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O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil

O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil

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A Lei Maior ampara quaisquer novos arranjos multifacetados que se mostrem aptos a constituir o núcleo doméstico da família, desde que ostentem os critérios de publicidade, continuidade e afeto.

“Consideramos justa toda forma de amor”. - Lulu Santos

Resumo: Esta monografia trata-se de uma revisão bibliográfica acerca da constitucionalidade do casamento homoafetivo. Busca-se demonstrar a proteção deste instituto à luz dos princípios constitucionais, notadamente a dignidade da pessoa humana, macroprincípio orientador e legitimador de toda a ordem jurídica pátria, enfeixando todos os demais princípios fundamentais, a exemplo da liberdade, da legalidade, da igualdade e do respeito à diferença, e da não discriminação em razão do sexo. Um Estado que se pretende Democrático de Direito não pode tolerar distinções infundadas entre os indivíduos, sem qualquer amparo racional, lógico e motivadamente constitucional, como ocorre quando se denega o direito de acesso ao casamento em virtude da orientação sexual dos nubentes. Com efeito, não é outra a justificativa para o óbice do acesso ao casamento pelos pares homossexuais, inobstante camuflada de tantos outros pretextos. Tal assertiva se vislumbra, inter alia: ante o rechaço da teoria da inexistência; o fato de a heterogeneidade de sexos não constituir causa de impedimento ao casamento; a procriação não ser elemento caracterizador do matrimônio; a orientação sexual do indivíduo não violar direitos de terceiros; o uso da sexualidade não influir na dignidade da pessoa humana; não haver vedação expressa constitucional nem infraconstitucional quanto ao casamento entre pares homoafetivos.

Palavras-chave: Casamento. Constitucional. Dignidade. Família. Homoafetivo. Princípios.

Sumário: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO 1 – DO CASAMENTO. 1.1 Do Contexto Histórico do Casamento no Ordenamento Pátrio. 1.1.1.A Influência do Direito Canônico. 1.1.2        Breve Relato Sobre o Casamento nas Constituições Brasileiras. 1.2 Da Tentativa Conceitual do Casamento. CAPÍTULO 2 – DA FAMÍLIA. 2.1 Da Evolução do Conceito de Família. 2.2 Da Família Pós-Constituição de 1988. 2.2.1 O Afeto Como Elemento Propulsor da Família e o Pluralismo das Entidades Familiares. 2.2.1.1 O Reconhecimento da União Homoafetiva como Entidade Familiar pelo STF. CAPÍTULO 3 – DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA.  3.1 Da Constitucionalização do Direito Civil. 3.1.1 A Reconstrução da Dicotomia Público e Privado. 3.2 Da Releitura Constitucional do Casamento Civil. CAPÍTULO 4 – DO BALUARTE CONSTITUCIONAL DO CASAMENTO HOMOAFETIVO. 4.1 Do Casamento Homoafetivo Mediante a Conversão da União Homoafetiva. 4.2 Do Casamento Homoafetivo Mediante a Habilitação Diretamente Junto ao Registro Civil. 4.3. Das Teses Contrárias ao Casamento Homoafetivo. 4.3.1.A Teoria da Inexistência. 4.4. Do Casamento Homoafetivo à Luz dos Princípios Constitucionais. 4.4.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 4.4.2  Princípio da Liberdade. 4.4.3. Princípio da Igualdade e do Respeito à Diferença. 4.4.4        Princípio da Razoabilidade. 4.4.5.Princípio da Proporcionalidade. 4.4.6.Princípio da Não Discriminação em Razão do Sexo. 4.4.7.Princípio da Solidariedade. 4.4.8.Princípio do Livre Planejamento Familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

A Carta Magna de 1988 alçou a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado Democrático de Direito, de sorte que tal princípio adjudica legitimidade e unidade de sentido a todo o arcabouço da ordem constitucional. Por ser atributo intrínseco e valor supremo do ser humano, reclama reconhecimento e proteção plenos na integralidade da ordem, refletindo-se em todos os direitos fundamentais oriundos da estrutura constitucional brasileira. De fato, a dignidade é considerada um macroprincípio norteador e orientador de todo o sistema jurídico, o qual enfeixa todos os demais princípios fundamentais, como a liberdade, a não discriminação, a igualdade e o respeito à diferença, inter alia. Como valor supremo, ostenta caráter absoluto, e por isso não se submete a qualquer tentativa de relativização.

A Declaração Universal da ONU indigita o cerne do princípio da dignidade na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, o que significa que o homem tem o direito de decidir livre e autonomamente sobre os seus projetos de vida e de existência eudemonista, desde que não transgrida a redoma dos direitos de terceiros. A autonomia e a autodeterminação da pessoa estruturam sua individualidade e o desenvolvimento da sua personalidade. Aqui, a sexualidade tem importante espaço na constituição da subjetividade do indivíduo e no reconhecimento da sua dignidade. A orientação sexual, dessa forma, relaciona-se estreitamente com o amparo da dignidade da pessoa humana. De modo que, ao vislumbrarmos trato jurídico diferenciado a uma pessoa em razão da sua orientação sexual, está-se conferindo tratamento indigno à mesma.

Com efeito, um Estado que se pretende Democrático de Direito não deve tolerar qualquer espécie de distinção entre os indivíduos como pretexto de discriminação em razão da orientação sexual dos mesmos. Qualquer pretensão de trato diferenciado entre os indivíduos deve ser muito bem fundamentada, racional, lógica e compatível com os preceitos constitucionais. Se esses pressupostos não forem observados, a diferenciação estará em flagrante infringência à Lei Maior. Diante de tais premissas, questiona-se: o óbice ao acesso dos homossexuais ao casamento é uma diferenciação que possui fundamento lógico-racional?

É nesse contexto que se insere a análise desenvolvida no presente trabalho. Trata-se de revisão bibliográfica pretensa a explanar acerca do estabelecimento do casamento dentro do direito homoafetivo, sob uma ótica constitucional, cuja pesquisa se deu mediante ampla leitura, investigação, fichamento de obras, bem como análise da legislação pertinente, da doutrina e da jurisprudência. Ambiciona-se uma releitura constitucional deste instituto de direito civil, até então monopolizado por pares heterossexuais.

Tal desiderato é principiado com uma tentativa conceitual do instituto do casamento, em breve relato de suas nuances ao longo do tempo, desde as influências do direito canônico até o contexto coevo inaugurado com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Discorre-se sobre a característica histórica – e já superada – do casamento como sacralização e única forma de constituição da família, presente em várias Constituições; e sobre a mudança dos seus contornos face à conjuntura do novo paradigma do Estado Democrático de Direito. Concomitantemente, mostra-se a evolução da família, hodiernamente constituída por outros meios, que não só o casamento, graças ao seu poliformismo, a pluralidade das entidades familiares consagrada na Constituição Cidadã.

Em seguida, explana-se acerca do julgamento conjunto da ADI nº 4.227 e da APDF nº 132, pelo Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, que, em decisão unânime, equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, alçando-as, pois, à condição de entidade familiar, entendida esta como sinônimo de família. Tal decisão, de caráter vinculante e efeito erga omnes é vista pela doutrina como o divisor de águas no âmbito do direito homoafetivo.

Conseguintemente, propõe-se uma lacônica mostra das teses contrárias à possibilidade do casamento homoafetivo, notadamente a teoria da inexistência, doutrina esta rechaçada com o advento da constitucionalização do direito civil, que permitiu a repersonificação do direito de família.

Finalmente, a pesquisa permeia entre os princípios fundamentais do indivíduo, consagrados pela Constituição Federal de 1988, demonstrando o baluarte constitucional que afaga o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Além da dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade e o respeito à diferença, a não discriminação em razão do sexo, e bem assim da orientação sexual, e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade mostram-se respaldo suficiente para autorizar a contração das núpcias entre pares de gêneros idênticos. Defende-se a autossuficiência principiológica no amparo ao casamento homoafetivo, sem embargo da alegação, de alguns doutrinadores e da Ordem dos Advogados do Brasil, da necessidade de se editar uma legislação específica para o trato do direito homoafetivo, por eles chamada de Estatuto da Diversidade Sexual.

Inobstante tardiamente, e ainda de forma tímida, os direitos dos homoafetivos vem sendo previstos em legislações ordinárias esparsas, a exemplo da previdenciária, da sucessória e da penal, com a Lei Maria da Penha – esta elevou o conceito de família à relação íntima de afeto, abraçando também, assim, as uniões homoafetivas. Dentre as questões atinentes ao direito homoafetivo, fala-se muito em adoção por pares homoafetivos, homoparentalidade e filiação, obrigação alimentar nas uniões homoafetivas, a condição do parceiro como herdeiro, o dano moral por discriminação, entre outras.

Em que pese ao alto grau de relevância dos temas mencionados, este trabalho não se propõe a discuti-los, vez que visa a abordar tão só a temática referente ao casamento no direito homoafetivo, tema que, per si, enseja grande polêmica e dissonância doutrinária e jurisprudencial.

Outrossim, apesar da enorme influência dos aspectos religiosos nesta matéria, abster-me-ei de invocá-los neste debate, posto que, pela sua amplitude, rendem assunto para outra dissertação. Demais disso, intenciona-se aqui ressaltar os aspectos jurídicos do objeto da pesquisa no contexto do Estado Democrático de Direito, que é laico e guiado por uma Constituição assentada na dignidade da pessoa humana, como visto. Assim, em que pese sua relevância, a religião e seus dogmas não podem sobrepujar o direito e o texto constitucional.

Da mesma forma, não cabe aos operadores do direito ou aos legisladores arguir ou indagar o porquê da homossexualidade, nem conjecturar sobre sua natureza, se opção, condição ou orientação do indivíduo, sem embargo de cada qual formular seu juízo a esse respeito. Juristas e legisladores devem, sim, reconhecer a homossexualidade como fato da vida social, que, por ser impregnado de valores axiológicos, reclamam normatização tal qual qualquer outro, seja pela edição de legislação específica, seja pela adequação às já existentes mediante analogia ou a interpretação extensiva.

Uma vez pontuados os desígnios a que se presta a presente dissertação neste breve introito, passemos ao estudo da matéria proposta.


1  DO CASAMENTO

1.1.Do Contexto Histórico do Casamento no Ordenamento Pátrio

1.1.1 A Influência do Direito Canônico

Ao longo do processo histórico brasileiro, o instituto do casamento, bem como sua tentativa conceitual por parte do legislador e da doutrina, apresentaram diversas roupagens, cujas mutações se deram em adequação ao contexto sociocultural de cada época, às concepções religiosas, e até mesmo a preconceitos intrínsecos, inerentes à condição humana, que, muitas vezes, acabam por macular, com achismos subjetivos, institutos basilares e de grandiosa relevância da sociedade civil, como o casamento.

Consoante o ilustre civilista Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 37), o casamento, como toda instituição social, varia com o tempo e os povos, razão pela qual “são inúmeras as definições de casamento apresentadas pelos escritores, a partir de Modestino, da época clássica do direito romano, muitas delas refletindo concepções ou tendências filosóficas ou religiosas. A aludida definição é do século III e reflete as ideias predominantes no período clássico”. Assim, para Modestino (apud GONÇALVES, 2010, p. 37-38), o casamento seria a “conjunção do homem e da mulher, que se unem para toda a vida, a comunhão do direito divino e do direito humano”[1].

Caio Mário da Silva Pereira (2004, apud GONÇALVES, 2010, p. 38), por sua vez, aduz que “o cristianismo elevou o casamento à dignidade de um sacramento, pelo qual um homem e uma mulher selam a sua união sob as bênçãos do céu, transformando-se numa só entidade física e espiritual (caro una, uma só carne), e de maneira indissolúvel (quos Deus coniunxit, homo non separet)”.

 Percebe-se a histórica e tradicional influência do Direito Canônico[2] na concepção do casamento, tido como instituição sacralizada, por ser identificada com o direito divino; indissolúvel, pois não poderia findar por vontade dos cônjuges, dissolvendo-se tão somente com a morte; e único acesso para constituição da família, vez que não eram reconhecidas ou aceitas outras formas de entidades familiares[3], que não as constituídas pelo matrimônio. Esta milenar concepção de família cristã ainda predomina nos dias atuais. O eminente Orlando Gomes (1998, p. 40 apud CUNHA, 2010) disciplina que

na organização jurídica da família hodierna é mais decisiva a influência do direito canônico. Para o cristianismo, deve a família fundar-se no matrimônio, elevado a sacramento por seu fundador. A Igreja sempre se preocupou com a organização da família, disciplinando-a por sucessivas regras no curso dos dois mil anos de sua existência, que por largo período histórico vigoraram, entre os povos cristãos, como seu exclusivo estatuto matrimonial. Considerável, em consequência, é a influência do direito canônico na estruturação jurídica do grupo familiar. (grifo do autor).

Caparelli (1999 apud CUNHA, 2010) destaca ainda, em relação ao modelo canônico de família, a importância dada à relação sexual entre os nubentes, tornando-a até mesmo pressuposto de validade para a convalidação do matrimônio, que tinha por primordial finalidade a procriação. Segundo o autor, “entendia-se dessa forma que o fim do matrimônio enquanto instituição era a procriação e, por conseguinte, a educação da prole, o que tornava justificável a prática do ato sexual dos cônjuges, autorizado no seio dessa instituição como remédio [...]”.

1.1.2 Breve Relato Sobre o Casamento nas Constituições Brasileiras

A estrutura jurídica do ordenamento pátrio – tanto nas Constituições quanto nas legislações infraconstitucionais – refletiu a influência do direito canônico.

A Constituição Imperial de 1824 previa exclusivamente os interesses do casamento da família real (MATOS, 2011). Até a Proclamação da República, em novembro de 1889, o casamento entre homem e mulher era instituto exclusivamente religioso da Igreja Católica, de modo que, naquela época, quem não fosse católico, não poderia estabelecer o matrimônio. Antes disso, porém, com a chegada dos imigrantes ao Brasil, sendo os mesmos praticantes de diferenciadas crenças e religiões, fez-se necessária a previsão de uma forma acessível ao casamento. Na precisa lição de Clóvis Beviláquia:

“enquanto a quase totalidade dos brasileiros era católica, inconveniente algum havia em alhear-se o Estado à recuperação dos seus direitos. A imigração, porém, com inevitável introdução de novas crenças, tinha de impor a decretação de outra forma de casamento, mais compatível com as circunstâncias” (BEVILÁQUIA, 2001, p. 57 apud MONTEIRO, 2011, p. 55).

Assim, segundo Washington de Barros Monteiro (2011), ainda em 11 de setembro de 1861, surgiu a primeira lei regulando o casamento dos não católicos, o qual deveria ser celebrado conforme o rito religioso dos nubentes, o que representou “o primeiro passo para a emancipação do casamento da tutela eclesiástica”. Em seguida, houve várias tentativas, embora tímidas, com o intuito de secularizar o casamento, sujeitando-o às leis civis. Todavia, o casamento civil só foi previsto em 24 de janeiro de 1890, quando da separação entre a Igreja e o Estado, com o decreto nº 181, de autoria de Ruy Barbosa, que reconhecia como válido, no Brasil, tão somente a forma civil, devendo esta preceder, inclusive, à cerimônia religiosa, sob pena de prisão e multa.

A Constituição Brasileira de 1891 ratificou o reconhecimento exclusivo do instituto civil. Entretanto, a de 1934, volta a reconhecer o matrimônio religioso, desde que perante a autoridade civil e conforme as disposições da lei. A partir de 1950, enfim, o casamento religioso passa a surtir efeitos civis (BRANDÃO, 2002).

1.2 Da Tentativa Conceitual do Casamento

Com o passar do tempo, entretanto, as concepções acerca do casamento e da família, foram se despindo da conotação religiosa, e ganhando novos contornos, mais condizentes com as novas realidades vivenciadas pela sociedade, de modo que as noções de casamento quanto sacramento perdem espaço para a ideia de casamento quanto ato, contrato ou negócio jurídico. Destaquem-se os conceitos clássicos trazidos por Lafayette Rodrigues Pereira e Clóvis Beviláquia, que ensejaram a formulação de outros inúmeros conceitos deles derivados. Para aquele, o casamento “é um ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre, sob promessa recíproca de fidelidade no amor e da mais estreita comunhão de vida” (PEREIRA, 1945 apud GONÇALVES, 2010, p. 38). Este, por sua vez, define o matrimônio como “um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e a educar a prole, que de ambos nascer” (BEVILÁQUIA, 1950 apud GONÇALVES, 2010, p. 39). Para Pontes de Miranda (apud LÔBO), é simplesmente “o contrato de direito de família que regula a união entre marido e mulher”.

