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Pequena introdução ao mundo jurídico: temas e elementos de introdução ao estudo do Direito

Pequena introdução ao mundo jurídico: temas e elementos de introdução ao estudo do Direito

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Trata-se de uma pequena introdução ao mundo jurídico, apresentando, em uma linguagem simples e clara, dentre os diversos temas que o estudante do Curso de Direito enfrentará desde o seu primeiro período, aqueles mais recorrentes.

1. Introdução

“A mais alta das torres começa no solo”. Nada melhor que um antigo provérbio chinês para expressar a importância de se entender os conceitos e os institutos básicos de todo o edifício jurídico. Obviamente, cada ramo do Direito, ao trazer suas peculiaridades sempre vai retornar a esses conceitos e institutos básicos, quando seu uso lhes for necessário. Assim, iniciar o Curso de Direito com uma cadeira ou disciplina dedicada à Introdução ao Direito ou à Ciência do Direito é importante para que se possa preparar o terreno para que os novos estudantes possam se familiarizar com as discussões, conceitos, institutos e linguagem jurídicos.

O domínio da linguagem jurídica é imprescindível para que o estudante ingresse no e se familiarize com o mundo jurídico. Conforme ensina Tárek Moysés Moussallem, compreender que o ser humano habita um mundo cultural que resgata eventos físicos por meio de interpretações sobre eles, construindo uma versão sobre os acontecimentos[1], é fundamental para entender a lógica na qual opera o mundo jurídico. Por exemplo, quando se questiona “que é direito”, o que se espera é uma única resposta que, depois de séculos de espera e de conjecturas, não foi dada. Melhor seria perguntar “quais os possíveis significados da palavra direito”, para o que seriam dadas várias respostas que nada mais são que interpretações possíveis sobre o mesmo fenômeno. Dentre essas várias respostas, serão aqui retidas duas, as quais irão acompanhar o estudante mais frequentemente.

A primeira representa o que atualmente se denomina direito positivo: um conjunto de normas jurídicas válidas em determinado momento e local, formando o que se pode chamar de ordenamento jurídico. A segunda representa o que se denomina ciência do Direito: ciência que tem por objeto o ordenamento jurídico e que geralmente é chamada de dogmática jurídica. É muito importante ter clara a distinção entre direito positivo e ciência do Direito[2].

A ciência pressupõe a existência de um saber metódico e sistematizado, isto é, um saber que requer uma coerência interna, baseado em uma sistematização que pressupõe a existência de um método, de um caminho, armado com princípios próprios, regras peculiares e técnicas ou instrumentos úteis, que permita melhor conhecer o objeto estudado[3]. No caso da ciência do Direito, o objeto a ser estudado é o ordenamento jurídico, que, preliminarmente, nada mais é que um conjunto de normas jurídicas válidas em determinado momento e local – a ciência do Direito ocupa-se do direito positivo.

A ciência do Direito é a metalinguagem: a linguagem sobre a linguagem do Direito, já que fala sobre o seu objeto, possuindo, então, natureza eminentemente descritiva. Já o direito positivo é a linguagem, o próprio objeto, possuindo natureza prescritiva. Daí que o objeto a ser estudado em um Curso de Direito seja o ordenamento jurídico, quer dizer: um conjunto de normas jurídicas que prescrevem um dever-ser, ou, melhor, regras de comportamento elaboradas por agentes credenciados e que ensejam a possibilidade de aplicação de uma sanção institucionalizada, isto é, que contará com o amparo do Estado para sua possível aplicação. Estuda-se, portanto, a ordem jurídica posta, isto é, o Direito positivo, considerado aqui e agora.

Nesse sentido, esta pequena introdução ao mundo jurídico é uma proposta para que se possa fazer a iniciação do estudante do Curso de Direito no mundo jurídico. À linguagem por ele comumente utilizada em seu dia-a-dia será incorporada, paulatinamente, a nova linguagem, a jurídica. Pretende-se, com isso, ter-se um texto que ajude o estudante a pensar o Direito, a viver o Direito, a entender o Direito. Para isso, são utilizados como fontes bibliográficas textos que devem ser lidos pelos estudantes durante o seu período de iniciação jurídica.


