação de boa-fé. Decorre daí conflitos sociais, econômicos e jurídicos, pois muitos dos ocupantes não-índios são possuidores de títulos de propriedade emitidos pelos estados membros e ocupações que demandam anos e anos.


1. Legislação Brasileira acerca das Terras Indígenas.

No tocante à proteção aos índios e suas terras, a Constituição Federal de 1988 dispõe:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Não obstante a celeuma acerca da hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos, notadamente aqueles que não observaram o quorum para Emenda à Constituição Federal, conforme inovação constante do artigo 5º, § 3º, da Carta Magna, vale trazer ao debate os termos dos artigos 13 e 14 da Convenção 169 da OIT:

Artigo 13

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

Artigo 14

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

3.Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.

Além das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, o ordenamento jurídico pátrio prevê outras modalidades, tais como as reservas indígenas e as terras de domínio das comunidades indígenas. Dispõe o artigo 17 do Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/73:

Art. 17. Reputam-se terras indígenas:

I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição;

II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;

III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.

O procedimento para demarcação de terras indígenas tradicionais era regulamentado pelo Decreto 22/91, que foi inteira e expressamente revogado pelo Decreto 1.775/96, o qual foi complementado pela Portaria nº 14/MJ, de 9/01/1996, que estabelece regras sobre a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas.


2. Terra Tradicionalmente Ocupada por Indígenas.

Não é qualquer território ocupado por indígenas que pode ser qualificado como de ocupação tradicional, pois o próprio Estatuto do Índio, em seu artigo 17 diferencia terras ocupadas ou habitadas, áreas reservadas e terras de domínio indígena, considerando espécies da segunda as reservas indígenas, parques indígenas e colônia agrícola indígena.

A Constituição Federal de 1988 reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, prestigiando, assim, a tradição jurídica brasileira do instituto do indigenato. O direito indígena sobre suas terras é um direito dominial primário e congênito. Este direito é anterior e oponível a qualquer reconhecimento ou ocupação superveniente. A posse não se legitima pela titulação, mas pela efetiva ocupação indígena, que não se dá da forma do direito civil [01].

O instituto do indigenato confronta-se com a teoria do fato indígena, afastado pelos antropólogos e por parte da doutrina como fundamento da ocupação tradicional indígena. O § 1º do artigo 231 da Constituição Federal define terras tradicionalmente ocupadas "as habitadas pelos índios em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". Para se considerar como terra de ocupação tradicional indígena é necessário sejam atendidas todas estas condições.


3. Processo Administrativo de Demarcação de Terras Indígenas.

Na demarcação de terras indígenas a Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito federal, é aplicada de forma subsidiária, pois o procedimento hoje é o previsto no Decreto 1.775/96, o qual foi complementado pela Portaria nº 14/MJ, de 9/01/1996, que estabelece regras sobre a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de terras indígenas.

A demarcação de terras indígenas é ato administrativo complexo, demandando atuação do órgão federal de assistência ao índio, do Ministro da Justiça e de homologação, via decreto, do Presidente da República.

Por pertinente, transcrevemos na íntegra o Decreto 1.775/96:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, e tendo em vista o disposto no art. 231, ambos da Constituição, e no art. 2º, inciso IX da Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973,

DECRETA:

Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.

Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.

§ 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.

§ 2º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio.

§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.

§ 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.

§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação.

§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.

§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.

§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.

§ 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas.

§ 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:

I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;

II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias;

III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.

Art. 3° Os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos neste Decreto.

Art. 4° Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.

Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto.

Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.

Art. 7° O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios.

Art. 8° O Ministro de Estado da Justiça expedirá as instruções necessárias à execução do disposto neste Decreto.

Art. 9° Nas demarcações em curso, cujo decreto homologatório não tenha sido objeto de registro em cartório imobiliário ou na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda, os interessados poderão manifestar-se, nos termos do § 8° do art. 2°, no prazo de noventa dias, contados da data da publicação deste Decreto.

Parágrafo único. Caso a manifestação verse demarcação homologada, o Ministro de Estado da Justiça a examinará e proporá ao Presidente da República as providências cabíveis.

Art. 10. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 11. Revogam-se o Decreto n° 22, de 04 de fevereiro de 1991, e o Decreto n° 608, de 20 de julho de 1992.

O processo demarcatório, em regra, inicia-se por meio de requerimento dos interessados deflagrando o procedimento administrativo de identificação e delimitação, quando é constituído um grupo técnico de trabalho, composto por técnicos da FUNAI, coordenado por antropólogo. A comunidade indígena deve ser envolvida diretamente em todas as sub-fases da identificação e delimitação da terra indígena a ser administrativamente reconhecida. O grupo de trabalho realiza os estudos e levantamentos em campo, centros de documentação, órgãos fundiários municipais, estaduais e federais, e em cartórios de registro de imóveis, para a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área estudada.

Após, dá-se a publicação do resumo do relatório no Diário Oficial da União, diário oficial do estado federado de localização da área, sendo cópia da publicação afixada na sede municipal da comarca de situação da terra estudada.