Maria Helena Diniz (2007) eleva o casamento à mais importante e poderosa de todas as instituições de direito privado, por ser uma das bases da família, que, segundo ela, é a pedra angular da sociedade, e o define como “o vínculo jurídico entre home e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”. Para José Lamartine Corrêa de Oliveira, o referido instituto é um “negócio jurídico de Direito de Família por meio do qual um homem e uma mulher se vinculam através de uma relação jurídica típica, que é a relação matrimonial. Esta é uma relação personalíssima e permanente, que traduz ampla e duradoura comunhão de vida” (OLIVEIRA, 1990 apud GONÇALVES, 2010, p.40). Para Paulo Luiz Netto Lôbo (2010), “é um ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado”.

Para o exímio professor Washington de Barros Monteiro, o casamento é “a união permanente entre o homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos” (MONTEIRO; TAVARES, 2011, p. 48).

Em que pesem aos respeitáveis conceitos até aqui trazidos, havemos de ponderar que a procriação, hodiernamente, não pode ser requisitada como pressuposto do casamento, vez que inúmeros casais optam por não terem filhos, simplesmente por não quererem; outros, porém, não os podem conceber, seja por questões de saúde, seja pela idade avançada. Marianna Chaves (2011) adverte que é ideia arraigada na doutrina mundial que a procriação não constitui escopo do casamento: “Se assim o fosse, casamentos entre pessoas idosas ou entre pessoas inférteis seriam vedados. Do mesmo modo, não existe óbice algum ao casamento entre parceiros férteis que não desejem ter filhos, mas querem desfrutar dos benefícios e direitos oriundos da relação matrimonializada”. E continua: “o reconhecimento legal de uma família não se encontra mais restrito na lógica do casamento plus crianças. Existem pluri ou multiformas de se constituir família, não se faz necessária a presença de prole”.

Sabiamente, Regina Beatriz Tavares da Silva (2011, p. 48), define o matrimônio como “a comunhão de vidas entre dois seres humanos, que tem em vista a realização de cada qual, baseada no afeto, com direitos e deveres recíprocos, pessoais e materiais” (grifo nosso).

A definição de casamento da autora parece-nos a mais fidedigna, esclarecedora, e hodierna para o instituto no coevo contexto social. De fato, não se remete à procriação como fim do matrimônio, ressalta a reciprocidade de direitos e deveres que deve haver no pacto nupcial, destaca a realização pessoal sentimental dos nubentes, que veem no casamento um desejo de vida plena e feliz, a dois; e enfatiza a base que deve suportar o relacionamento conjugal, fator determinante para a formação da família: o afeto, o qual será estudado em linhas posteriores.

Atente-se ainda para o fato de a autora ter utilizado a expressão “entre dois seres humanos” ao invés de “entre homem e mulher”, como o faz a esmagadora maioria dos autores civilistas. A brilhante definição da autora enseja à possibilidade de firmação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, tão clamada atualmente pela sociedade guetificada dos pares homossexuais, bem como pelos autores mais coevos e ávidos por equidade e pela efetiva aplicação dos princípios fundamentais da Carta Magna, especialmente a dignidade da pessoa humana e seus apêndices. Nas palavras de Marianna Chaves, “a heterossexualidade seria algo intrínseco do casamento apenas se este fosse entendido como tendo a procriação como um dos seus objetivos, mas essa definição tem sido desde há muito abandonada na sociedade ocidental” (CHAVES, 2011, P. 203).

Antes, porém, de adentrarmos ao mérito ao qual se propõe este trabalho, vale dizer, a constitucionalidade do casamento homoafetivo, faz-se mister o reconhecimento da família homoafetiva. Para tanto, passemos ao estudo da evolução histórica do conceito de família, que foi se amoldando à realidade social hodierna.


2 DA FAMÍLIA  

2.1 Da Evolução do Conceito de Família

A família, como visto, até o Código Civil de 1916, era patriarcal e hierarquizada, e só poderia ser constituída mediante o casamento, não havendo outra modalidade de convívio aceitável (GONÇALVES, 2010). Tanto é assim, que o artigo 229 daquele diploma dispunha que o primeiro e principal efeito do casamento é a criação da família legítima.

Outrossim, na Constituição de 1937 a família era instituto indissolúvel do casamento, conforme preconizava o art. 124: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações nas proporções dos seus recursos”. Também a Constituição de 1946 dispunha em seu art. 163 que “A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado (...)”. Da mesma forma dispunha a Constituição de 1967, em seu art. 167: “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos (...)” (MATOS, 2011).

Percebe-se, dessarte, que o casamento era instituto indissolúvel – reminiscência do direito canônico, já aqui ventilado –, razão pela qual inexistia a dissolução do vínculo matrimonial, pois a única possibilidade de romper o casamento era mediante o desquite, que não desfazia o vínculo, de modo que, uma vez casado, tornava-se impossível a contração de novas núpcias (DIAS, 2011).

As relações e afetos estabelecidos fora do casamento não eram reconhecidos como família, ou, quando muito, eram famílias ilegítimas, às quais a lei dispensava tratamento vil, intolerante e injusto, maculando tais relacionamentos com a alcunha de concubinato, e sua prole, de filhos espúrios, bastardos, adulterinos.

Como observa Carlos Roberto Gonçalves (2010), às concubinas era proibido fazer doações ou conceder benefícios testamentários, bem como figurar como beneficiárias em contratos de seguro de vida. Paulatinamente, entretanto, tal concepção foi tomando nova forma e se adequando à realidade emergente, culminando em uma maior aceitação dessas companheiras, o que, na legislação, teve início no direito previdenciário. Ilustre-se, inter alia, com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que, nos idos de 1964, editou a Súmula nº 380 com o seguinte teor: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.

Gonçalves ainda atenta para o fato de que as soluções dos conflitos pessoais e patrimoniais que ocorriam entre o casal que mantinha comunhão de vida sem casamento não se localizavam no direito de família:

A mulher abandonada fazia jus a uma indenização por serviços prestados, baseada no princípio que veda o enriquecimento sem causa. Muitas décadas “foram necessárias para que se vencessem os focos de resistência e prevalecesse uma visão mais socializadora e humana do direito, até se alcançar o reconhecimento da própria sociedade concubinária como fato apto a gerar direitos, ainda que fora do âmbito familiar [...]” (GONÇALVES, 2010, p. 29).

Quanto aos bastardos, filhos havidos da relação extramatrimonial, eram considerados ilegítimos e sua filiação era negada pela lei. De fato, o art. 358 do Código Civil de 1916 vedava expressamente o reconhecimento de filhos “adulterinos e incestuosos”[4].

Sabiamente, a Constituição Federal de 1988 veio ultimar essa discriminação estúpida e execrável que deturpava a filiação, rezando em seu art. 227, § 6º, que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Pertinente o comentário da nobilíssima jurista Maria Berenice Dias a respeito da inovação constitucional:

O alargamento conceitual das relações interpessoais acabou deitando reflexos na conformação da família, que não possui mais um significado singular. A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a uma verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da parentalidade. Assim, expressões como ilegítima, espúria, adulterina, informal, impura estão banidas do vocabulário jurídico. Não podem ser utilizadas, nem com referência às relações afetivas, nem aos vínculos parentais. Seja em relação à família, seja no que diz respeito aos filhos, não mais se admite qualquer adjetivação (DIAS, 2011, p. 41, grifos da autora).

Dentre outras conquistas, a Carta Magna de 1988 estendeu o conceito de família que, até então, limitava-se e confundia-se com o de casamento, e abarcou outros relacionamentos, a exemplo da união estável e dos vínculos monoparentais. De fato, em seu art. 226, §§ 3º e 4º, a Constituição Federal açambarcou tais entidades familiares ao conceito de família, alforriando a mesma dos grilhões que a sufocavam e prendiam ao casamento, conferindo juridicidade às relações afetivas, que há muito já existiam na sociedade, havidas sem o antes necessário matrimônio entre homem e mulher[5].

Este foi um magnífico triunfo do legislador constituinte, que passou a abraçar e reconhecer a família em suas diferentes facetas, mostrando-se uma constituição dinâmica e adequada aos clamores das mudanças e transformações sociais que emergiram ao longo dos anos. Elucidativa a observação de Eduardo de Oliveira Leite (2003 apud GONÇALVES) quando aduz: “a singeleza ilusória de apenas dois artigos, os arts. 226 e 227 da Constituição Federal gerou efeitos devastadores numa ordem jurídica, do Direito de Família, que se pretendia pacificada pela tradição, pela ordem natural dos fatos e pela influência do direito Canônico”. Comentando a inovação do legislador, Maria Berenice Dias aduz:

Raras vezes uma Constituição consegue produzir tão significativas transformações na sociedade e na própria vida das pessoas como fez a atual Constituição Federal. Não é possível elencar a série de modificações introduzidas, mas algumas, por seu maior realce, despontam com exuberância. A supremacia da dignidade da pessoa humana está lastreada no princípio da igualdade e da liberdade, grandes artífices de um novo Estado Democrático de Direito que foi implantado no País. Houve o resgate do ser humano como sujeito de direito, assegurando-lhe, de forma ampliada, a consciência da cidadania. (DIAS, 2011, p. 40-41, grifos da autora).

Inobstante os avanços da Carta Política, o legislador do atual Código Civil, que vige desde 2003, negligentemente, apenas incorporou a regulamentação das uniões estáveis, o título III, no Livro IV, do Direito de Família, preterindo as famílias monoparentais, e limitando-se a transcrever os dispositivos da legislação anterior. No dizeres de Luciana Faísca Nahas, “mesmo sendo posterior à Constituição, o Código Civil não correspondeu às expectativas dos operadores do direito, não conseguindo compreender a grandeza da proteção constitucional à família”. E complementa que, pelo fato de ter iniciado sua tramitação em 1975, sob a égide de outros princípios constitucionais, “o novo Código Civil não conseguiu uma harmonização plena com os preceitos da nova Constituição. Sem dúvida, algumas emendas foram feitas, a fim de tentar adaptá-lo aos novos paradigmas familiares, mas não foram suficientes, porque foram pontuais e não sistemáticas” (NAHAS, 2011. p. 96).

A lei civil não acompanha a modernidade do constituinte ao não reconhecer as demais formas de família existentes, e dedicando ao casamento atenção acurada, disposta em 110 artigos, tratando o referido instituto como ideal de vida e estabilidade na vida de todos os cidadãos. Segundo Maria Berenice Dias, “no atual estágio da sociedade, soa bastante conservadora a legislação que, em sede de direito das famílias, limita-se a regulamentar, de forma minuciosa e detalhada, exclusivamente o casamento, como se fosse o destino de todos os cidadãos”.

Como visto, foram de grande magnitude os avanços da Constituição Federal – e, em alguns aspectos, do Código Civil –, ao abraçar as famílias monoparentais e as constituídas por uniões estáveis. Todavia, aí não se limitam as relações afetivas merecedoras de tutela, e muito menos foi essa a intenção do constituinte, que abrigou em sua proteção tantos outros arranjos, mediante seu propositado rol não taxativo de entidades familiares, o qual será em breve analisado. Deveras, não se pode excluir da proteção Estatal quaisquer entidades que satisfaçam os requisitos atinentes ao âmbito familiar, quais sejam, afetividade, estabilidade e ostensividade, que também é tema para o próximo capítulo. Assim, tal qual a união estável, em que ausente a celebração do matrimônio, e a família monoparental, formada pela figura de um dos pais juntamente com seu(s) filho(s); não se pode negar natureza de família ou tutela jurídica às entidades constituídas pela universalidade dos filhos, sem a presença dos pais; ou às entidades formadas por pessoas do mesmo sexo, como nas uniões homossexuais. Passemos, assim, ao trato esmiuçado do tema.

2.2 Da Família Pós-Constituição de 1988

Não foi por acaso que o constituinte deixou de conceituar o que vem a ser família. Longe de ser impropriedade legislativa, o não fechamento da família em conceito visou ampliar a abrangência da sua proteção, já que nas Constituições anteriores tal proteção advinha somente mediante sua constituição pelo casamento. Compartilha da mesma ideia Luciana Faísca Nahas, quando afirma que a ausência de definição da família dentro do corpo da Constituição “foi, sem dúvida, uma opção do constituinte. A limitação anterior impediu a conexão das Constituições anteriores com a sociedade em razão da inflexibilidade, sendo necessária a alteração do texto para acompanhar as mudanças comportamentais em relação à família”. E ainda:

A norma que regula a proteção à família na Constituição de 1988 é, sem dúvida, aberta, ao garantir, no caput do art. 226, a proteção à família como base da sociedade, sem delimitar à qual família, tampouco definir o que é família, deixando ao intérprete a tarefa de conceituá-la. Assim possibilitou a proteção de novas formas de conjugalidade, não advindas exclusivamente do casamento civil ou religioso (NAHAS, 2011, p. 90).

Como se observa, as inúmeras transformações nas esferas políticas, econômicas, e sociais produziram profundos reflexos nas relações jurídico-familiares. Os princípios fundamentais e seus ideais de dignidade, liberdade, igualdade, humanismo, pluralismo e democracia, dentre outros, voltaram-se à proteção da pessoa humana, e, em corolário, ao respeito, aceitação e amparo às minorias guetificadas e marginalizadas, a exemplo das sociedades homoafetivas. Houve, assim, uma constitucionalização das diferenças e supervalorização do afeto, hoje elemento essencial para configuração da entidade familiar, propiciando no âmago da sociedade a idealização eudemonista tão desejada nos relacionamentos afetivos. Neste contexto dinâmico de grande mobilidade de formas familiares, “novos velhos”[6] modos de convívio – relacionamentos antes clandestinos e marginalizados – vem ganhando visibilidade, sendo reconhecidos, efetivando-se, assim, o pluralismo das relações familiares, consagrado pela Constituição Federal. Observa com perspicácia Ana Carla Harmatiuk Matos (2011):

(...) ao afirmar-se estar a união estável reconhecida (expressão contida no § 3º do art. 226), o verbo empregado – qual seja: reconhecer – é emblemático porque significa o acolhimento de algo já anteriormente existente. Do mesmo modo, ao tratar da família monoparental, a expressão ‘também’ é significativa para aludir inclusão, acréscimo; portanto, não há exclusividade na ideia tratada (MATOS, 2011).

Nesse mesmo diapasão, o respeitável Paulo Luiz Netto Lôbo (2004) assevera que:

A regra do § 4º do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão, sendo esse o sentido do termo ‘também’ nela contido. ‘Também’ tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto. Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductibilidade e adaptabilidade (LÔBO, 2004).

É importante ressaltar que os sensatos avanços da Constituição Federal quanto às entidades familiares não se limitam à inclusão de novos arranjos na sua redoma protetiva, mais que isso, a Constituição os equipara ao casamento enquanto instituto apto à constituição da família. No tocante à união estável, houve muito burburinho na doutrina acerca da existência, ou não, de hierarquia em relação ao casamento. Quando da promulgação da Constituição de 1988, alguns autores criam que as “famílias” constituídas pelo casamento apresentavam certa “superioridade” em relação às “entidades familiares” constituídas pela união estável. Tal tese, hoje rechaçada, embasava-se na distinção das duas expressões, pelo fato de o constituinte fazer menção a ambas; e na possibilidade da conversão da união estável em casamento, o que, segundo aquela tese, relegava a união a uma condição inferior em relação ao casamento, hierarquicamente superior. Assim, uma vez convertida em casamento, a “ex” união estável galgaria maior prestígio social e jurídico. Descabido e preconceituoso tal entendimento. Já sabemos que a Constituição não mais admite qualquer discriminação no seio familiar, seja advinda da parentalidade ou da conjugalidade[7], vez que consagrou a supremacia da dignidade da pessoa humana, lastreada no princípio da igualdade e da liberdade, fundamentais aparelhos do novo Estado Democrático de Direito. Esse diapasão é sintetizado nos termos de Luciana Faísca Nahas:

A união estável está ao lado do casamento, não havendo hierarquia entre as entidades familiares. Evidentemente que a formação é diferenciada, já que o casamento pressupõe diversas formalidade e solenidades, e a união estável depende da configuração de uma situação fática. Contudo, embora não se assemelhem quanto à origem, merecem igual proteção como família que são. O respeito ao pluralismo e à igualdade são fundamentos da Sociedade Constitucional, sendo inadmissível qualquer discriminação (NAHAS, 2011, p. 92-93).

Da mesma forma, a expressa previsão da proteção à família monoparental, na qual inexiste sociedade conjugal, posto que formada por um dos pais e sua prole, trouxe importante consequência jurídica: “o conteúdo desta norma pôs fim à exclusão da proteção como famílias de agrupamentos em que não há conjugalidade. ‘Neste sentido amplo, observa-se a família como reflexo de uma realidade social, onde pessoas solteiras ou descasadas vivem sozinhas com os filhos, sem a permanência do parceiro amoroso” (NAHAS, 2011, p. 93) (com grifos no original).