2. A importância do estudo do Direito

A primeira questão, dentre as várias que são postas, tem a ver com a importância do estudo do Direito. Questiona-se, assim, qual a importância do Direito na sociedade? Tal pergunta é de extrema importância para que o estudante possa visualizar a relevância de cada matéria do Curso de Direito que lhe é apresentada nos dez semestres que cursará.

A importância do Direito é trazer ordem, certeza, paz, segurança e justiça, que são, pois, finalidades do Direito, não se podendo confundir com o próprio Direito, já que não se pode confundir o objeto com a sua finalidade. Portanto, o Direito é um instrumento que existe para evitar conflitos e, não sendo possível evitá-los, existe também para solucioná-los. Daí se dizer que a função precípua do Direito é trazer segurança jurídica, tendo como fim concretizar a justiça, isto é, o que é justo.

Para fazer isso, são firmados enunciados prescritivos, ou seja, frases que prescrevem alguma coisa, que determinam algo. No mundo jurídico, esses enunciados prescritivos podem ser transformados em normas jurídicas, isto é, em instrumentos que regulamentam as condutas e as relações entre as pessoas – por isso, esses enunciados prescritivos podem ser chamados também de enunciados normativos, no sentido de que prescrevem normas.

O ato de estabelecer normas jurídicas decorre da necessidade de regulamentar os comportamentos humanos, na busca por determinar uma interação intersubjetiva mais ordenada e harmônica, mais segura e justa. Portanto, em geral, as normas jurídicas são criadas a partir da observação prévia de fatos e atos humanos, o que permite afirmar que as normas jurídicas fundam-se na natureza social humana e existem para evitar uma situação instável em que impera a lei do mais forte, produzindo constante incerteza.

Debelar essa incerteza é a função do Direito, que se baseia, principalmente com o advento do Estado de Direito (rule of law), especialmente com a derrocada do Antigo Regime absolutista (government by men), no princípio da segurança jurídica, o qual, se devidamente observado, produz certeza na aplicação do Direito, tornando segura a vida das pessoas e suas relações intersubjetivas estáveis, possibilitando que se tenha confiança em seus conceitos, institutos e instituições. Portanto, o propósito da segurança jurídica é permitir haver confiança dos cidadãos no Direito ao qual estão submetidos, em seus institutos e instituições enquanto instrumentos de manutenção da ordem e da harmonia sociais.

Nesse sentido, toda sociedade funda-se em normas jurídicas, as quais regulamentam comportamentos em prol do bem comum. E, assim, pode-se afirmar que o Direito positivo é um conjunto de normas jurídicas que têm como objetivo determinar a vida social, ou, ainda, as relações intersubjetivas, resguardando os direitos e as liberdades das pessoas e atribuindo-lhes deveres e obrigações. Portanto, embora a ciência do Direito se ocupe do estudo do Direito positivo, é dizer, das normas jurídicas consideradas em seu conjunto, é conveniente que se esclareça que o Direito é um fenômeno muito mais que simplesmente normativo, é um fenômeno social, devendo ser observado, porque é forte a relação, de um ponto de vista socioaxiológico – ou seja, Direito é uma tríade (fato, valor e norma), e como tal deve ser quotidianamente visto.


3. Fundamento do Direito

Mas onde o Direito encontra o seu fundamento de existência e de validade? Para as chamadas correntes jusnaturalistas (assim denominadas porque se baseiam na natureza das coisas), há um conjunto de primeiros princípios que são inerentes à natureza humana, preexistentes à organização político-social dos seres humanos e independente da criação do legislador, ou seja, anteriores ao direito positivo. As correntes jusnaturalistas podem ser divididas em duas principais: a) de um lado, o jusnaturalismo teológico, para o qual o Direito decorre da revelação divina e, portanto, independente dos próprios seres humanos, assumindo caráter transcendental, o que liga os autores dessa corrente ao absolutismo; b) de outro lado, o jusnaturalismo racionalista, para o qual o Direito é inerente à condição humana, anterior às organizações político-sociais humanas, as quais apenas o concretizarão[4].