Do ponto de vista fático e social a publicação do resumo traz inquietação na área estudada, seja por parte dos indígenas, por criar a expectativa de serem reconhecidas suas terras, seja dos ocupantes não-índios de se verem despojados de suas propriedades sem direito a indenização da terra, mas apenas das benfeitorias decorrentes da ocupação de boa-fé.

Estudos antropológicos e complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e levantamento fundiário, realizados na fase de identificação caracterização ou não a terra como tradicionalmente ocupada por indígenas.

Estes estudos, se aprovados pelo Presidente da FUNAI, fundamentará a declaração da área como de ocupação tradicional do grupo indígena a que se refere, por portaria do Ministro da Justiça, publicada no Diário Oficial da União.


4. Contraditório Administrativo na Demarcação de Terras Indígenas.

O artigo 5º, LIV, dispõe que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Assim, o contraditório, como corolário do princípio do devido processo legal é assegurado não só em processos judiciais, mas também em processos administrativos por expresso comando constitucional, constituindo direito fundamental dos administrados.

Não obstante a obediência ao devido processo legal, o Decreto 22/91 não previa expressamente o contraditório administrativo no processo de demarcação das terras indígenas, dando origem a inúmeras ações judiciais.

Vejamos a jurisprudência acerca da existência do contraditório na demarcação de terras indígenas:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. INEXISTÊNCIA. DECRETO 1.775/1996. CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO. I - Esta Corte possui entendimento no sentido de que o marco temporal previsto no art. 67 do ADCT não é decadencial, mas que se trata de um prazo programático para conclusão de demarcações de terras indígenas dentro de um período razoável. Precedentes. II – O processo administrativo visando à demarcação de terras indígenas é regulamentado por legislação própria - Lei 6.001/1973 e Decreto 1.775/1996 - cujas regras já foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes. III – Não há qualquer ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, pois conforme se verifica nos autos, a recorrente teve oportunidade de se manifestar no processo administrativo e apresentar suas razões, que foram devidamente refutadas pela FUNAI. IV – Recurso a que se nega provimento.

(RMS 26212, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 03/05/2011, DJe-094 DIVULG 18-05-2011 PUBLIC 19-05-2011 EMENT VOL-02525-02 PP-00290) EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. RESPEITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. SEGURANÇA INDEFERIDA. Imprescindibilidade de citação da FUNAI como litisconsorte passiva necessária e ausência de direito líquido e certo, por tratar a questão de matéria fática. Preliminares rejeitadas. Ao estabelecer um procedimento diferenciado para a contestação de processos demarcatórios que se iniciaram antes de sua vigência, o Decreto 1.775/1996 não fere o direito ao contraditório e à ampla defesa. Proporcionalidade das normas impugnadas. Precedentes. Segurança indeferida.

(MS 24045, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 28/04/2005, DJ 05-08-2005 PP-00006 EMENT VOL-02199-01 PP-00197 LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 145-154)

Superada a questão acerca do contraditório, os estudos e pareceres referentes às contestações, após aprovação da FUNAI, são encaminhados ao Ministro da Justiça, para apreciação da proposta apresentada pelo órgão indigenista, referente aos limites da terra indígena, e das razões apresentadas pelos contestantes.

O Ministro da Justiça, se aprovar os estudos feitos pela FUNAI, por meio de Portaria publicada no Diário Oficial da União, declara de a terra de ocupação tradicional do grupo indígena especificado, indicando a superfície, o perímetro, seus limites e determina a demarcação física.


CONCLUSÃO

Terras tradicionalmente ocupadas por indígenas são aquelas habitadas pelos índios em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do § 1º do artigo 231 da Constituição Federal/88.

O procedimento para demarcação de terras indígenas tradicionais é regulamentado pelo artigo 17 da Lei 6.001/73, Estatuto do Índio, pelo Decreto 1.775/96 e pela Portaria nº 14/MJ, de 9/01/1996.

Comungo da tese de que não há ofensa ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa a demarcação de terras tradicionais indígenas realizada nos termos do Decreto 1.775/98.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KAYSER, Harmut-Emanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil : desenvolvimento histórico e estágio atual / Harmut-Emanuel Kayser ; tradução maria da Glória Lacerda Rurack, Klaus-Peter Rurack. – Porto Alegre : Sérgio Antônio Fabris Ed. 2010.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; GONET BRANCO Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

NEVES, João Lino Neves. Juridificação do Processo de Demarcação de Terras Indígenas no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº 55, Novembro de 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31º ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

FUNAI. www.funai.gov.br


Notas

  1. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros. 2011.

Autor

  • Jorge Arcanjo dos Santos

    Procurador Federal - AGU. Procuradoria Federal Especializada a Fundação Nacional do Ìndio - FUNAI. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Professor do Instituto de Ensino Superior Planalto - IESPLAN.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jorge Arcanjo dos. Contraditório administrativo na demarcação de terras indígenas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3119, 15 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20855. Acesso em: 18 abr. 2024.