Repise-se que, sem embargo das expressas previsões constitucionais quanto às uniões estáveis e às famílias monoparentais nos §§ 3º e 4º, respectivamente, do art. 226 da Constituição Federal; o constituinte objetivou abrir o leque da proteção constitucional a todos os arranjos familiares possíveis, desde que tal estrutura se apresente ostensiva e perenemente à sociedade, e que em seu âmago vigore o afeto, como elemento criador e fundamental da entidade familiar.

2.2.1 O Afeto Como Elemento Propulsor da Família e o Pluralismo das Entidades Familiares

A fim de melhor compreendermos o pluralismo das relações familiares no ordenamento nacional, derivado da não exaustividade das formações previstas no artigo 226 da Constituição Federal, Paulo Luiz Netto Lôbo, em artigo intitulado “Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus”, constatou a existência de diversas estruturas de convivência na sociedade, a partir de um levantamento anual denominado Pesquisa Nacional de Domicílios por Amostragem (PNAD), conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e que foi utilizado como subsídio para elaboração de políticas públicas. Segundo o autor, os dados da pesquisa revelam perfis de relações familiares brasileiras cada vez mais distanciados dos modelos legais e tradicionais, e aponta, entre outras, o que chama de “unidades de vivência”:

a) Par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos;

b)  Par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de afetividade;

c)  Par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união estável);

d) Par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (união estável);

e) Pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental);

f) Pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade monoparental);

g) União de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de irmãos, após falecimento ou abandono dos pais;

h)  Pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual ou econômica;

i)  Uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual; 

j) Uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou de ambos companheiros, com ou sem filhos;

k) Comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular.

O autor destaca o traço comum a todas essas formas de convívio domiciliar, vale dizer, os requisitos fundamentais que caracterizam cada estrutura familiar ou “unidade de vivência”, são eles: estabilidade, ostensibilidade e afetividade. A estabilidade condiz com a constância, permanência e equilíbrio da estrutura de convívio, a durabilidade e solidez do vínculo familiar, excluindo-se daí os relacionamentos fortuitos, eventuais ou descomprometidos, sem comunhão de vida. A ostensibilidade ou ostensividade representa a visibilidade e a publicidade da relação entre os conviventes, de modo que a unidade familiar se mostre ou se apresente como tal ao conhecimento do público, vale dizer, de forma pública e evidente. A afetividade, enfim, importa nos sentimentos que unem o elo entre os conviventes, de afabilidade, acolhimento, reciprocidade, e amor. É causa e fim último de qualquer entidade familiar, independente da sua estruturação. Nas palavras de Paulo Luiz Netto Lôbo (2004), a afetividade é “fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico e escopo indiscutível de constituição de família”.

Destarte, hodiernamente, a família, que se desvinculou do casamento, apresenta várias formas de constituição, pois tende a ser reconhecida e identificada pelos vínculos afetivos que norteiam sua formação, devido ao seu caráter plural, atribuído pela Constituição Federal de 1988. Ana Carla Harmatiuk Matos (2011) caracteriza o afeto familiar:

Cabe, então, verificar se as características próprias da afetividade familiar estão presentes. Isso porque é dentro da família que os sujeitos oferecem e recebem suporte psicológico, fazem companhia uns aos outros nas atividades privadas e sociais; há auxílio econômico mútuo, com o consequente amparo nas adversidades financeiras; ocorre a divisão das atribuições necessárias no atendimento da casa, da alimentação e das demais atividades cotidianas; verifica-se o apoio de um para conceder a possibilidade de desenvolvimento profissional ao outro; há troca de afetividade entre os parceiros e entre eles e os filhos, bem como comum se torna a divisão das tarefas de socialização das crianças. Estes fatores estão presentes nos diversos modelos de entidades familiares.

A autora ainda atenta para o fato de que, com o transcurso do tempo, novas formas privilegiadas de afeto informarão os novos modelos de família que o direito deverá contemplar, vez que a Constituição de 1988 não apresenta um rol taxativo de possibilidades de entidades familiares, já que as mesmas brotam das relações sociais, não sendo criadas conjuntamente com as aprovações dos textos normativos (MATOS, 2011).

A afetividade é considerada pela doutrina como princípio implícito e específico do direito de família, podendo também ser encontrado a partir das interpretações sistemática e teleológica dos dispositivos constitucionais. Neste sentido, aduz Paulo Lôbo:

São encontrados na Lei Maior fundamentos substanciais do princípio da afetividade, característicos da aguda evolução social da família. Para citar apenas algumas situações: a igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); a adoção – escolha afetiva – elevou-se a plano igualitário de direitos (art. 227, §§ 6º e 7º); a família monoparental, natural ou adotiva, possui a mesma dignidade e é tão protegida quanto à família matrimonializada (art. 226, § 4º); a convivência familiar (fala-se em família, mas não necessariamente em família biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).

O constituinte de 1988 relegou a segundo plano os aspectos biológicos e protetivos das relações patrimoniais, a fim de permitir estrear e reinar o princípio da afetividade no centro das relações familiares. Sobre o tema, Marianna Chaves conclui que, na atualidade, “o afeto passou a possuir valor jurídico e o princípio a afetividade é um dos elementos norteadores do Direito das Famílias. A família transmudou-se, despontando novos modelos familiares, (...) mais flexíveis em diversos aspectos, mais sujeitas ao desejo e menos às regras” (CHAVES, 2011, p. 79).

Assume-se, dessa forma, uma realidade familiar real e fidedigna, na qual os laços de afeto auferem maior brio sobre os fatores de parentesco genético ou sobre as uniões formalizadas pelo casamento entre homem e mulher. Com sagacidade, afirma Maria Berenice Dias:

Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual (DIAS, 2011.) (sem grifo no original).

De fato, é mister do Estado tutelar toda e qualquer formação familiar, desde que presentes o afeto e a relação estável, duradoura, e pública, isto é, ostensiva. O legislador constituinte não indigita qual determinado tipo de família é merecedora de tutela constitucional, pois é objeto de tal tutela “a família”, genérica e indiscriminadamente, vez que a referência constitucional é norma de inclusão, e, como tal, não pode preterir qualquer entidade familiar. Nesse diapasão, posiciona-se Paulo Luiz Netto Lôbo: “a interpretação de uma norma não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos”. E ainda: “consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada”.

Deste modo, o princípio da pluralidade das entidades familiares preconiza que vários são os modelos de formações familiares produtores de efeitos jurídicos, já que a unicidade da forma matrimonial não mais se coaduna com as práticas afetivas da sociedade coeva, de maneira a configurar discriminação injustificada um tratamento inferior a qualquer possibilidade viável de entidade familiar segundo os valores do atual sistema jurídico (MATOS, 2011).

2.2.1.1 O Reconhecimento da União Homoafetiva como Entidade Familiar pelo STF

Ao se referir à família, a Constituição não limita sua formação a casais heteroafetivos, à celebração civil, nem à formalidade cartorária, e muito menos à liturgia religiosa. Trata-se, portanto, de uma interpretação constitucional não reducionista do conceito de família[8]. Depreende-se daí que a Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo.

Tanto é assim, que em 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu unanimemente, em decisão histórica, a união estável entre casais homoafetivos, no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277-DF[9] e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ[10], ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo Governo do Rio de Janeiro. O lendário julgamento que reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar representou o divisor de águas no campo do direito homoafetivo, vislumbrando grande conquista dos pares homoafetivos. Como a decisão foi proferida em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, tem caráter vinculante e eficácia erga omnes.

Em breve síntese do julgado, o ministro relator Ayres Britto julgou procedentes ambas as ações, votando no sentido de dar ao artigo 1.723[11] do Código Civil interpretação conforme a Constituição Federal, de modo a excluir qualquer significado que obste o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. O ministro argumentou, inter alia, que a Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso IV, veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual, pois “o sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, de sorte que qualquer depreciação da união estável homoafetiva afronta a Carta Magna, seja a “discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles”.

Todos os demais ministros votaram pela procedência da ADPF 132 e da ADI 4.277, reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar e atribuindo-lhe os mesmos direitos e deveres concernentes à união estável entre homem e mulher, regulada no art. 1.723 do Código Civil de 2002. Marianna Chaves (2011) observa que “talvez nunca se tenha visto a Suprema Corte brasileira com um posicionamento tão homogêneo e consensual, ao menos no que diz respeito ao resultado, ao considerar que a união homoafetiva é, sim, um modelo familiar e a necessidade de repressão a todo e qualquer tipo de discriminação”.

Por sua vez, Maria Berenice Dias, exalta a decisão do Supremo, elevando-a a maior conquista na seara do direito homoafetivo:

No âmbito do direito homoafetivo, não existiu ano com maiores ganhos. Certamente entrará na história como o ano que consolidou a existência de um novo ramo do direito. O julgamento unânime do Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar, ratificou 10 anos de avanços no âmbito do Poder Judiciário, que já havia acumulado mais de mil decisões assegurando um punhado de direitos à população LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e bissexuais. (...) Todas essas conquistas permitem dizer que no ano de 2011 a Justiça, em boa hora, retirou a homoafetividade do armário!

Houve ministros que seguiram na íntegra o voto do ministro relator, Ayres Britto, defendendo a interpretação conforme a Constituição, tal qual as pretensões postuladas em ambas as ações – APDF 132 e ADI 4.227. Outros, entretanto, a exemplo do ministro Ricardo Lewandowski, divergiram da referida fundamentação, obtemperando que a união entre pessoas do mesmo sexo não poderia ser reconhecida como união estável homoafetiva, mas sim união homoafetiva estável, “mediante um processo de integração analógica”, e identificando-a como um quarto gênero de entidade familiar, não previsto no rol encartado no art. 226 da Lei Maior. Este, inclusive, o posicionamento há muito defendido por Paulo Luiz Netto Lôbo (2006), ao aduzir, quanto às uniões homoafetivas[12]:

(...) não vejo necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente admissível quando constituída por homem e mulher (§ 3º do art. 226). Os argumentos que tem sido utilizados no sentido da equiparação são dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria.

Aduziu-se também que a união homoafetiva como entidade familiar é constitucional e possui baluarte nos direitos fundamentais da Carta Magna. Apontou-se a existência de lacuna legislativa a ser suprida mediante analogia com o instituto que lhe seja mais semelhante, a união estável. Argumentou-se ainda que o regime jurídico da união estável entre homem e mulher deveria ser aplicado extensivamente às uniões homoafetivas. Inobstante tenham sido adotados diversificados vieses nas fundamentações dos ministros votantes, todos os entendimentos levaram a uma mesma conclusão, qual seja, a elevação da união homoafetiva à categoria de união estável, bem como a sua submissão ao regime jurídico desta.

Por oportuno, e considerando a relevância da legendária decisão que equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis entre homem e mulher, estendendo àquelas os mesmos direitos e deveres originários destas últimas, convém aqui transcrever o julgamento ementado do Supremo Tribunal Federal. Vejamos:

Ementa: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.(ADPF 132, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001)


3 DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Valendo-se do legado aqui estudado do poliformismo familiar e da afetividade como elemento propulsor da entidade familiar, posto que valor maior da mesma, passemos ao trato da repersonalização do direito de família, que, sem embargo de sua imbricação com o instituto da família discutido em linhas atrás, merece capítulo próprio face à sua magnitude e importância quanto à possibilidade do casamento homoafetivo.

Os autores familistas tradicionais adeptos da teoria da inexistência do casamento homoafetivo outorgavam especial importância aos efeitos do casamento apurados no âmbito de responsabilizações econômicas e patrimoniais, bem como na função da família diante do Estado e da moral religiosa. Não se vislumbrava o devido valor à afetividade, elemento substancial caracterizador da entidade familiar, que deve viger nas relações domésticas, e que se apresenta como ponto fundante e escopo da família.

A fim de corroborar esse entendimento, Jorge Medeiros (2008) colaciona excertos de posicionamentos de alguns daqueles autores, aos quais denomina “tradicionalistas”. Ei-los, pois, sinteticamente:

“Relações pessoais, patrimoniais e assistenciais – são os três setores em que o direito de família atua” (Caio Mário Pereira, 2004). “O direito de família tem por objeto a exposição dos princípio jurídicos que regem as relações de família, quer quanto à influência dessas relações sobre as pessoas, quer sobre os bens” (Pontes de Miranda, 2001). “A família se apresenta, portanto, como instituição que surge e se desenvolve do conúbio entre o homem e a mulher e que vai merecer a mais deliberada proteção do Estado, que nela vê a célula básica de sua organização social” (Sílvio Rodrigues, 2002). “Esse direito [direito de família], que tem por objetivo tutelar o grupo familiar no interesse do Estado, apresenta importantes características. (...) A parcela mais ponderável de sua estruturação recebe da moral e da religião as normas que lhe regulam a constituição, bem como as relações entre seus membros” (Washington de Barros Monteiro).

Ato contínuo, Jorge Medeiros sustenta que esse não é o papel do Direito de Família coevo, pois deve-se procurar “destacar o caráter eudemonista da família e da interpretação que deve guiar o Direito de Família, consubstanciada na primordialidade da realização individual de cada um dos componentes da entidade familiar”. Em idêntica senda, Luis Edson Fachin (1999) ensina que a atual concepção de família compreendida pelo novo Código Civil – “código constitucional” – apresenta o fortalecimento de “relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Proclama-se a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas sim a família e o casamento é que existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade”. No mesmo sentido, também Paulo Lôbo disciplina:

A família atual brasileira desmente essa tradição centenária. Relativizou-se sua função procracional. Desapareceram suas funções política, econômica e religiosa, para as quais era necessária a origem biológica. Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. Sendo assim, é exigente de tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução; a autorresponsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com reconhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gêneros; a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, como pessoas em formação; o forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. Em trabalho que dediquei ao assunto, denominei esse fenômeno de repersonalização das relações familiares. É o salto, à frente, da pessoa humana no âmbito familiar (LÔBO, 1999).

3.1 Da Constitucionalização do Direito Civil

De acordo com Jorge Medeiros, os antigos valores consagrados à família – patrimoniais, econômicos, religiosos e mesmo políticos – perderam espaço para a afetividade e a realização pessoal como cernes das entidades familiares em função da adequação das leituras de Direito de Família ao atual paradigma jurídico. Segundo ele, a repersonalização do Direito de Família dialoga com uma mudança ainda maior ocorrida no âmbito jurídico: a constitucionalização do Direito Civil. Vejamos:

O Direito Civil é fruto da adequação da interpretação jurídica ao paradigma do Estado Democrático de Direito previsto pela Constituição da República, paradigma esse que concede importante dimensão aos princípios constitucionais dentro do ordenamento e na sua relação com os diversos ramos do Direito, superando, dessa forma, leituras tradicionalistas que defendiam a ideia de desnecessidade de adequação do ramo civilista aos princípios presentes na Constituição (MEDEIROS, 2008, p. 40).

Segundo Luis Roberto Barroso, o conceito de família tem sofrido importantes mudanças. Nos dizeres do autor:

A constitucionalização do direito deslocou a ênfase do instituto para os aspectos existenciais, em substituição às questões patrimoniais. Mais importante ainda é a caracterização que tem sido feita da família como meio de promoção – ambiente privilegiado – para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, e não mais como um fim em si mesmo ou um mero símbolo de tradição (BARROSO, 2006).

A constitucionalização do Direito Civil consiste, assim, na interpretação da lei civil conforme a Constituição Federal, e não o reverso, vale dizer, a interpretação da Constituição segundo o Código Civil, como ocorria e ainda ocorre com frequência[13]. Não é outra a razão porque os adeptos da teoria do casamento inexistente, que em breve será aqui aventada, obstinam encontrar fundamento para a putativa vedação ao casamento homoafetivo. Com efeito, aqueles autores realizam uma leitura civilista da Constituição, e não uma leitura constitucional do Código Civil, como se este, ao invés daquela, fosse a lei maior, a base sólida da estrutura do ordenamento jurídico pátrio.

A constitucionalização do Direito Civil submete o direito positivo à observância dos fundamentos de validade, dos princípios e disposições estabelecidos pela Constituição. Paulo Lôbo salienta que a constitucionalização “é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”.

3.1.1 A Reconstrução da Dicotomia Público e Privado

Analisando a repersonalização do Direito de Família sob outra ótica, Jorge Medeiros explica que “a compreensão da constitucionalização do Direito Civil passa pelo entendimento da reconstrução dos significados da dicotomia público e privado dentro dos paradigmas de Estado construídos ao longo da experiência constitucionalista”.  São três os paradigmas constitucionais: Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. Segundo o autor, os entendimentos desenvolvidos na seara do direito civil e do direito de família nos contextos desses três paradigmas permitem desenvolver uma “abordagem cidadã, contemporânea e constitucionalmente adequada para o tratamento jurídico dispensado a relações afetivas e projetos de compartilhamento de vida entre pessoas do mesmo sexo”.