As correntes jusnaturalistas admitem, em geral, a correlação entre Direito e Justiça, produzindo, então, valorações sobre o Direito, considerando apenas como Direito o que é justo e negando ao Direito injusto o caráter de Direito[5]. Ao se fundamentarem sobre a existência de princípios inerentes à natureza humana, as correntes jusnaturalistas defendem que o Direito é imutável e atemporal, o que se explica tanto em relação às correntes teológicas quanto em relação às correntes racionalistas, pois o Direito seria independente das (matriz teológica) ou anterior às (matriz racionalista) organizações humanas, o que também permite aos seus defensores afirmar que existe um direito superior ao direito positivo.

Tradicionalmente, o Direito natural qualifica-se por ser eterno, atemporal, imutável, justo, não escrito e universal. Algumas dessas características, no entanto, serviram para a formulação de uma pesada crítica ao jusnaturalismo. Critica-se, por exemplo, o fato de se pretender um Direito eterno, atemporal, imutável e universal, ou seja, válido para todos os seres humanos em todas as épocas, independente do território que habitem – afirmar-se que o Direito não muda de acordo com critérios espaciotemporais é desconsiderar que os seres humanos se organizam de maneiras distintas, que as realidades sociais variam e que os anseios e os interesses humanos estão em constantes transformações. Exemplo atual é o da união estável entre pessoas do mesmo sexo, se o Direito fosse efetivamente imutável, esse tipo de relação familiar não seria possível. Critica-se, também, o fato de o Direito natural se pretender justo, já que, sob essa perspectiva, o Direito não se poderia afirmar como ciência, já que esta requer neutralidade axiológica, não se podendo dizer que seu respectivo objeto é verdadeiro ou falso, bom ou mau, justo ou injusto – diante disso, o jusnaturalismo se incompatibiliza com a ciência do Direito.

Outro grupo de correntes é aquele a que se pode chamar de juspositivista, para o qual o Direito é sempre positivo, decorrente de atos de vontade, de formulações humanas. O juspositivismo identifica o Direito positivo com o Direito estatal, escrito ou não escrito, ou seja, com o Direito criado e formulado pelo ente legitimado para isso, o Estado. Esse grupo de correntes não contempla juízos de valor sobre o objeto de estudo, garantindo, pois, uma neutralidade axiológica. Quem melhor desenvolveu esse isolamento do objeto da ciência do Direito foi Hans Kelsen, cuja teoria pode ser enquadrada no racionalismo dogmático ou normativismo jurídico.

O que Kelsen propugnava era o estudo do Direito a partir de métodos jurídicos, e não a partir de uma metodologia sociológica, filosófica, antropológica, teológica, filosófica etc. como se vinha fazendo – não que tais abordagens não fossem importantes, como o próprio jurista de Praga deixa claro[6]. Kelsen lançou a ideia de pureza metódica. Para ele, se a ciência do Direito tem como objeto o conjunto de normas jurídicas, então o estudo dessas normas tem de obedecer apenas a uma metodologia jurídica. A ideia de Kelsen foi, então, a de conferir neutralidade e objetividade à ciência do Direito, o que lhe traria autonomia enquanto ciência.

Em sua Teoria pura do Direito[7], Kelsen trabalha com duas categorias originárias do conhecimento: o ser (que se localiza no mundo ôntico, isto é, dos fatos, revelando aquilo a que se pode chamar de fontes jurídicas materiais) e o dever-ser (que se localiza no mundo deôntico, isto é, das normas, revelando aquilo a que se pode chamar de fontes jurídicas formais). Enquanto o ser é regido pela lei da causalidade, o dever-ser rege-se pela lei da imputação. Pela causalidade, todo efeito tem de ter uma causa, de maneira que é impossível o descumprimento de uma lei baseada na causalidade, assim, uma maçã cai da árvore porque sobre ela incide a lei gravitacional. Pela imputabilidade, não existe a previsibilidade de um efeito para uma causa, de maneira que com o descumprimento de uma lei baseada na imputação, pode ser que um efeito determinado surja; desde que haja uma imputação, ou seja, uma relação de determinação.