Ainda sobre a superação da dicotomia direito público e direito privado[14], Ana Carla Harmatiuk Matos preleciona que não mais se verifica a demarcação de espaços jurídicos nem a separação de princípios e regras de forma absoluta. Segundo ela, essa mudança de cenário é decorrente dos novos valores que, aos poucos, foram sendo incorporados ao contexto sócio-jurídico e, com isso, as Constituições passaram a açambarcar os temas há muito tidos como privados, inaugurando-se, assim, a privatização do direito público e a propagação de “um direito positivo principiológico”. Nas suas palavras, “a tutela jurídica de direitos – partindo do valor da dignidade da pessoa humana e apoiada à concepção de um direito civil constitucional – relaciona-se com a percepção de que, na atual ordem do sistema jurídico, supera-se a divisão absoluta entre direito público e direito privado”.

Para além disso, a autora prevê essa perspectiva civil-constitucional do ordenamento jurídico como a construção de um outro direito privado, formado pela conexão entre o direito constitucional e o direito civil, mas com peculiaridades que o diferenciam de ambos. Nas palavras da autora:

Traduz-se, assim, necessária uma visão interdisciplinar, mormente no que tange ao direito civil constitucional. Nesse novo momento histórico-jurídico, marcado por uma diversa metodologia civilística, esse novo viés não deve significar simplesmente uma justaposição entre o direito civil clássico e o direito constitucional. Trata-se da construção de outro direito privado, formado por intermédio da comunicação entre o direito constitucional e o direito civil – no entanto deles se diferenciando. Não se trata mais de uma normativa codificada a pretender a completude e a transposição de seu tempo; contrariamente, abre-se um espaço para a construção (MATOS, 2011).

3.2 Da Releitura Constitucional do Casamento Civil

Ana Carla Harmatiuk Matos explica que, diante dessa perspectiva civil-constitucional, o papel da codificação do direito civil perde sua centralidade, a qual passa a ser ocupada pela Constituição. Não devia se diferente, vez que ela está no ápice da hierarquia das fontes normativas. Assim, os comandos civilísticos em dissonância com a Constituição Federal “estão tacitamente revogados ou, se for o caso, devem adequar-se à norma superior. Dessa maneira, toda a legislação civil em vigor reclama uma ‘releitura’, sob o prisma constitucional” (MATOS, 2011).

Por conseguinte, conforme a autora, em razão do ordenamento constitucional atender aos valores personalísticos, ele oferece aportes suficientes para os efeitos jurídicos da união homoafetiva. Em corolário, e em função da articulação axiológica dos princípios do direito civil constitucional, a Constituição Federal proporciona suporte ao próprio casamento homoafetivo.

A pluralidade de entidades familiares se impõe em função do advento do novo direito de família, voltado para a realização personalística de seus membros, e denominado de “repersonalização ou personificação do direito civil”. O referido contexto ressalta a valorização do princípio da dignidade da pessoa humana, tido como elemento propulsor e de convergência do sistema jurídico, de sorte que todas as demais normas devem observar a dignidade do ser humano. Dessa forma, “os aspectos personalísticos das pessoas devem ser o núcleo fundamental do sistema jurídico e a principal finalidade da proteção estatal” (MATOS, 2011).

Ultimo essa breve análise da repersonalização do direito civil com as elucidativas palavras de Marianna Chaves:

Em virtude da constitucionalização do direito civil, observar-se-á que houve superação de tentativas hermenêuticas “ao revés”, cujo intuito era o de compreender a Carta Magna e seus princípios a partir de normas existentes nos diplomas infraconstitucionais, como o Código Civil. A Lei Maior deve nortear todo o sistema jurídico, e não o contrário. Assim, em respeito, inter alia, aos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade, os vínculos homoafetivos merecem ser tutelados tal e qual as relações heterossexuais, em grau de paridade (...). O meio jurídico deve, além de respeitar as normas constitucionais, atender a uma visão mais abrangente da realidade, analisando e discutindo os vários aspectos que emergem dos relacionamentos afetivos, incluído-se os homoafetivos (CHAVES, 2011, p. 34).

Uma vez ventilada a repersonalização do direito de família a partir da constitucionalização do direito civil, doravante passemos a esmiuçar o baluarte constitucional que afaga o matrimônio homoafetivo.


4  DO BALUARTE CONSTITUCIONAL DO CASAMENTO HOMOAFETIVO

Como se aufere da análise da repersonalização do Direito de Família, a possibilidade do casamento homoafetivo se vislumbra. Em respeito ao arcabouço constitucional dos princípios fundamentais, notadamente a dignidade da pessoa humana; a legislação infraconstitucional se despe do seu pedantismo e se rende à imponência e magnitude da Lei Maior.

Se até então o casamento era instituto exclusivamente monopolizado pelo direito civil e fechado a qualquer tentativa de hermenêutica constitucional, agora, como quaisquer outros institutos previstos no ordenamento jurídico pátrio, ele é regulado na legislação infra, porém sob o amparo dos preceitos constitucionais e princípios fundamentais, donde entrevemos a possibilidade do casamento homoafetivo. Antes, porém, observemos tal possibilidade mediante a conversão da união homoafetiva.

4.1. Do Casamento Homoafetivo Mediante a Conversão da União Homoafetiva

Após a plausível decisão da Suprema Corte, que retirou a união homoafetiva da clandestinidade jurídica, reconhecendo-lhe existência no plano legal, mediante seu enquadramento no conceito abrangente de entidade familiar, o grande questionamento que atualmente se coloca é sobre a possibilidade de casamento entre os pares homoafetivos.

Ainda há muita polêmica e divergência entre os diversos Juízos e doutrinas, mas, se o Supremo equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, vedando qualquer discriminação entre ambas, e se a Lei Maior determina que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, por força da parte final do art. 226, § 3º, não se pode negar a conversão da união homoafetiva em casamento, ao arrepio da recomendação constitucional e da decisão do Supremo Tribunal, que, repise-se, tem caráter vinculante e efeito erga omnes.

Paulo Roberto Lotti Vecchiatti delata que esse debate se trata de uma “falsa polêmica”, posto que:

somente o preconceito (juízo de valor arbitrário) poderia impedir a conversão da união estável em casamento civil pelo simples fato de termos um casal homoafetivo solicitando tal conversão, seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista meramente formal, pois temos uma união estável em ambos os casos, donde a união estável deve ser passível de conversão em casamento civil em ambos os casos, seja quando formada por um casal heteroafetivo quanto quando formada por um casal homoafetivo (VECCHIATTI, 2011) (grifo do autor).

Maria Berenice Dias (2012) assegura que, em face desses fundamentos, muitos juízes vem autorizando a conversão da união em casamento, “mediante a prova da existência da união estável homoafetiva, por meio de um instrumento particular ou escritura pública. Assim, para casar, primeiro era necessária a elaboração de um documento comprobatório do relacionamento para depois ser buscada sua conversão em casamento”.

Trata-se, realmente, de discussão infundada, haja vista que a união homoafetiva, tal qual a união estável heteroafetiva, consiste em família conjugal, e esta, como se sabe, é objeto de proteção especial do Estado por força de determinação constitucional alocada no art. 226. Sabe-se, outrossim, que o casamento, em virtude dos seus amplos efeitos jurídicos, é o meio pelo qual a família é mais vastamente protegida pelo Estado. Portanto, embora seja uma faculdade do casal, o Estado tem obrigação de converter essa união em casamento quando requerida, e desde que, logicamente, presentes os requisitos caracterizadores do núcleo doméstico familiar: o vínculo afetivo, a continuidade, a ostensividade, e o intuito de constituir família. Deve agir assim por estar vinculado ao mandamento constitucional expresso no §3º do art. 226, bem como à determinação constante no art. 1.726 do Código Civil. Como conclui Paulo Vecchiatti:

Logo, devido ao reconhecimento pelo Supremo tribunal Federal da união homoafetiva como união estável constitucionalmente protegida e merecedora de “absoluta igualdade” relativamente à união estável heteroafetiva (consoante voto do Min. Ayres Britto), os cartórios de registro civil são obrigados a permitir a conversão da união estável homoafetiva em casamento civil a todos os casais homoafetivos que o desejarem (VECCHIATTI, 2011) (grifos no original).

É de extrema importância que o Estado reconheça a autoridade de tal conversão. Todavia, muito além de divisar o casamento homoafetivo pela conversão da união homoafetiva, o intuito desta pesquisa está em defender o casamento de forma primária, por meio da habilitação para o casamento de nubentes homossexuais diretamente junto ao Registro Civil, sem a necessidade de se formalizar a união estável para, só então, requerer sua conversão em casamento, o que demandaria muito tempo, bem como restaria desnecessário diante da possibilidade da contração direta do casamento mediante a habilitação junto ao Cartório de Registro Civil.

4.2. Do Casamento Homoafetivo Mediante a Habilitação Diretamente Junto ao Registro Civil

A possibilidade do casamento entre pares homossexuais requerido pela habilitação direta no registro civil também é entendimento defendido pelo Superior Tribunal de Justiça. Esta Corte, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.183.378-RS, proferido em 25 de outubro de 2011, pela primeira vez na história do país, acolheu o pedido de habilitação para o casamento entre duas mulheres diretamente junto ao Registro Civil, sem ser necessária prévia formalização da união para, só então, transformá-la em casamento. Embora não tenha sido a primeira decisão que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é reputada a mais significativa pela doutrina, já que proferida pela Corte cuja incumbência está na interpretação das leis federais.

A brilhante decisão proveu o recurso das autoras fundamentando, conforme o voto do ministro relator Luis Felipe Salomão, que a dignidade da pessoa em nada é alterada em virtude do uso da sua sexualidade, e que a orientação sexual do indivíduo, por não corresponder à convencionada pela maioria, não pode ser causa de exclusão da família homoafetiva da proteção jurídica representada pelo casamento. Em razão da imponente decisão do STJ, e sua substancial relevância para o objeto deste estudo, peço vênia mais uma vez para colacionar o julgado ementado do recurso em questão:

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF.

1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita. 

2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.

3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.

5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.

6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.

7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.

8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.

9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.

10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.

11. Recurso especial provido.

(REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012) (grifos meus)

Inobstante os avanços no âmbito do Judiciário, com a equiparação pelo STF das uniões homoafetivas às entidades familiares, com eficácia vinculante e erga omnes, bem como a primeira decisão do STJ consentindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo; a inércia do Poder Legislativo ainda enseja margem à insegurança jurídica em função de muitos julgadores ainda se aterem aos ditames da lei civil com dispositivos que fazem menção expressa a “homem e mulher”, acreditando que isso é suficiente para respaldar a impossibilidade do casamento homoafetivo no ordenamento pátrio, em evidente menoscabo aos princípios fundamentais estruturantes da Lei Maior. Além desta, outras teses são formuladas, embora incoerentes e facilmente derrubadas. Ocorramos a esta análise.

4.3 .Das Teses Contrárias ao Casamento Homoafetivo

As teses contrárias à abertura do instituto do casamento aos pares homoafetivos se fundamentam em questões inermes e facilmente rechaçadas, o que se passa de logo a ilustrar. Motivam-se, tais autores, inter alia, na ausência de lei expressa permissiva, o que pode – e deve – ser facilmente resolvido mediante a utilização de interpretação extensiva ou analogia, de acordo com o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), haja vista que o ordenamento veda o non liquet. Os referidos autores também se baseiam na ausência de capacidade procriativa do par homossexual. Este requisito, no entanto, já foi superado pela doutrina, e impugnado em linhas anteriores, por não constar no rol taxativo dos impeditivos matrimoniais do art. 1.521 do CC/2002, bem como pelo fato de não haver objeção ao casamento entre casais heterossexuais estéreis, e, ainda, em respeito à autonomia da vontade do indivíduo, que pode, por qualquer razão, optar por não ter filhos. Dentre as teses contrárias à instituição do casamento homoafetivo, a teoria da inexistência é a que apresenta maior amplitude e força quanto aos seus adeptos na doutrina e jurisprudência, razão pela qual, passo a tratá-la em minúcia.

4.3.1. A Teoria da Inexistência

Os doutrinadores e magistrados partidários da teoria da inexistência do casamento homoafetivo reputam-no inexistente, alicerçando-se, em geral, na cultura e na tradição jurídica nacionais, não sendo relevados argumentos com respaldo constitucional ou mesmo na legislação ordinária. Quando muito, sustentam tais juristas, que a interpretação dada aos artigos do Código Civil atinentes ao casamento é no sentido de se imputar tal instituto ao “homem” e à “mulher”, por tais termos, por vezes, virem expressos naqueles dispositivos. Atente-se para a observação de Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros (2008) acerca do conceito de casamento como união entre homem e mulher:

Essa definição de casamento que não possui previsão nem na Constituição da República nem no Código Civil, encontra-se enraizada na tradição jurídica nacional, sendo considerada conceito fechado, sem possibilidade de discussão. A literatura jurídica entende que o descumprimento da diversidade de sexos não estaria a acarretar “nulidade, nem anulação; foi [o casamento] pura materialidade de fato, sem nenhuma significação jurídica”, sendo, dessa forma, inexistente (MEDEIROS, 2008, p. 72).

Tal entendimento se demonstra claro no posicionamento de Pontes de Miranda (2004 apud MEDEIROS, 2008), para quem “a união, ainda quando solenemente feita, entre duas pessoas do mesmo sexo, não constitui matrimônio, porque ele é, por definição, contrato do homem e da mulher, viri et mulieris coniunctio, com o fim de satisfação sexual e procriação” (sem grifos no original). Continua o autor aduzindo que o casamento inexistente entre pessoas do mesmo sexo assim o é por violação a pressupostos – entre eles a heterogeneidade de sexos – que “são evidentes e tem valor absoluto, são consubstanciais ao valor do matrimônio, de modo que os Códigos nem sequer os mencionam” (sem grifos no original).

Ainda sobre a teoria do casamento inexistente, Maria Helena Diniz (2007) salienta: “o casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes”. E completa: “se duas pessoas do mesmo sexo, como aconteceu com Nero e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir que o matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial”.

Também Washington de Barros Monteiro (2011) compactua da ideia: “em matéria de casamento, ocorrem também hipóteses em que se verifica a inexistência do ato. Assim, se porventura se unissem duas pessoas do mesmo sexo, (...) ter-se-ia ato inexistente, porque do matrimônio é condição vital a diversidade de sexo dos nubentes” (grifei). Outrossim, posiciona-se Ruggiero (1972 apud MEDEIROS, 2008): “a diversidade de sexos é um elemento exigido pela própria natureza, sobre o qual não é preciso insistir, visto que só casos teratológicos ou de hermafroditismo (aliás, bem raros) podem existir a aplicação deste requisito, casos esses que serão resolvidos pelo sexo que prevaleça” (grifei).

Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 142-143), dispondo acerca da diversidade de sexos enquanto requisito para o casamento, assevera: “esse posicionamento é tradicional e já era salientado nos textos clássicos romanos. A diversidade de sexos constitui requisito natural do casamento, a ponto de serem consideras inexistentes as uniões homossexuais”. E ainda: “é intuitivo que, em todas as civilizações e em todos os sistemas jurídicos, os legisladores, ao pensarem o negócio jurídico típico que é o casamento, idealizam-no a partir de um modelo que pressupõe a diversidade de sexos. (...) É uma condição de tal modo evidente, que dispensa regulamentação legislativa” (grifos meus).

Seguem esta mesma linha de pensamento tantos outros clássicos juristas, a exemplo de Sílvio de Salvo Venosa, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, Álvaro Vilaça de Azevedo[15], dentre outros.

Em que pesem aos respeitáveis posicionamentos dos eminentes doutrinadores, observa-se das asseverações apresentadas que a teoria do casamento inexistente em função da homogeneidade de sexos não apresenta respaldo legal ou constitucional, mas sustenta-se, tão só, na cultura e tradição das sociedades ocidentais e na tautologia doutrinária e jurisprudencial que se reproduz ao longo dos tempos por justamente se refletir nestes mesmos elementos sociais. Mantém-se um discurso circular acerca da vedação ao casamento homossexual, ao afirmar-se ser impossível sua aceitação pela literatura jurídica e pela jurisprudência pelo simples fato de essas mesmas fontes do direito assim o entenderem. Deste modo, adotam a diversidade de sexos como verdade absoluta, restando impossível obtemperar contra tal assertiva, bem como impermeável sua discussão. Esclarecedoras são as palavras de Medeiros (2008):

Observa-se uma explicação tautológica, na qual a suposta impossibilidade sustentada pelos autores possui como fundamento a construção de tal entendimento pela própria literatura, configurando-se, dessa forma, uma postura dogmática, que, nos dizeres de Lyra Filho, se pretende “verdade absoluta, que se pretende erguer cima de qualquer debate e, assim, captar a adesão, a pretexto de que não cabe contestá-la ou a ela propor qualquer alternativa”. A diversidade de sexos dos celebrantes do casamento se apresenta como um tabu, característica excluída das possibilidades de discussão e re-significação (sic) perante o ordenamento jurídico.