O Direito está sujeito à lei da imputação, em que uma norma determina a outra, estabelecendo relações normativas, as quais permitem determinar qual o fundamento de existência e de validade de cada norma – e para evitar as remissões infinitas, Kelsen estabeleceu um marco, uma norma básica pressuposta que determina até onde vai o campo do Direito e a partir de quando não se está mais no campo estritamente jurídico. Assim, cada norma é determinada por outra norma (determinante), buscando aquelas nesta sua validade jurídica, sucessivamente até alcançar a norma básica pressuposta, que é lógica (pois fecha o sistema jurídico), jurídica (pois determina a validade de outras normas) e não positiva (pois é tão-somente pensada).

As relações de imputação determinam a existência de um escalonamento de normas jurídicas e a existência de uma norma básica pressuposta sugere que o topo desse tipo de hierarquia seja um vértice, gerando, portanto, a figura de um triângulo ou pirâmide como representação da estrutura lógica da ordem jurídica. O topo da pirâmide normativa é ocupado, no nível lógico-jurídico não positivo, pela norma básica pressuposta, ao passo que, no nível jurídico-positivo, a Constituição é que ocupa a cúspide da pirâmide. Diante disso, tem-se que todas as normas jurídicas de um determinado ordenamento jurídico devem buscar sua validade, em última instância, na Constituição.

Obviamente, a teoria kelseniana não é perfeita, apresentando inúmeros problemas que têm sido apontados por vários teóricos do Direito. No entanto, é de se observar que, por outro lado, é a teoria mais aplicada no estudo do Direito – tanto é que durante os cinco anos de Curso de Direito o estudante se depara, principal e basicamente, com o estudo do ordenamento jurídico, ou seja, da norma jurídica, não com o estudo dos fatos que deram origem a essas normas ou com o estudo dos valores que sobre ela incidem – não que não os estude ou que eles não tenham importância, mas primeiro é necessário conhecer as normas para depois fazer juízos de valor sobre elas, imprimindo as suas considerações ideológicas, o que é inevitável.

É preciso notar, assim, que Kelsen não defendia que o jurista fosse uma máquina que vomitasse normas jurídicas, e sim que para o Direito poder ser considerado uma ciência era preciso que seu objeto (as normas jurídicas) fosse estudado a partir de um método jurídico, sem que sobre isso fossem injetados juízos de valor, mantendo-se a objetividade científica e a neutralidade axiológica. Assim, a neutralidade proposta por Kelsen é sobre a análise do objeto, não do jurista em si, este deve ser imparcial, o que não significa que deva colocar seu posicionamento ideológico entre parênteses e analisar o objeto, como, ademais, sugere o reducionismo fenomenológico. Kelsen, aliás, não defendia a existência de um Direito imutável, eterno e universal, e sim que é preciso um mínimo de acordo sobre qual o seu objeto e como se dão as relações internas a esse objeto, a fim de que não se crie uma Torre de Babel.

Além dessas duas principais correntes, há que se fazer menção ao tridimensionalismo jurídico, que, proposto por Miguel Reale, enxerga o Direito como uma relação entre norma, fato e valor. Para o jurista brasileiro, há “três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)[8]”. A teoria do tridimensionalismo do Direito contrapõe-se à kelsenianismo: este enxerga uma contraposição entre fato (ser) e norma (dever-ser); aquela, segundo Miguel Reale, defende que a norma jurídica indica um caminho, que deve, porém, partir de um determinado ponto, o fato, e ser guiado por certo rumo ou direção, o valor[9].