Marianna Chaves (2011) assente deste entendimento, aduzindo que tais argumentos são frágeis, e que não há como encontrar-se motivos racionais para a manutenção do monopólio do casamento heterossexual. “Tais argumentos se centram em uma determinada compreensão de como as coisas sempre foram e como são neste momento. Olvidam-se que a sociedade está em movimento constante e a lei e as normas não podem restar estáticas, enraizadas em juízos ultrapassados e em desacordo com o momento atual vivido pelos povos”. Arguciosa a observação da autora ao afirmar que o atrelamento à questão da tradição é falível[16]:

Um exame, ainda que superficial, da história da Humanidade, revela que este argumento é falacioso. A instituição do casamento civil, como a maioria das instituições humanas, sofreu enormes mudanças ao longo dos últimos dois milênios. Se casamento fosse o mesmo atualmente, como o foi nos últimos dois mil anos, seria possível casar-se aos doze anos de idade, com uma pessoa desconhecida, por via de um casamento “arranjado”; o marido ainda poderia vislumbrar a própria esposa como propriedade e dispor dela à vontade; ou uma pessoa poderia ser condenada à prisão por ter se casado com uma pessoa de raça diferente. E, obviamente, seria impossível obter um divórcio, apenas para citar alguns exemplos.

Com efeito, não se deve olvidar o dinamismo da realidade do direito, que está em constantes movimento e mutação, acompanhando as relações sociais, culturais, econômicas e políticas ao longo da história, e amoldando suas normas às novas exigências e necessidades concretas da vida dos sujeitos sociais. “A evolução social traz em si novos fatos e conflitos, de modo que os legisladores diariamente passam a elaborar novas leis; juízes e tribunais, de forma constante, estabelecem novos precedentes, e os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida” (DINIZ, 2007).

Convém esclarecer que o ora exposto aqui não se presta a afirmar que as atuais definições de casamento não são razoáveis ou que o respeito pela tradição é ilegítima, mas é imperioso afirmar que a definição, a tradição e a religião, por si, não constituem bases racionais para alicerçar a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (CHAVES, 2011).

No entanto, há quem indigite na legislação ordinária fundamento à teoria da inexistência do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em razão dos artigos 1.514, 1.517, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil[17] de 2002, vez que os mesmos trazem a menção expressa dos termos “homem” (ou marido) e “mulher”, proibindo, tais dispositivos, segundo aqueles autores, que dois homens ou duas mulheres contraiam núpcias entre si, nos termos da lei civil.

Tais dispositivos, no entanto, especialmente após a repersonalização do direito de família, não devem ser compreendidos autonomamente ou de forma independente dos demais dispositivos civis e constitucionais, como todo e qualquer dispositivo do ordenamento jurídico, entendido como sistema que é. Já dizia Drummond que “as leis não bastam. Os lírios não nascemda lei” [18].

Ao revés, deve-se haver um confronto sistemático com vários outros dispositivos, uma interpretação harmônica e dinâmica de tais normas em consonância com a CF/1988 e com a legislação infraconstitucional, para que, da análise conjunta de todos eles, possa ser extraída a norma de direito aplicável. Daí se depreende que os mencionados dispositivos não vedam expressamente o casamento homoafetivo, e não é legítimo forçar uma proibição implícita a esse casamento, sob pena de amolgar eminentes princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a não discriminação, o pluralismo das entidades familiares e o livre planejamento familiar.

Tendo em vista a importância emancipatória do “texto constitucional, abertamente discutido como foi o nosso, não deve o jurista preteri-lo por estar circunscrito ao positivismo estrito” (MATOS, 2011).

De fato, a menção à expressão “homem e mulher” em referência ao casamento, trata-se de mera presunção, pois não há fundamento normativo que legitime a diversidade de sexos como requisito de existência do casamento, nem o Código Civil nem a Constituição Federal apresentam qualquer definição do instituto, nem determinam a diversidade de sexos como requisito para a existência do casamento (CHAVES, 2011). A homogeneidade de sexos não está dentre as causas de impedimento elencadas pela lei Civil (art. 1.521).

Por outro lado, não merecem guarida as alegações de que a dualidade de sexos seria pressuposto tão óbvio e manifesto para a existência do casamento, apto (o pressuposto) a ser legitimado mesmo ante a omissão legislativa, tese, esta, defendida por Ruggiero, Carlos Roberto Gonçalves, Álvaro Villaça de Azevedo, Maria Helena Diniz, Silvio de Salvo Venosa e Orlando Gomes, todos adeptos da teoria do casamento inexistente[19].

Tal entendimento fere os princípios da legalidade e da segurança jurídica, segundo os quais, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988). Por tais princípios, somente uma lei pode restringir direitos “para que existam critérios objetivos, expressamente fixados, de maneira que o povo saiba com precisão quais são os pressupostos necessários aos atos jurídicos, o que resta afrontado pela teoria da inexistência de atos que existiram no mundo fático, uma vez que ela deixa tal fixação de pressupostos ao subjetivismo do intérprete” (VECCHIATTI, 2008 apud CHAVES, 2011, p. 216). Dessa maneira, conforme disciplina Marianna Chaves, em se desejando que determinado ato jurídico não produza efeitos, o mesmo deve ser inserido em alguma hipótese de nulidade ou anulabilidade, sob pena de não ter eficácia jurídica o afastamento dos efeitos jurídicos dele oriundos. “A proibição ou restrição são exceções e, por isso mesmo, necessitam serem provadas, ‘achar-se expressamente pronunciadas pela lei, e não por modo duvidoso, sim formal, positivo; tudo o mais é sofisma” (CHAVES, 2011, p. 218).

A autora ensina que a teoria do casamento inexistente, no Brasil, foi arquitetada em virtude da omissão legislativa e da recusa em se conceder validade ao casamento homossexual, apesar da inexistência de proibição para tal ato na lei, ou de um dispositivo legislativo que indique a inexistência do matrimônio. “Em território brasileiro, trata-se de uma construção meramente doutrinária, sem respaldo legal” (CHAVES, 2011, p. 216). Na mesma esteira, Paulo Roberto Lotti Vecchiatti (2008) brada que a teoria da inexistência “não passa de pura invenção doutrinária, sem qualquer embasamento legal que a fundamente, que se configura forma de discriminar e burlar a regra segundo a qual não há nulidade sem texto, que precisa, assim, respeitar os ditames da isonomia”.

A teoria do casamento inexistente, pretendida pacífica e de discussão impermeável, começou a ser obtemperada quando outros ordenamentos jurídicos passaram a prever o casamento entre pares homossexuais. A doutrina defensora do reconhecimento do casamento homoafetivo, no Brasil, fundamenta-se, inter alia, na lógica de que a expressão “o homem e a mulher” não possui o condão de impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois os impedimentos matrimoniais são as proibições expressamente elencadas no art. 1.521 do Código Civil, das quais não faz parte a homogeneidade de sexos. Acresça-se que a diversidade de sexos como pressuposto do casamento só teria razão de ser se, igualmente, a capacidade procriativa do casal fosse requisito para o casamento, o que não faz sentido, como já aventado. A referência a homem e mulher indica apenas a regulamentação do fato heteroafetivo, sem que isso se traduza em proibição do fato homoafetivo para a mesma finalidade, que deveria ser regulado por meio da analogia ou interpretação extensiva (CHAVES, 2011).

Em verdade, não deve haver “proibições implícitas” no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de se infringir os preceitos constitucionais da legalidade e da segurança jurídica, insculpidos no art. 5º, inciso II, da Carta Política de 1988. Nossa legislação civil limitou-se a regular o fato do casamento heterossexual, o que logicamente não significa que, ao mesmo tempo, vedou o casamento homossexual, apenas quedou silente, omissa, deixando este último instituto sem regulamentação. Por corolário, havendo lacuna na lei, deve-se aplicar o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Clama-se, dessarte, pela aplicação extensiva do art. 1.514 do CC/2002 ao casamento homoafetivo ou, entendo-se não existirem situações idênticas (um par com dualidade de sexos e outro com paridade de sexos), deve ser aplicada a analogia àquele dispositivo, pois os fatos são idênticos na sua essência, vez que o elemento que permeia ambas as uniões (homo e hetero) é o mesmo: o afeto.

Paulo Vecchiatti (2008) condescende e ratifica o entendimento, ressaltando que o valor – tido como dimensão do direito da Teoria Tridimensional[20] esposada por Miguel Reale – que se pretende resguardar na norma que regulamenta o casamento heteroafetivo não é a heterossexualidade, e sim o afeto, “o amor de duas pessoas que gera uma entidade familiar por meio de uma comunhão plena de vida e interesses, contínua, duradoura e com intuito de constituir família”. Amor, este, cuja essência não difere entre pessoas hetero e homossexuais. De fato, a heterossexualidade não é a única forma de expressão do sentimento humano.

4.4. Do Casamento Homoafetivo à Luz dos Princípios Constitucionais

4.4.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Conforme cediço por todos, a Constituição Federal alçou a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, CF/1988). Depreende-se daí que este princípio constitui o núcleo fundante, estruturante e essencial de todos os direitos fundamentais previstos na ordem constitucional. Nos alumiados dizeres de Ragazzi e Garcia, “qualquer Estado, portanto, que se queira democrático e de direito deverá eleger a dignidade da pessoa humana como alicerce dos direitos fundamentais encampados em sua Constituição, atribuindo-lhe conformação e proteção jurídica”. Tal princípio, no entanto, não constitui criação constitucional ou jurídica, vez que preexiste a qualquer tentativa especulativa jurídica, tal qual a própria pessoa humana. Como preleciona o notável jurista lusitano Gomes Canotilho (2003), “a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios”.

Como qualidade intrínseca da natureza do indivíduo, a dignidade é inalienável, irrenunciável, constitui elemento que qualifica o homem como tal, dele não podendo ser separado. “É algo que se reconhece, se respeita e protege, mas não que possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. (...) a dignidade independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos, mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade” (SARLET, 2002). Nesta mesma vereda, Ragazzi e Garcia disciplinam que, ainda que o homem aja de forma indigna, terá ele dignidade, vez que esta é qualidade intrínseca da natureza do homem, e, portanto, independe de merecimento:

A dignidade é, portanto, o atributo que faz com que a pessoa seja respeitada em toda sua existência e dimensão, independentemente das escolhas que, como ser racional, vier a fazer. Evidente que se essas escolhas forem ilícitas e contrárias à sociedade, a pessoa arcará com as consequências do ato, mas, ainda assim, qualquer tipo de punição ou reprimenda que vier a sofrer deverá respeitar a dignidade do ser humano. Basta lembrar, como exemplo, que a Constituição brasileira veda, em cláusula pétrea, as penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e as cruéis, pois todas elas, indistintamente, atentam contra a dignidade do ser humano, independentemente de este ser humano ter praticado “condutas indignas”. Ele, pelo simples fato de ser humano, ainda que, com razão, possa ser chamado de bandido e criminoso, continuará tendo dignidade (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

A partir do princípio da dignidade humana, o homem é concebido como um fim em si mesmo, não podendo, ao reverso, ser vislumbrado como meio para outros fins, pois ele não deve ser alvo de instrumentalização, coisificação ou rejeição em razão dos aspectos que lhe conferem sua individualidade e sua dinâmica pessoal. Marianna Chaves (2011), com precisão, disciplina:

a noção de dignidade da pessoa humana abrange o núcleo existencial que é essencialmente comum a todos os seres do gênero humano. Impõe-se, no que tange à dimensão pessoal da dignidade, um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade, sendo inadmissível qualquer procedimento, comportamento ou atividade que ‘coisifique’ o indivíduo[21] (CHAVES, 2011, p. 68).

Ingo Sarlet (2002) classifica a dignidade da pessoa humana como uma

qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Segundo preceitua o autor, a dignidade continua a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, daí sua qualificação como valor fundamental da ordem jurídica. Para ele, “uma ordem constitucional que (...) consagra a ideia da dignidade da pessoa humana, parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão somente da sua condição humana e independentemente de outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado” (grifei).

Vê-se, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma das bases de sustentação dos ordenamentos jurídicos modernos. Não há que se falar em direito e justiça sem se ater à ideia de dignidade, pois é ela pressuposto do próprio ideal de justiça, uma vez que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Ela (a dignidade) tende a enfeixar todos os demais princípios constitucionais. Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira aduz que a dignidade é um macroprincípio “sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores essenciais como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade. São, portanto, uma coleção de princípios éticos. (...) É a noção de dignidade e indignidade que possibilitou pensar, organizar e desenvolver os direitos humanos” (PEREIRA, 2003). Nesta mesma seara, Luiz Edson Fachin e Melina Girardi Fachin asseveram que o princípio da dignidade da pessoa humana “avulta no ordenamento jurídico constitucional a partir de sua centralidade, na qualidade de fundamento da Republica Federativa do Brasil, privilegiando a posição do sujeito concreto e de suas necessidades, passando a incidir de forma especial e diversa sobre os demais princípios constitucionais” (FACHIN E FACHIN, 2011). Ragazzi e Garcia, no mesmo atalho, classificam a dignidade como:

um macroprincípio que norteia e orienta todo o sistema jurídico brasileiro, ostenta caráter absoluto e não se submete a qualquer tipo de relativização. Destarte, nada pode haver no ordenamento jurídico pátrio que viole, negue ou restrinja a dignidade da pessoa humana, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Em consequência, a Constituição não abre espaço para qualquer tipo de interpretação nesse sentido (RAGAZZIO E GARCIA, 2011).

A dignidade humana entende o indivíduo como fundamento e fim do Estado e da sociedade. Ao mesmo tempo em que é tida (a dignidade) como um limite para a atuação estatal, que não pode invadi-la, é também um dever prestacional do próprio Estado, que deve agir de modo que todo cidadão tenha sua dignidade honrada por toda a sociedade. Nesta senda, Pérez Luño assegura que “a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo” (LUÑO, 2004 apud FACHIN E FACHIN, 2011).

Segundo Marianna Chaves, à luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, o elemento nuclear da dignidade da pessoa humana reside na autonomia e no direito da autodeterminação da pessoa[22]. A estruturação da individualidade de cada ser apresenta a sexualidade como um dos elementos essenciais de constituição da subjetividade, que, por sua vez, é também responsável pelo desenvolvimento da personalidade do indivíduo. A orientação sexual, dessa forma, relaciona-se estreitamente com o amparo da dignidade da pessoa humana[23]. Nesse sentido, ao vislumbrarmos prejuízo, desprezo ou desacato a uma pessoa, em virtude da sua orientação sexual, está-se conferindo tratamento indigno à pessoa humana.

Assim, a dignidade, estruturada na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, gera para o homem o direito de decidir de forma autônoma acerca dos seus projetos de vida e de existência eudemonista, sejam eles quais forem, desde que não infrinja direitos de terceiros, mas sempre sendo considerado e respeitado pela sua condição humana. “Assim, em nome do princípio da dignidade humana, entre outros, (...) direitos igualitários devem ser outorgados aos homossexuais, como o de contrair matrimônio, o direito à parentalidade, enfim, o direito de assumir sua orientação sexual sem o receio de rechaço e exclusão social” (CHAVES, 2011, p. 71). Nesse diapasão, Roger Raupp Rios (2001):

conclui-se que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação da dignidade humana, não sendo aceitável, juridicamente, que preconceitos legitimem restrições de direitos, servindo para o fortalecimento de estigmas sociais e espezinhamento dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito. Assentada a pertinência do respeito à orientação sexual ao objeto de proteção do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, deve-se ter sempre presente seu papel na solução das demais questões jurídicas envolvendo a homossexualidade. 

Em suma, a ideia de dignidade está vinculada à pretensão de respeito e consideração a que todo ser humano tem direito, independentemente de suas escolhas, características, atitudes, credos, cultura, pensamentos e orientações. Como sintetizam Ragazzi e Garcia, “se é humano, é racional, tem um fim em si mesmo e, por isso, tem dignidade” [24].

A autonomia da vontade, enquanto elemento fundante da dignidade, também está encampada no direito constitucional à liberdade, mas, conforme já foi repisado, a dignidade da pessoa humana é pressuposto para o exercício de qualquer direito fundamental. Ou seja, da proteção jurídica da dignidade humana decorrem necessariamente os direitos de igualdade, liberdade e fraternidade. O seu reconhecimento, enfim, é pressuposto de todas as gerações de direitos fundamentais (REGAZZI E GARCIA).

4.4.2 . Princípio da Liberdade

Luis Roberto Barroso (2006), com esteio em Marilena Chauí, explica que o conteúdo nuclear da concepção de liberdade se encontra no poder de autodeterminação, de deliberação e escolha entre várias alternativas possíveis, condicionado (tal poder) ao contexto externo, como as circunstâncias naturais, históricas, psíquicas, culturais e econômicas.

Segundo Regazzi e Garcia, o princípio da liberdade se reflete em todos os direitos fundamentais de primeira geração, “pois constitui o primeiro patamar de alforria do ser humano reconhecido por uma Constituição. Sob seu manto erguem-se os direitos civis, individuais e políticos, que representam uma ideologia de afastamento do Estado das relações individuais e sociais, para permitir que os cidadãos sejam de fato livres, competindo-lhe apenas a tarefa de ser o guardião do exercício dessas liberdades”. Os autores demonstram que não há como dissociar o direito de liberdade da dignidade da pessoa humana, vez que – como visto no pensamento kantiano – a racionalidade do homem lhe atribui a autonomia da vontade, que, por sua vez, é a sua própria liberdade. Dessa maneira, a autodeterminação da conduta do indivíduo só é possível na medida em que se assegure ao homem, como aspecto da sua dignidade, o exercício pleno da liberdade.

Atente-se para a importância da sexualidade como direito de primeira geração, como promulgam vários autores, a exemplo de Maria Berenice Dias, Roger Raupp Rios e Marianna Chaves. Considerado como tal, é um direito natural, imprescritível e inalienável, como apregoa Marianna Chaves:

Ao se desdobrar os direitos em gerações, é de se afirmar que a sexualidade é um direito de primeira geração, da mesma forma que a igualdade e a liberdade, pois engloba o direito à liberdade sexual, aliado ao tratamento isonômico, independentemente da orientação sexual, é, destarte, uma liberdade individual, um direito da pessoa humana, sendo, como todos os direitos de primeira geração, imprescritível e inalienável. Trata-se de um direito natural, que acompanha o indivíduo desde o seu nascimento (CHAVES, 2011, p. 73).

Roger Raupp Rios, por sua vez, aduz:

Os direitos humanos de primeira geração reconhecidos desde os primórdios do constitucionalismo liberal (identificados como direitos negativos, de defesa contra intromissões abusivas), registram liberdades individuais cuja dimensão contemporânea alcança diversas esferas constitutivas da sexualidade. (...) Toda compreensão jurídica sedimentada na doutrina e na jurisprudência constitucional pertinente às dimensões formal e material do princípio da igualdade, por sua vez, fornece diretrizes jurídicas sólidas em face da discriminação fundada no sexo ou na orientação sexual (RIOS, 2007, p. 25).

Deveras, as bases principiológicas dos Direitos Humanos pressupõem-se como sustentáculo da liberdade do sujeito. Mas não é possível pensar em liberdade se o indivíduo não puder ser sujeito da própria vida, destino e desejo. A verdadeira liberdade é aquela em que “os sujeitos de direito não estejam submetidos aos ordenamentos jurídicos excludentes das diferentes e diversas formas de constituição de famílias, ou nos ordenamentos jurídicos que sobrepõem a forma à essência e ainda não consideram o afeto como norteador e condutor da organização jurídica sobre a família” (PEREIRA, 2003, p. 155).

Nas palavras de Marianna Chaves, hodiernamente, o princípio da liberdade individual se consubstancia “em uma perspectiva de privacidade, de intimidade, de livre exercício da vida privada. Liberdade se traduz, cada vez mais, na ideia de poder realizar, sem intervenção de qualquer natureza, as próprias escolhas individuais, o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier”. Assim, quanto à liberdade no âmbito da vida sexual, a autora afirma que o indivíduo pode dispor de si, pois cada um pode conduzir a sua vida como melhor entender, vez que o paternalismo que vigia nos ordenamentos de outrora, não possui mais espaço no sistema jurídico atual. Então, não é possível impor o que cada pessoa deve fazer com sua vida mediante lei coercitiva, pois, segundo a autora, “os deveres para consigo não devem ser impostos, apenas os deveres para com os outros se impõem”. Dito isto, sobrevém que o Estado não tem legitimidade para impor aos indivíduos determinado tipo de escolha, nem para denegar reconhecimento de direitos àqueles que exercem plenamente suas liberdades.

Assim, a liberdade consiste na possibilidade objetiva de decidir, donde se vislumbra sua grandiosa extensão, haja vista que são inúmeras as situações em que o sujeito exerce sua autonomia pessoal, decidindo e escolhendo o caminho que melhor lhe aprouver. Daí, entrevemos as liberdades de expressão, de credo, de associação, de desenvolvimento da própria personalidade, bem como a liberdade sexual, aqui entendida em sentido lato, incluindo, portanto, inter alia, a liberdade de se relacionar sexualmente com quem assim o deseje, e a liberdade à livre orientação sexual. Portanto, a liberdade sexual deriva da autonomia privada de cada um e não pode ser tolhida ou ignorada pelo Estado, cuja incumbência é exatamente garantir que os cidadãos gozem plenamente das suas liberdades. Por outro lado, sendo a liberdade de orientação sexual amplamente protegida pela Constituição Federal, não é legítimo ao Estado, nem a ninguém, estabelecer qual tipo de inclinação sexual é válida ou reconhecida, condenando ou ignorando as demais. Nesta esteira, o Estado age ao arrepio da Carta Magna quando determina a orientação heterossexual como a única digna de direitos que possam advir de relacionamentos com essa orientação, excluindo ou, simplesmente, não reconhecendo a orientação homossexual. De sorte que, reputando-se esta orientação inválida, tolhe-se a liberdade sexual dos homossexuais, e viola-se, por tabela, a dignidade dos mesmos, relegando tal categoria ao banimento excludente dos guetos clandestinos.

Adotando uma concepção eudemonista de liberdade, José Sebastião de Oliveira (2002) discursa: “a liberdade é a palavra central que permeia todas as novas espécies de constituição familiar. Liberdade para escolher o parceiro; liberdade para expandir suas aptidões pessoais; liberdade de diálogo; liberdade contra o falso moralismo que ainda está impregnado nos discursos de alguns grupos sociais; liberdade de ser feliz!”. Na mesma direção, Marianna Chaves (2011): “a liberdade consiste, afinal, na possibilidade de uma coordenação consciente dos meios necessários ao desenvolvimento da personalidade e à realização da felicidade pessoal”.

Vê-se, pois, que a liberdade, no que tange à sexualidade do indivíduo, está em escolher livremente o parceiro que lhe satisfaça os desejos e sentimentos perseguidores de uma realização pessoal eudemonista de vida, bem como no alvedrio da sua própria autonomia de agir naturalmente e independentemente de coerção de familiares, sociedade ou do próprio legislador, sem receio de não ser aceito ou ofendido ou ignorado. Está ainda (a liberdade) na autonomia de constituição da própria família, e na autonomia de escolha do modelo de união com a outra pessoa amada da forma que melhor lhe suscite paz e felicidade, ainda que a outra seja do seu gênero idêntico, e mesmo que as outras pessoas repudiem essa ideia ou união.

A genuína forma de liberdade, enquanto princípio, no tocante ao sentimento entre pessoas do mesmo sexo, traduz-se em amar puramente, sem reservas, temores ou inseguranças que advenham em função do comportamento e não aceitação sociais. Traduz-se, ainda, na possibilidade de decidir livremente a forma como pretende unir-se à pessoa amada, vale dizer, o instituto jurídico-social que melhor se adéque à realização eudemonista do casal (ou do par): se pela união estável, sem formalidades, ou pelo casamento, com toda a formalidade que apresenta a solenidade.

Promulga Maria Berenice Dias quanto a esse entendimento: “em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável hetero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o casamento ou a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio”. E ainda: “a orientação sexual do indivíduo, conquanto adotada na esfera de sua privacidade, não admite restrições. Qualquer restrição estaria indo contra a máxima da liberdade, a que faz jus todo ser humano, pois está conectada com sua condição de vida”.

Ante todo o exposto, conclui-se que, em pleno século XXI, numa República que se quer Estado Democrático de Direito, onde as liberdades devem prevalecer, notadamente a liberdade de escolha, pelo respeito à autonomia privada de cada indivíduo, é contrária à praxe constitucional a imposição de determinadas escolhas ou comportamentos, bem como a negativa de direitos àqueles cidadãos que fizeram sua escolha diferente da adotada pela maioria. Logo, “restringir a liberdade de escolha ou negar direitos aos que, por qualquer modo, se afastam do padrão dito ‘convencional’, em qualquer seara, é subtrair do ser humano sua própria dignidade, liberdade e direito à autodeterminação. É dizer a ele que sua conduta deve ser pautada pela racionalidade da maioria e não pela sua própria vontade” (RAGAZZI E GARCIA, 2011). Neste liame:

A homossexualidade é um fato da vida. Sempre existiu e sempre vai existir. Não há, portanto, nem nuca haverá, qualquer legislação que seja capaz de impor a um ser humano a observância obrigatória de uma determinada orientação sexual. A manifestação de desejo e amor por pessoas do mesmo sexo passa ao largo da legislação dos homens (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

Rematando a análise do respaldo do princípio da igualdade ao casamento homoafetivo, conclui-se que, por ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inciso I), os indivíduos devem ter, dentre outras liberdades, a de escolher livremente – com o perdão do pleonasmo – seus parceiros sexuais, sem qualquer ingerência do Estado e sem que tal escolha implique em injustas restrições de tratamento por parte do ordenamento jurídico. Uma sociedade solidária, por sua vez, deve acolher e apoiar as escolhas dos indivíduos, oportunizando-lhes sua formação pessoal e realização eudemonista de vida, vale dizer, o direito vital e constitucional de ser feliz, ainda mais quando tais escolhas em nada afetem os direitos dos demais indivíduos, como o é no caso do casamento homoafetivo. O casamento civil deve ser disponível a todos, independentemente de orientação sexual, posto que entendido como um direito do homem, e não um privilégio heterossexual.

4.4.3 Princípio da Igualdade e do Respeito à Diferença:

O princípio da liberdade está intrinsecamente ligado ao da igualdade, vez que só existe liberdade se existir igualdade concomitante e proporcionalmente. Nesse diapasão, Maria Berenice Dias (2007): “inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade”; e Jorge de Medeiros (2008): “o exercício da liberdade é dependente do exercício da igualdade em um grau abstrato, uma igualdade que reconhece todos os sujeitos sociais como merecedores de igual consideração (...). A liberdade depende da igual consideração como cidadão”.

A igualdade é um dos princípios basilares da estrutura jurídica constitucional, a qual é citada, inicialmente, no texto preambular[25] da Constituição Federal de 1988, em que é alçada a valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, no Estado Democrático de Direito. Ademais, a Carta Magna resguardou o respeito à diferença, que resulta do princípio da igualdade, ao elencar em seu art. 3º, IV, como objetivo fundamental da República a promoção do “bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ainda, insculpiu a igualdade em seu art. 5º, sob o escudo da dignidade da pessoa humana: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Porque a Constituição veda qualquer tipo de discriminação, não é admissível que aos homossexuais não sejam estendidos os mesmos direitos que aos heterossexuais, sobretudo nos cenários jurídico e legislativo. Se todos são iguais perante a lei, insubsiste qualquer argumento jurídico apto a afastar os homoafetivos dos direitos civis conferidos aos casais heteroafetivos, inclusive o casamento, notadamente após superada a problemática do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, com o julgamento da ADI 4.227 e da APDF 132. Isso porque, uma vez igualada à união estável e, portanto, sujeita de todos os direitos civis dela decorrentes, a união homoafetiva – como união estável que é, repise-se –, pode e deve ser convertida em casamento por força do preceituado no art. 226, § 3º, da Constituição Federal.  Sob pena de se instituir o absurdo de que todos são iguais, mas os homoafetivos são menos iguais que todos.

A própria ideia de justiça se fundamenta no princípio da igualdade. “A ideia de justiça sugere inevitavelmente a todos a noção de igualdade certa” (PERELMAN, 2005). Diante disso, igualdade não se traduz tão somente na aplicação igual da lei, mas, outrossim, na criação de lei uníssona para todos. Assim, a consideração igualitária que se deve dispensar a todos os indivíduos não se trata de ignorar as diferenças fáticas existentes entre eles, mas de tratá-los por igual exatamente em virtude de suas diferenças. Daí sobrevém que tentar criar um instituto novel, sui generis, para regulamentar o mesmo instituto – vale dizer, o casamento –, é tratar com desigualdade os iguais, ou considerar desiguais – ou menos iguais – os homossexuais em relação aos heterossexuais.

Não se trata aqui, portanto, de aplicar a máxima aristotélica de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade”, vez que, conforme explica Marianna Chaves (2011), “tal tratamento diferenciado só poderá existir na ocorrência de uma fundamentação racional que o justifique. Na falta de fundamentação válida ou no caso de esta ser insuficiente, é de se entender que, em virtude da igualdade, deve se aplicar o mesmo regime jurídico a todas as situações”. Tal discussão, entretanto, enseja o debate sobre a necessidade ou não de normatização do casamento homoafetivo – e do direito homoafetivo em geral –, razão pela qual, abstenho-me de explanar agora, posto que o farei em momento oportuno.

É por todos cediço que a isonomia está consagrada na Carta Cidadã de 1988 como valor supremo do Estado Democrático e princípio basilar de toda a estrutura constitucional. Qualquer pretensão de trato diferenciado entre os indivíduos deve ser muito bem fundamentada, racional, lógica e compatível com os preceitos constitucionais. Se a diferenciação não observa esses pressupostos, ela estará infringindo o seio constitucional. Partindo-se de tal silogismo, Marianna Chaves indaga: “o óbice ao acesso dos homossexuais ao instituto do casamento é uma diferenciação que possui fundamento lógico-racional?” Entendo, por óbvio, e por tudo até aqui exposto, bem como tudo o quanto será explanado, que não. Não fosse assim, qual seria tal fundamento lógico-racional? O sexo dos nubentes? Sua orientação sexual? Então podemos tolher direitos e dispensar trato desigual destrinçando os indivíduos em razão do seu sexo ou da sua orientação sexual?

Consentindo quanto à inexistência de argumento jurídico válido e apto a sustentar qualquer fator de discriminação em relação aos casais homossexuais, José Luiz Ragazzi e Thiago Munaro Garcia bradam que “não é legitimo a ninguém, quem quer que seja, e por qual motivo seja, supor que homens e homens e mulheres e mulheres não sejam capazes de constituir verdadeira família que, independentemente da orientação sexual de seus membros, continuará sendo a célula da sociedade”. E complementam: “o que levaria um ser humano a acreditar, e por vezes defender, que outro ser humano não possa ser sujeito de direitos apenas e tão somente porque ostenta orientação sexual diversa da sua? Parece-nos que não existe qualquer justificativa plausível ou minimamente aceitável a amparar tão desarrazoada pretensão” [26] (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

Para rematar o debate acerca do princípio da igualdade e respeito à diferença, trago à lume as palavras do ministro relator Felipe Salomão, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1183378, pelo STJ, que admitiu o pedido de habilitação para casamento entre duas mulheres: “De fato, a igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito a auto afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença” (com grifos no original).

4.4.4. Princípio da Razoabilidade

Na defesa dos direitos dos homossexuais, alguns autores, a exemplo de Jorge de Medeiros, José Ragazzi e Thiago Garcia, apresentam ainda como baluarte constitucional o direito da razoabilidade, que, inobstante não expressamente previsto no texto constitucional[27], goza de grande autoridade nos cenários da doutrina e da jurisprudência.

O princípio da razoabilidade representa um critério de aferição da constitucionalidade das leis e atos normativos, bem como um critério de orientação dos julgadores. Assim, a razoabilidade orienta e põe limites às condutas do legislador na criação das leis, do administrador na gestão da coisa pública, e do julgador na solução dos conflitos de interesses; condenando qualquer arbitrariedade, e determinando-lhes que ajam em nome do Estado de forma moderada, racional, justa e impessoal. Por outro lado, se qualquer ato se apresentar irracional, arbitrário, ou maculado de sentimento pessoal em dissonância com a ordem constitucional, o princípio da razoabilidade se impõe contra os mesmos em prol de se resguardar os mandamentos da Lei Maior.  