Para a teoria tridimensional, o Direito não é só norma nem só fato, muito menos tão-somente valor, mas uma integração dos três. Ao que explica o falecido professor: “onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor[10]”. Daí que se possa dizer que para a teoria tridimensional do Direito, a norma incide sobre o fato conforme uma determinada ordem de valores, ou seja, o valor é o que dá sentido ao fato, consubstanciando-se no elemento moral do Direito.

Assim, ao menos três respostas são aceitáveis para a questão anteriormente posta: “onde o Direito encontra o seu fundamento de existência e de validade?”. Por uma resposta jusnaturalista, o fundamento está em Deus ou na natureza humana. Por uma resposta kelseniana, o fundamento está em outra norma estabelecendo uma relação de imputação ou de determinação, que vai chegar sempre em uma norma básica pressuposta (também conhecida como norma hipotética fundamental). Por uma resposta realiana, ou, de maneira mais abrangente, culturalista, o fundamento do Direito está nas normas jurídicas que visam proteger valores.


4. Direito e Moral

Mas o Direito se distingue de outras formas de controle social, como, por exemplo, a Moral. Embora se possam indicar outras, a nota distintiva essencial é a coercibilidade, que é atributo do Direito, não da Moral, ou seja, o Direito tem a possibilidade de coagir a observância das normas jurídicas, impingindo, em caso de seu descumprimento, sanções legítimas, inclusive com o uso legitimado da força física, aos indivíduos, enquanto que a Moral não possui tal característica, sendo, pois, incoercível, já que incompatível com o uso da força. Apesar de haver consenso sobre a distinção entre Direito e Moral, foram criadas teorias para explicar as relações entre esses dois tipos de controle social.

Uma dessas teorias é a teoria dos círculos, pela qual a relação entre Direito e Moral pode ser representada por: a) círculos concêntricos, em que o campo de abrangência da Moral é maior que o do Direito, inscrevendo-se este naquela, ou a ela se subordinando (a teoria é defendida, dentre outros, por J. Bentham); b) círculos secantes, pelo que os campos do Direito e da Moral possuiriam uma área de interseção (a teoria é defendida, dentre outros, por C. Pasquier); c) círculos independentes, em que Direito e Moral não se misturam, ou seja, o Direito não busca seu fundamento na Moral (a teoria é defendida, dentre outros, por H. Kelsen).

Outra teoria é a teoria do mínimo ético, pela qual o Direito representa um mínimo de preceitos morais declarados obrigatórios, podendo-se dizer que, para os defensores dessa teoria (G. Jellinek), o Direito se inscreve completamente no campo da Moral, de maneira que são círculos concêntricos. Essa teoria, assim como a teoria dos círculos concêntricos está sujeita a diversas críticas. Dentre elas, critica-se a expressão “mínimo ético”, que é no mínimo dúbia já que se o Direito possui um mínimo ético, isso levaria aos círculos secantes, não aos círculos concêntricos. Outra crítica se direciona ao fato de que existem normas jurídicas que não são morais (amorais), ou seja, que são indiferentes à Moral, que não influem na vida moral, bem como condutas lícitas juridicamente que são moralmente reprováveis (imorais), de modo que não há como dizer que os círculos do Direito e da Moral são concêntricos[11].

Por fim, pode-se apontar o posicionamento de L. L. Fuller[12], que em uma discussão acadêmica com H. L. A. Hart[13], afirmou não haver confusão entre Direito e Moral, e sim que o Direito tem uma Moral que lhe é ínsita, indispensável para manter a ordem, harmonia, paz, segurança, justiça e equilíbrio sociais. Esse entendimento se aproxima bastante dos círculos secantes. Mas, talvez, o mais sensato seja, afirmar-se que o Direito tem uma moral que lhe é inerente e, ao mesmo tempo, possui questões em comum com o campo da Moral.