Diante disso, Ragazzi e Garcia concluem que, ao considerarmos que a Constituição Federal “ergueu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da ordem jurídica e realçou os direitos de liberdade, igualdade e respeito à diversidade, não se afigura razoável qualquer tentativa de restrição ou negativa de direito às pessoas em função de sua orientação sexual” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

Destarte, quaisquer leis, atos administrativos ou decisões judiciais que neguem ou deixem de reconhecer direitos às pessoas em virtude de sua orientação sexual, estão em flagrante afronta à Constituição Federal, por violarem o princípio da razoabilidade.

4.4.5 Princípio da Proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, nas elucidativas palavras de Paulo Vecchiatti,

Visa, precipuamente, a servir como método de controle dos atos estatais no sentido de averiguar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito das medidas estatais em debate para, neste terceiro momento (que supõe necessariamente o reconhecimento da adequação e da necessidade citadas), solucionar o conflito entre dois ou mais direitos fundamentais em choque por parte dessas medidas, através de um juízo de ponderação entre eles para, identificado aquele que seria mais relevante no caso concreto, sacrificar (o menos possível) o outro (VECCHIATTI, 2011).

Dessa forma, quando, da criação da lei, da adoção de medidas administrativas ou da decisão de conflitos de interesses, houver colisão de direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade deverá ser acionado como critério de ponderação, pesando cada qual dos direitos confrontantes, de modo que o mais importante que se afigure ao caso concreto se sobreponha aos demais, bem como que nenhum deles seja completamente desprezado, haja vista se tratarem de direitos fundamentais.

Assim como o princípio da razoabilidade, a proporcionalidade não se apresenta de forma expressa no texto constitucional, e, inobstante sejam muitas vezes confundidos ou tratados como sinônimos, ambos exercem funções diversas na estrutura constitucional. Enquanto aquele se apresenta como critério de aferição de constitucionalidade de leis e atos normativos, o princípio da proporcionalidade[28], como esclarecem Ragazzi e Garcia, se presta à “manutenção e conformação da coexistência pacífica e harmoniosa do amplo rol de direitos fundamentais consagrados à pessoa humana”.

Ainda no tocante à diferença entre este e aquele princípio anteriormente analisado, Ragazzi e Garcia observam que, diferentemente do princípio da razoabilidade, que é fundamental no reconhecimento de direitos às uniões homoafetivas, o princípio da proporcionalidade não vislumbra tal importância, porque o reconhecimento desses direitos não importa em qualquer colisão com outro direito fundamental. “Na luta pelo reconhecimento de direitos homoafetivos, portanto, haverá sempre que se falar em razoabilidade, mas não em proporcionalidade, pois não se concebe, com isto colisão de direitos” (RAGAZZI e GARCIA, 2011). Em outras palavras, ao se atribuir direitos às pessoas do mesmo sexo, inclusive o casamento, não há exclusão ou mitigação de outros direitos fundamentais dos pretendentes à constituição de família, nem de outras pessoas quaisquer. Diante disto, Marianna Chaves impõe o seguinte questionamento: que prejuízo teria a sociedade em se conceder o matrimônio aos pares homoafetivos? Que bem jurídico tutelado justifica a negativa estatal a este tipo de casamento, que em absolutamente nada afronta a Constituição ou a legislação infra?

Tal indagação é de todo rechaçada pelo ilustre posicionamento do ministro relator Ayres Britto, quando do julgamento da ADI nº 4.227 e da APDF nº 132, que alçou a união homoafetiva à entidade familiar mediante sua equiparação à união estável. Convém trazer à baila as nobres palavras do mestre:

Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade, de protagonização por pessoas do mesmo sexo. (...) Inteligência que se robustece com a proposição de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição.

Como se nota, a abertura do casamento aos casais homoafetivos em nada prejudica, obsta ou minimiza quaisquer outros direitos dos heteroafetivos. Ao contrário, os primeiros ganham por verem efetivados e consolidados seus direitos fundamentais, sobretudo sua dignidade – antes tratada como uma “subdignidade” –, igualdade e liberdade. Por outro lado, ao se denegar tal direito aos mesmos, nem perdem nem ganham os heterossexuais, mas perdem em muito os homossexuais. Nas palavras de Ragazzi e Garcia: “qualquer que seja o direito reconhecido às uniões homoafetivas ele não colidirá com outros direitos fundamentais, de modo que não há que se falar, nessas situações, em proporcionalidade” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

4.4.6 Princípio da Não Discriminação em Razão do Sexo

A Constituição Federal de 1988 não veda expressamente a discriminação por orientação sexual, embora o entendimento que se sobrepõe na doutrina e jurisprudência é o de que a vedação à discriminação por orientação sexual é açambarcada pela vedação à discriminação em razão do sexo[29], vez que ambas conotam a sexualidade[30]. Além disso, a autodeterminação da escolha sexual do indivíduo está resguardada em diversos dispositivos e princípios constitucionais, podendo ser vislumbrada mediante uma simples interpretação teleológica e sistemática do texto da Lei Maior. Defendendo tal assertiva, Luiz Edson Fachin e Melina Girardi Fachin argumentam: “capacidade de autodeterminação da escolha sexual individual, conferida pelo constituinte, deriva da interpretação sistemática e evolutiva do texto constitucional, em especial no que tange à proteção da dignidade humana, art. 1º, III, e do princípio da igualdade, art. 5º, caput” (FACHIN E FACHIN, 2011).

Percebe-se a visceral imbricação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, no que tange ao direito à autodeterminação sexual – notadamente a inclinação homossexual – e seu consequente respeito. A imperatividade constitucional de ambos, vale dizer, a dignidade da pessoa e a liberdade de desenvolvimento da sua personalidade, equacionam a vedação à discriminação em razão do sexo, sobretudo em razão da orientação sexual. Acerca disso, afiança Mota Pinto: “a afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento constituem já corolários do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado” (PINTO, 1999 apud FACHIN E FACHIN, 2011). Complementam, em consequência, Ragazzi e Garcia: “qualquer tentativa de restringir direitos a um grupo de pessoas, única e exclusivamente por conta de sua orientação sexual, é negar-lhes a própria dignidade, o que é inadmissível” (op. cit.).

Ainda que não se concordasse com a inclusão da vedação à discriminação por orientação sexual na vedação à discriminação em razão do sexo, estaria regulamentada pelo mesmo inciso IV, do art. 3º da CF, quando preconiza constituir objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (grifei).

Demais disso, Marianna Chaves aponta que “a discriminação por orientação sexual configura uma hipótese de diferenciação baseada no sexo do indivíduo para quem alguém endereça seu afeto, uma vez que a caracterização de uma ou outra orientação sexual é resultado da combinação dos sexos daqueles envolvidos no relacionamento” [31]. (CHAVES, 2011, p. 77).

Ainda segundo a autora, as vedações de diferenciação estão esteadas no enunciado geral do princípio da isonomia, por isso não se sustenta a tese da obrigatoriedade da vedação expressa à discriminação. Assim, resta equivocado o juízo que sustenta a taxatividade dos critérios proibitivos de diferenciação.

Fachin e Fachin (2011) ainda vislumbram a proteção constitucional à vedação à discriminação por orientação sexual do indivíduo, por outro ângulo: “a fonte constante de oxigenação do sistema constitucional das garantias fundamentais, estampada no § 2º do art. 5º, permite a necessária maleabilidade e pluralidade do direito perante os fatos sociais, apenas encontradas em Estados de Direito verdadeiramente democráticos”. E complementam citando a reflexão de Ingo Sarlet (1998): “esta abertura permite a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais” (FACHIN E FACHIN, 2011).

Como concluiu a Quarta Turma do STJ no julgamento do RE 1183378, a dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição, não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade, e a orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento.

Concluindo com o respaldo do princípio ora em tela na possibilidade de casamento homoafetivo, a doutrina preconizada nesta monografia protesta também pelo direito dos homossexuais de receberem do Estado brasileiro o estado jurídico de pessoa casada, pois é esta uma materialização dos direitos da personalidade. Os homossexuais, ao contrário dos hetero, não podem fazer jus a esse direito de cidadania, e a explicação disso não é outra senão em razão da sua orientação sexual. E aqui reside patente afronta ao princípio da igualdade, pois diferencia-se dois grupos de pessoas (hetero e homossexuais) em função de sua preferência sexual por pessoas do mesmo sexo, e essa diferenciação culmina no privilégio de um grupo e prejuízo de outro, sem que haja qualquer razão lógica relevante. É gritante o insulto a um dos objetivos fundamentais da República, que veda qualquer forma de discriminação, inclusive a discriminação por orientação sexual, como visto no art. 3º, inciso IV, da Carta Política de 1988.

4.4.7 Princípio da Solidariedade

De acordo com Ragazzi e Garcia, o princípio da solidariedade pode ser extraído do art. 3º, inciso IV da Constituição Federal, ao determinar que é objetivo da República promover o bem de todos e se despir de quaisquer preconceitos inundados. Os autores ensinam que a fraternidade e a solidariedade são inerentes à própria concepção de dignidade da pessoa humana, “consubstanciadas no dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos. É exatamente nesse sentido, de respeito ao ser humano e às suas escolhas, que o princípio da solidariedade se insere no reconhecimento de direitos às uniões homoafetivas”.

Assim, a solidariedade trata-se do amor ao próximo, da harmonia e união dos seres que convivem entre si, se ajudando, respeitando, amando, e contribuindo para uma existência digna de todos os seres humanos, pois ninguém é autossuficiente, e todos dependem de todos (RAGASSI E GARCIA, 2011).

Nesse contexto, bem observa Maria Berenice Dias:

A realização integral da humanidade abrange todos os aspectos necessários à preservação da dignidade humana e inclui o direito do ser humano de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. É um direito de todos e de cada um, a ser garantido a cada indivíduo por todos os indivíduos. É um direito de solidariedade, sem o qual a condição humana não se realiza, não se integraliza.

Assim, em razão da solidariedade que une os seres humanos enquanto raça humana, é dever de todos os indivíduos e do Estado respeitar o próximo e as diferenças que se apresentem. Por conseguinte, “cai por terra qualquer entendimento no sentido de que os homossexuais, apenas por valerem-se de orientação sexual diversa daquela exercida pela maioria, não possam gozar de todos os direitos e garantias previstos na Constituição e em todo o ordenamento jurídico” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

4.4.8 Princípio do Livre Planejamento Familiar

O princípio do livre planejamento familiar está previsto no texto constitucional no art. 226, § 7º, que assim dispõe: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

Daí decorre que nem o Estado nem a sociedade podem estabelecer limites ou condições para o exercício pleno do planejamento familiar assegurado a todo cidadão, e não só ao casal, dentro do âmbito da autonomia privada do indivíduo. Acerca deste princípio, Arnaldo Rizzardo assevera que:

Desde que não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal, à família reconhece-se a autonomia ou liberdade na sua organização e opções de modo de vida, de trabalho, de subsistência, de formação moral, de credor religioso, de educação dos filhos, de escolha de domicílio, de decisões quanto à conduta e costumes internos. Não se tolera a ingerência de estranhos – quer de pessoas privadas ou do Estado -, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família. Repugna admitir interferências externas nas posturas, nos hábitos, no trabalho, no modo de ser ou de se portar, desde que não atingidos interesses e direitos de terceiros (RIZZARDO, 2006) (sem grifos no original).

Em verdade, o casamento entre pares homossexuais, como elemento constituidor – porém não o único – da família tem o amparo do princípio do livre planejamento familiar, vez que não afeta direito de terceiros nem viola outros princípios de direito. Ademais, a satisfação e o exercício do direito ao planejamento familiar estão inseridos na seara da autonomia e da autodeterminação da pessoa, aparelhos nucleares da dignidade da pessoa humana. Assim, aos indivíduos devem ser asseguradas a autonomia e a liberdade de formação e organização da entidade familiar, sem ingerência externa de quem quer que seja.

Dessa forma, o planejamento familiar reveste-se tanto de um cunho negativo – o não fazer do Estado –, quanto de uma visão positiva, haja vista que o indivíduo tem autonomia e liberdade de escolha em quaisquer requisitos da constituição da sua família – desde que não viole direitos alheios –, especialmente na escolha do parceiro, a pessoa amada, aquela que se repute merecedora do seu amor e da sua companhia na comunhão plena de vida. A escolha do parceiro, como se disse, é livre, autônoma, seja ele ou não do mesmo gênero que o seu, pois o uso da sexualidade, inclusive a orientação sexual, é fruto da autodeterminação do indivíduo, que faz o que bem entender dela, desde que não viole direitos alheios, podendo até mesmo dispor da própria sexualidade.

Sobre o princípio em foco, vale repisar as alumiadas palavras de Luis Felipe Salomão:

A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à autoafirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. (...) não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. (REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012) (grifos meus).

A doutrina perseguida nesta pesquisa também indigita outros princípios constitucionais orientadores do casamento homoafetivo, a exemplo dos princípios da afetividade e da pluralidade familiar, ambos já ventilados no capítulo referente à família[32].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consagra-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família, repaginado pela sua repersonalização dada a partir da constitucionalização do Direito Civil, outrora monopolizador de todo o arcabouço da ordem jurídica, inclusive da própria ordem constitucional. Assim, superaram-se as tentativas hermenêuticas que visavam compreender a Constituição e seus princípios a partir de normas existentes no Código Civil e demais diplomas infraconstitucionais. A Carta Magna é quem deve orientar todo o sistema jurídico, e não por ele ser orientada.

Assim, a repersonalização do Direito de Família permitiu o poliformismo das entidades familiares, libertando-as dos grilhões que a prendiam ao casamento, já que era este o único meio de se constituir a família. Foram reconhecidas novas formas em rol meramente exemplificativo insculpido nos parágrafos do art. 226 da Constituição Federal, a exemplo das uniões estáveis e das famílias monoparentais, sobrepujando a conjugalidade e o critério biológico em reverência ao elemento coevamente caracterizador da estrutura familiar, responsável por criá-la e fundamentá-la: a afetividade. Sendo assim, a Lei Maior passa a açambarcar em seu amparo quaisquer novos arranjos multifacetados que se mostrem aptos a também constituírem o núcleo doméstico da família, desde que ostentem os critérios de publicidade, continuidade e afeto.

Desde então, e em razão da constitucionalização das uniões estáveis, bem como da supremacia, inter alia, dos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade, os vínculos homoafetivos foram sendo tutelados tais quais as relações heterossexuais. Tal tutela teve seu divisor de águas quando da decisão da Suprema Corte, de caráter vinculante e oponível erga omnes, que, em sede de julgamento da ADI nº 4.227-DF, alçou as uniões homoafetivas à condição de união estável, reconhecendo-as, enfim, como genuína entidade familiar, entendida como sinônimo perfeito de família.

 Ante a decisão do STF, alarga-se a polêmica sobre o acesso ao casamento pelos pares homoafetivos. No entanto, tal possibilidade se mostra evidente em face do preceito gravado no § 3º do art. 226 da Constituição Federal, ordenando a facilitação da conversão da união estável em casamento. Vale dizer, a união homoafetiva, como união estável que é, vislumbra a possibilidade de ser convertida em casamento por determinação da ordem constitucional.

Entretanto, a doutrina que o presente trabalho preconizou, muito além de entrever o casamento homoafetivo pela conversão da união homoafetiva, defende esse casamento de forma primária, por meio da habilitação para o casamento de nubentes homoafetivos diretamente junto ao Registro Civil, sem a necessidade de se formalizar a união estável para, só então, requerer sua conversão em casamento. Este, inclusive, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, proferido por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.183.378-RS. A imponente decisão proveu o recurso de duas mulheres que pleiteavam sua habilitação para o casamento civil, fundamentando que a dignidade do indivíduo não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sua sexualidade, e que sua orientação sexual não pode servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo casamento.

Muito embora tal decisão não tenha sido a primeira da máquina judiciária, e inobstante não poder vincular outras decisões, tampouco sua eficácia poder ser oponível contra todos, a prolação do STJ foi a mais significativa no permissivo ao casamento homoafetivo, vez que proferida pela Corte à qual incumbe interpretar as leis federais.

Sem embargo do necessário reconhecimento do casamento homoafetivo pelo Poder Judiciário, a própria Constituição, per si, mostra-se suficientemente apta a respaldar sua consolidação. A concepção constitucional do casamento deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias. Além disso, o casamento não é o objeto final da proteção do Estado, basta lembrar que a Carta Constitucional de 1988 não recepcionou seu conceito histórico tido como única possibilidade de se constituir família. Esta sim, base da sociedade, é que tem especial proteção do Estado, por determinação constitucional, cujo escopo maior é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

A dignidade da pessoa humana, por sua vez, como se observou ao longo de todo o trabalho, é o cerne da justificativa a amparar a possibilidade do casamento homoafetivo. Assim o é por ser ela – dignidade – uma qualidade inerente à condição humana e valor supremo do indivíduo, apresentando, por isso, caráter absoluto e não podendo ser submetida a qualquer tentativa de relativização. Daí a supremacia da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e macroprincípio legitimador e orientador de toda a ordem jurídica, enfeixando, inclusive, todos os demais direitos fundamentais vigentes no sistema.

A pesquisa repisou que, num Estado que se diz Democrático de Direito, qualquer tratamento jurídico diferenciado entre os indivíduos deve ser muito bem fundamentado em consonância com os preceitos constitucionais, sob pena de afronta à Carta Magna. O óbice ao acesso dos homossexuais ao casamento é uma diferenciação desprovida de fundamento lógico-racional e, portanto, deve ser repelida pelos operadores de direito. Não se deve admitir qualquer espécie de distinção entre as pessoas em razão da orientação sexual das mesmas. Ao denegarmos direitos fundamentais ao indivíduo em virtude do uso da sua sexualidade não corresponder ao convencionado pela maioria, estamos violando a sua dignidade, afirmando que ele não pode pretender os mesmos direitos da maioria porque ele não é igual aos demais – ou “menos igual” aos demais. Está-se, assim, relegando-o a uma espécie de “subdignidade”.

Dentre estas e tantas outras arguições auferidas ao longo desta dissertação, a constitucionalidade do casamento homoafetivo se vislumbra. Apesar das conquistas galgadas pelos homoafetivos em diferentes searas do direito, o casamento ainda tenta vencer o véu do preconceito. De fato, não é outra a razão para o óbice ao matrimônio entre pares do mesmo sexo. Não é fácil assumir a homossexualidade no Brasil, onde inevitavelmente ainda se encontram muito preconceito e discriminação infundados, frutos de concepções culturais e sociais retrógradas, herdadas da dominação cultural pautada em valores androcêntricos e reducionismos religiosos. Daí porque a maioria deles ainda resiste “no armário”. Já dizia Guimarães Rosa, em seu clássico Grande Sertão: Veredas: “homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme”.


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JURISPRUDÊNCIA

ADI 4277, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341

ADPF 132, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001

REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012


Notas

[1] Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. 6, p. 37

[2] Cânon 1055, §1º: “A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade do sacramento”. Cânon 1056: “A união decorrente do casamento é indissolúvel, isto é, não se pode dissolver por vontade dos cônjuges, exceto pela morte”.  (CAPPARELLI, 1999. p. 20 apud CUNHA, 2010).

[3] Ao longo deste trabalho, a expressão “entidade familiar” é usada como sinônimo idêntico de “família”. Quando da promulgação da Constituição Federal, alguns autores fizeram a diferenciação entre ambos os termos, dando àquele uma acepção subalterna, inferior à “família”, vez que esta, segundo eles, só poderia ser constituída pelo matrimônio, enquanto a “entidade familiar”, embora protegida, seria uma mera tentativa da primeira, arranjada por outras formas, que não o casamento, e, portanto, inferior e desmerecedora da mesma importância que teria o casamento. Entretanto, por óbvio, a Constituição Federal de 1988 jamais intencionou distinguir tais entidades, ao contrário, condenou qualquer discriminação, exclusão ou tratamento desonroso direcionado à família, qualquer que seja sua constituição.

[4] CC/1916, art. 358: “Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos”.

[5] CF, art. 226. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

[6] “Novos velhos” modos de convívio porque há muito tempo já existiam, mas só coevamente tem sido despertados, vale dizer, aceitos e reconhecidos pelo ordenamento jurídico pátrio.

[7] “Conjugalidade” aqui entendida em seu sentido lato, vale dizer, enquanto gênero, do qual derivam as espécies casamento, união estável, união homoafetiva, ou outro qualquer arranjo que se vislumbre ou defina.

[8] ADI 4.277-DF

[9] ADI 4.277, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341

[10] ADPF 132, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001

[11] CC, art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (...).

[12] Este mesmo é o entendimento de Roger Raupp Rios: “sem depender de sujeição aos tradicionais esquemas de casamento, união estável ou de concubinato, tais relações apresentam notas distintivas do fenômeno ora juridicizado pelo direito de família. Sua concretização, iniciada pela jurisprudência, reclama a adequada intervenção legislativa, criadora de um regime jurídico peculiar” (RIOS, 2001 apud CHAVES, 2011).

[13] Veja-se o entendimento de Francisco Amaral sobre o Direito Civil: “A importância do direito civil manifesta-se em diversos aspectos. Em primeiro lugar, constitui a base do ordenamento jurídico de todas as sociedades. (...) É no direito civil que a técnica jurídica, conjunto de processos que se utilizam na determinação do direito, mais se desenvolveu, continuando a ser a espinha dorsal da ciência jurídica. O próprio Estado no exercício de sua atividade econômica, a ele se submete” (AMARAL, 2000) (sem grifos no original).

[14] “Na época de nossa primeira codificação, os campos jurídicos do público e do privado estavam bem delimitados. O Código Civil representava a esfera privada na intenção de assegurar a autonomia do sujeito de direito, diante do poder estatal, em harmonia com o individualismo e o liberalismo de então. Aliam-se fundamentos de direitos naturais com o panorama positivista, passando o direito civil a ser sinônimo de Código Civil. Ao público cabia o papel de intervir o menos possível na esfera privada; apenas deveria garantir as condições necessárias para que os indivíduos agissem segundo sua livre vontade” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Perspectiva civil-constitucional. 2011).

[15] "Ainda que o texto legal não a proclame, a diversidade de sexos é essencial para o casamento em todas as civilizações" (VENOSA, 2008). “O casamento entre pessoas do mesmo sexo é inconcebível. A existência da diversidade de sexos constitui, entretanto, uma condição natural, tendo-se em vista a conformação física de certas pessoas, dado que repugna cogitar da hipótese de casamento entre dois homens ou entre duas mulheres, fato que pertence aos domínios da insânia” (GOMES, 1998 apud CHAVES 2011). “Apenas uma reforma na Constituição brasileira poderá apartar a heterossexualidade como a base do casamento” (PEREIRA, 2007 apud CHAVES, 2011). “Nem se cogite, nessa hipótese, de que se pudesse falar em casamento regulado pelo Código Civil, ainda que, por qualquer erro ou inadvertência, venha o ato da união registrar-se no Cartório. Isso porque, pelo mesmo Código, o casamento, embora sem qualquer determinação expressa, de que se realize entre homem e mulher, de acordo com as suas rigorosas exigências, não pode prescindir de tal circunstância, indispensável à sua própria existência” (AZEVEDO, 2002 apud CHAVES, 2011).

[16] Em sua obra, Marianna Chaves colaciona um excerto do posicionamento de João Gilberto Gonçalves Filho, quando então Procurador da República, na exordial da Ação Civil Pública intentada em 2005, com intuito de assegurar o reconhecimento legal do casamento homossexual, que, com a devida licença, trago também à baila, por oportuno. Vejamos: "Todo o mundo sabe que homem só casa com mulher e mulher só casa com homem, não havendo a possibilidade de algo diferente e isso é tão certo que ninguém discute. Só que talvez as pessoas não parem para refletir, como deveriam, que existem certas coisas que são certas porque ninguém discute e ninguém discute porque são certas. Ou seja, existem práticas humanas tão enraizadas no espírito cultural coletivo que paira uma sensação geral de que as coisas foram assim, são assim e vão ser sempre assim. É exatamente esse dogma cultural que a presente ação civil pública vai combater, orientada pelo espírito de tolerância e de respeito com as diferenças. Afinal, trata-se de diretriz normativa que deflui do texto constitucional e que o Estado Brasileiro não poderá jamais olvidar" (Justiça Federal de São Paulo, Subseção de Guaratinguetá. Processo 2005.61.18.000028-6).

[17] Código Civil. Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.

Art. 1.523. Não devem casar:

I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;

II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;

III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; (...)

Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos:"De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."

Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. (...) (grifos meus)

[18] Trecho do poema “Nosso Tempo”, de Carlos Drummond de Andrade.

[19] “A teoria do casamento inexistente foi criada pelo escritor tudesco do séc. XIX, Zachariae, em Comentários ao CC francês de 1804, que surgiram na Alemanha no ano de 1808 e, em 1839 foram traduzidos por Aubry et Rau. Posteriormente, no ano de 1911, a tese foi desenvolvida por Saleilles em estudo semelhante” (PEREIRA, 2007 apud CHAVES, p. 214).

[20] A Teoria Tridimensional de Miguel Reale “demonstra que a norma é oriunda de um valor atribuído a um fato (norma = fato + valor), donde é o valor que enseja a proteção da norma jurídica, e não o fato propriamente dito. Vale dizer, o valor é o que atribui significação ao fato abarcado pela norma, razão pela qual, se o elemento que ensejou a proteção de determinada situação fática estiver presente em outra, a interpretação extensiva ou a analogia demandará pela extensão do regime jurídico normatizado a esta última. Isso quer dizer que, por mais que a lei traga a expressão “o homem e a mulher” (ou seja, “fato” heteroafetivo), o valor por ela protegido não é a heterossexualidade, mas o amor de duas pessoas que gera uma entidade familiar (...) (VECCHIATTI, 2008).

[21] Neste sentido, Ragazzi e Garcia: “Prevalece entre nós, portanto, a concepção kantiana de que a dignidade da pessoa humana faz com que esta seja concebida como fim, e não como meio, noção que repudia toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[22] Segundo Ragazzi e Garcia, foi o filósofo Immanuel Kant quem mais influenciou o pensamento acerca da dignidade humana: “segundo ele, ‘as coisas tem preço, as pessoas tem dignidade’. Para Kant, a dignidade é o valor absoluto da racionalidade humana. Enquanto as coisas são seres destituídos de razão, relativas, portanto, as pessoas são seres racionais e possuem vontade, sendo que é esta vontade que lhes atribui dignidade, reconhecida como valor e atributo maior da pessoa humana” (grifei). (RAGAZZI E GARCIA, 2011).

[23] Neste mesmo sentido, Ana Carla Harmatiuk Matos preleciona: “Há de conhecer-se a dignidade existente na união homoafetiva. O conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo. a sexualidade está dentro do campo da subjetividade, representando uma fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, e partilhar a cotidianeidade da vida em parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da experiência humana” (MATOS, 2011).

[24] “O postulado da dignidade humana consagra a ideia de que o homem, em virtude tão somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado” (REGAZZI e GARCIA, 2011).

[25] Quanto à força normativa do preâmbulo constitucional, Walter Claudius Rothemburg alega: “os princípios instalam-se confortavelmente no preâmbulo, pleno de força normativa”.  Segundo o autor, os princípios alocados no preâmbulo ostentam a mesma força jurídica dos em outros espaços normativos. (ROTHEMBURG, 2003, p. 74 apud RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[26] Ilustrando quão maléfica é a negação ao exercício de liberdades dos indivíduos, Ragazzi e Garcia relembram a ditadura militar no Brasil: “Toda vez que o Estado suprime, restringe ou nega o exercício de liberdades inerentes à dignidade da pessoa humana, todos saem perdendo e, em muitas situações o resultado é catastrófico. O povo brasileiro foi vítima de uma cruel ditadura, época em que praticamente se aniquilou a liberdade de expressão. Foi necessária muita luta para que o país se redemocratizasse. Muitos dos brasileiros que, corajosamente, se opuseram ao regime e à ausência de liberdade que ele impunha foram mortos, presos, torturados, exilados. Tudo isso em nome de quê? Não havia justificativa plausível. A Constituição de 1988 foi erguida com o exato objetivo de representar um verdadeiro contraponto ao regime ditatorial que havia dominado o país naqueles assombrosos tempos, para que, enfim, e sem exceções, a liberdade abrisse suas asas sobre todos os brasileiros. Se assim o é, também a liberdade de orientação sexual está amplamente protegida pela Constituição Federal.” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[27] A fim de uma melhor compreensão acerca da força normativa de princípios não explícitos, a exemplo da razoabilidade, Ragazzi e Garcia fazem a distinção entre regras e princípios. Segundo ou autores, a principal diferença entre ambos está no grau de abstração com que se apresentam: enquanto o conteúdo normativo estabelecido pelo princípio é tido como geral, vinculado por normas vagas, amplas e abertas, que comportam uma série indefinida de aplicações, as regras são dotadas de normatividade mais específica. “O reconhecimento de que os princípios constitucionais, dada sua generalidade, se traduzem nos princípios gerais de direito, deflagra-lhes a possibilidade de estar, ou não, expressos no Texto Constitucional, de modo que, ainda que implícitos, serão dotados da mesma eficácia normativa. (...) É exatamente este contexto que nos leva ao reconhecimento do princípio constitucional da razoabilidade, que, ainda que não expressamente previsto no texto Constitucional, goza de importante eficácia e prestígio tanto na doutrina quanto na jurisprudência” (RAGAZZI e GARCIA, 2011).

[28] Atente-se para o fato de alguns autores, a exemplo de José Ragazzi, Thiago Garcia e Walter Claudius Rothemberg não considerarem a proporcionalidade enquanto princípio, mas enquanto critério de ponderação e interpretação constitucional, em razão dela (a proporcionalidade) não poder ser ponderada com outros princípios justamente por ser ela quem determina a ponderação. Em sentido contrário, Paulo Vecchiatti, Ana Paula de Barcellos e Luís Roberto Barroso, consideram-na princípio partindo-se de sua natureza teleológica, e não do seu conteúdo. Convém citar a escorreita colocação de Barroso: “o emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à procedência desses mandamentos dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta” (BARROSO e BARCELLOS, 2006, p. 361).

[29] Constituição Federal, de 1988: art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[30] Sobre posicionamento no mesmo sentido, veja-se excerto do voto do ministro relator Ayres Britto no julgamento conjunto da ADI 4.227-DF e APDF 132-RJ: “Noutra maneira de falar sobre o mesmo tema, tanto nos mencionados países quanto aqui na Terra Brasilis pós-Constituição de 1988, o sexo das pessoas é um todo pró-indiviso, por alcançar o ser e o respectivo aparelho genital. Sem a menor possibilidade de dissociação entre o órgão e a pessoa natural em que sediado. Pelo que proibir a discriminação em razão do sexo (como faz o inciso III do art. 1º da nossa Constituição Republicana) é proteger o homem e a mulher como um todo psicossomático e espiritual que abarca a dimensão sexual de cada qual deles. Por conseguinte, cuida-se de proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico” (grifos do autor).

[31] A autora ilustra seu dizer com um exemplo bem elucidativo trazido à baila por Roger Raupp Rios: “Assim, Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir o seu desejo ou sua conduta sexual. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discriminação; se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos, neste contexto, têm sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo”. Complementa ainda o autor que "contra este raciocínio, pode-se objetar que a proteção constitucional em face da discriminação sexual não alcança a orientação sexual; que o discrímen não se define pelo sexo de Paulo ou de Maria, mas pela coincidência sexual entre os partícipes da relação sexual, tanto que homens e mulheres, nesta situação são igualmente discriminados. Este argumento, todavia, não subsiste a um exame mais apurado. Isto porque é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou outra orientação sexual levar-se em conta o sexo, tanto que é o sexo de Paulo ou de Maria que ensejará ou não o juízo discriminatório diante de Pedro. Ou seja, o sexo da pessoa envolvida em relação ao sexo de Pedro é que vai qualificar a orientação sexual como causa de eventual tratamento diferenciado" (RIOS, 2001 apud CHAVES, 2011). (Referência: RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito, 2001, p. 72-73).

[32] Vide 2.2.1 O Afeto Como Elemento Propulsor da Família e o Pluralismo das Entidades Familiares. p. 14         


Abstract: This monograph is a literature review about the constitutionality of the Homoaffective Marriage. It looks for demonstrate the protection of this institute in the light of constitutional principles, notably the human dignity, principle that guides and legitimate the entire legal country order, sheaving all other fundamental principles such as freedom, legality, equality and respect for difference and non-discrimination on grounds of sex. A State which intends to be Democratic can not tolerate unwarranted distinctions between individuals, without any support rational, logical, and so justified constitutional as when it denies the right of access to marriage because of sexual orientation of the intending spouses. Indeed, there is no other justification for the obstacle of access to Marriage for gay couples, regardless of whether camouflaged on so many other excuses. This assertive is envisaged, inter alia: against the repulsion of the theory of the non existence; the fact that the heterogeneity of the genders does not constitute a cause of impediment to marriage; procreation is not characterizing element of marriage; sexual orientation does not violate the individual rights of third parties; the use of sexuality does not affect the human dignity; there is no express impediment constitutional or infra constitutional against the marriage between homosexual couples.

Key words:  Marriage. Constitucional. Dignity. Family. Homoaffective. Principles.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Evellin Costa e. O casamento homoafetivo à luz da constitucionalização do Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3418, 9 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22964. Acesso em: 25 abr. 2024.