5. Dicotomias úteis do Direito positivo

Superada essa questão, há que se reafirmar que o que se estuda durante o Curso de graduação em Direito é o Direito positivo, o Direito posto, o ordenamento jurídico, o conjunto de normas jurídicas – não que o estudante não possa emitir juízos de valor sobre normas jurídicas, quando as interpreta, mas para que possa fazê-lo da melhor forma, é preciso que as conheça para que possam sobre elas registrar seu posicionamento. Daí que o que o estudante de Direito passa os seus cinco anos de graduação estudando é o que se convencionou chamar de Dogmática Jurídica, onde dogma “não significa verdade que não se discute, mas significa apenas o Direito posto[14]”, como aponta Miguel Reale.

É no que diz respeito ao Direito positivo que se baseia, a partir de agora, a presente introdução ao mundo jurídico. O que se introduz, a partir de agora, são elementos-chave para entender melhor como o Direito se desenvolve e se exprime. Nisso, apresentam-se as dicotomias mais comuns do Direito positivo, a seguir resumidas.

A primeira dicotomia classifica o Direito positivo em: a) Direito objetivo, em que se enxerga o Direito como uma realidade objetiva, ou seja, um conjunto de normas jurídicas regulamentadoras de condutas – trata-se, pois, da ordem normativa; b) Direito subjetivo, em que se enxerga o Direito como uma realidade subjetiva, referindo-se, portanto, a um sujeito, significando que ele detém uma determinada posição favorável – trata-se, pois, de um conjunto de direitos[15]. Pode-se dizer que no primeiro caso o que se tem é um ramo do Direito que regulamenta comportamentos, como, por exemplo, o Direito de Sucessões e o Direito das Coisas, enquanto no segundo caso o que se tem é algo que se pode exercer, ou seja, um direito, assim, direito de suceder e direito de propriedade, por exemplo.

A segunda dicotomia classifica o Direito positivo (objetivo) em: a) Direito público: consiste no Direito positivo que regulamenta as relações em que o Estado é parte, atuando em razão de sua soberania e de sua função enquanto garantidor do interesse público; b) Direito privado: é o Direito positivo que disciplina as relações entre particulares, em que há o predomínio imediato de interesses de ordem privada.

A partir dessa dicotomia, pode-se dividir o Direito nos ramos a seguir:

1) Direito positivo público interno: Direito constitucional (regulamenta a estrutura e a organização do Estado, além de estabelecer uma carta de direitos), Direito administrativo (regulamenta a organização e o funcionamento da Administração Pública), Direito penal (tipifica e estabelece sanções a atos considerados como delitos), Direito financeiro (regulamenta a atividade financeira do Estado), Direito tributário (regulamenta as relações entre a Fazenda Pública e os contribuintes), Direito processual (regulamenta a organização judiciária e o processo judicial), Direito previdenciário (regulamenta as contribuições e os benefícios da seguridade social), Direito eleitoral (regulamenta as questões referentes ao sufrágio, escrutínio e voto);

2) Direito positivo público externo: Direito internacional público (regulamenta as relações entre Estados soberanos), Direito internacional privado (regulamenta os conflitos das leis no espaço), Direito dos tratados (disciplina a questão referente aos tratados e convenções internacionais);

3) Direito positivo privado: Direito civil (regulamenta as relações entre as pessoas, suas obrigações e das pessoas com as coisas), Direito comercial ou empresarial (regulamenta relações atinentes ao comércio e às atividades empresariais), Direito do trabalho (regulamenta as relações trabalhistas), Direito do consumidor (regulamenta as relações de consumo).

A terceira dicotomia classifica o Direito positivo em substancial, que é aquele que se refere ao Direito positivo material, e em adjetivo, que é aquele que se refere ao Direito positivo processual.


6. Fontes do Direito

Superado esse ponto, antes de se passar ao que se pode chamar de teoria geral do direito, cumpre discorrer sobre as fontes do Direito. Com o termo “fonte” não se quer dizer propriamente aquele lugar no qual se origina o Direito, e sim aqueles lugares dos quais é possível extrair normas jurídicas, ou nos quais se pode buscar o fundamento de validade dessas normas, ou, ainda, indicando, segundo Miguel Reale, “os processos de produção de normas jurídicas[16]”. Quando se fala em fontes do Direito, refere-se a fontes do Direito objetivo. Costuma-se classificar as fontes em materiais (fundamentos éticos e sociais das normas jurídicas) e formais (mecanismos de introdução de normas jurídicas na ordem jurídica), subdividindo-se as formais em estatais (processo legislativo, jurisprudência e convenções e tratados internacionais) e em não estatais (prática costumeira, doutrina, convenções e negócios jurídicos).

As fontes materiais são os fatores sociais e os valores de determinada sociedade em uma determinada época que inspiram e influenciam a produção do Direito positivo, determinando tanto o surgimento quanto as mudanças e a extinção das normas jurídicas. Logo, fontes materiais, como aponta Paulo Dourado de Gusmão, “são as constituídas por fenômenos sociais e por dados extraídos da realidade social, das tradições e dos ideais dominantes, com as quais o legislador, resolvendo questões que dele exigem solução, dá conteúdo ou matéria às regras jurídicas[17]”, às fontes formais do Direito.

Assim, as fontes materiais são fontes pré-jurídicas, de maneira que, como aponta Miguel Reale, a expressão “fonte material” indica “o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos fatos econômicos que condicionam o aparecimento e as transformações das regras de direito. Fácil é perceber que se trata do problema do fundamento ético ou do fundamento social das normas jurídicas, situando-se, por conseguinte, fora do campo da Ciência do Direito[18]”.

Portanto, as fontes materiais não são objeto de estudo da ciência do Direito, e sim de ciências afins ao Direito, dentre elas a Sociologia e a Filosofia. Influenciam, portanto, nos atos de vontade que criam fontes formais, sejam elas estatais ou não estatais, bem como nos atos de vontade do operador jurídico ao interpretar e ao aplicar as normas jurídicas.

O objeto de estudo da ciência do Direito são, portanto, as fontes formais, que podem ser estatais ou não estatais. As fontes formais podem ser entendidas como a forma pela qual o Direito positivo, escrito ou não escrito, pode ser conhecido. As fontes formais não estatais englobam os costumes, a doutrina e os negócios jurídicos.

Os costumes, resultado da prática consuetudinária, são talvez a forma mais antiga de expressar o Direito, pois este é um fato social. Atualmente, os costumes se apresentam como fonte subsidiária para a aplicação e para a interpretação do Direito. Pode-se definir o costume como uma prática social reiterada, uniforme e contínua, isto é, como um uso social que determina, de maneira razoável, moral, sociável e justa, comportamentos tornando-se, com o tempo, obrigatório e exigível, adquirindo, pois, natureza jurídica, de norma jurídica. A fonte é, assim, a prática consuetudinária, e o costume é o seu resultado, adquirindo foro jurídico, ou seja, de costume jurídico, com força de norma jurídica.

Há que se observar, no entanto, que a prática consuetudinária, quando legislada, deixa de ser costume e passa a se apresentar como norma jurídica que decorre de lei. Assim, o costume difere da lei não só pelo primeiro ser uma fonte não estatal e a segunda uma fonte estatal, mas principalmente porque o costume é uma fonte não escrita de normas jurídicas enquanto a lei é uma fonte escrita de normas jurídicas. Ronaldo Poletti traz algumas distinções básicas importantes entre a lei e o costume: (a) quanto à origem, as leis têm origem certa, sendo, por isso, predeterminadas, ao passo que os costumes têm origem incerta, não sendo, por isso, predeterminados; (b) quanto à forma de elaboração, as leis contam com um processo previamente estabelecido, enquanto os costumes são criados de maneira imprevista; (c) quanto ao âmbito de eficácia, a lei é geral, abrangendo maior número de situações e pessoas, ao passo que o costume é particular, abrangendo situações e pessoas específicas; (d) quanto à forma, as leis são escritas e os costumes não são escritos; (e) quanto à vigência, as leis pode simplesmente deixar de produzir efeitos ou ser revogada por outra lei, enquanto os costumes simplesmente deixam de viger por terem perdido sua coercibilidade natural; (f) quanto à razão de sua existência, as leis são fruto de uma ação racional, de um ato de vontade pensado, e os costumes decorrem de uma ação espontânea, normalmente impensada; (g) quanto à execução, as leis têm uma execução imediata e geral, de maneira que a sua prova de existência se dá com a sua publicação, além de terem presunção de vigência, ao passo que os costumes precisam ser provados e admitem prova em contrário quanto à sua vigência[19].

Diante de sua posição no ordenamento jurídico de fonte subsidiária da legislação (das leis em sentido amplo), o costume pode se apresentar de três maneiras: (a) secundum legem, que é o “costume interpretativo, que dá a usual interpretação de uma lei[20]”, e que se confunde com a própria legislação, que o reconhece expressamente; (b) praeter legem, que é o costume com nítido caráter supletivo, ou seja, que preenche eventuais lacunas legais; (c) contra legem, que é o costume contrário à lei, comum quando a lei cai em desuso ou quando não é observada.

A rigor, o costume contra legem não pode ser admitido, já que apenas uma lei pode modificar ou revogar (parcial ou integralmente) outra (art. 2º, LINDB). No entanto, há que se abrandar tal rigor para permitir, em casos excepcionais e fundados na justiça, que o costume contra legem seja aceito, notadamente quando a realidade fática e a realidade jurídica estão desajustadas. Fala-se, então, em consuetudo abrogatoria, que, de acordo com Paulo Nader, “se caracteriza pelo fato de a prática social contrariar as normas de Direito escrito[21]”. Essa questão se confunde com o problema das leis em desuso, que é chamado de desuetudo, em que, para Paulo Nader, “a caracterização do desuso não se dá apenas com a não aplicação da lei pelos órgãos competentes. É imperioso que o descaso da autoridade seja à vista da ocorrência dos fatos que servem de suporte à lei. Quando esta cai em desuso[22], realizam-se os fatos descritos no suposto ou hipótese da norma jurídica, sem haver, contudo, a aplicação da consequência ou disposição prevista[23]”.

Para tanto, “o desuso deve estar generalizado na área de alcance da lei por um prazo de tempo suficiente para gerar, no povo, o esquecimento da lei[24]”. As causas do desuso podem ser as mais variadas, as quais são passíveis de reunião em dois grandes grupos: um em que o desuso decorre da própria lei, outro em que o desuso advém de interesses que são externos à lei, embora sobre ela tenham influência[25]. Dentre as causas internas, isto é, decorrentes da própria lei, pode-se falar em leis anacrônicas – que, sem eficácia social, porque não acompanharam o desenvolvimento da sociedade, permaneceram no sistema jurídico, porque o legislador dele não as retirou –; em leis artificiais – quando a norma jurídica não corresponde à prática social, ou seja, quando é fruto de elucubração teórica que não encontra na sociedade prática que lhe corresponda e permita sua incidência; em leis injustas; e em leis defectivas – quando à lei faltam recursos de aplicabilidade, ou seja, quando a norma jurídica depende de um complemento que ainda não existe no mundo jurídico, seja pela inexistência de lei regulamentadora, seja pela inexistência de outro tipo de fonte jurídica que contribua para sua aplicação prática.

Além do costume, também se perfilha como fonte formal não estatal, a doutrina. Trata-se do resultado da atividade científica dos juristas, isto é, de especialistas no estudo do Direito. A doutrina sistematiza normas, fornece conceitos, interpreta a legislação, cria classificações, emite juízos de valor, aponta a necessidade de reformas do ordenamento jurídico. A doutrina tal qual o costume é uma fonte subsidiária, servindo tanto para a aplicação quanto para a interpretação do Direito, especialmente a partir dos princípios gerais do direito, que são, em sua grande maioria, criações de juristas, e que dependem, para se tornarem fontes jurídicas, da sedimentação costumeira ou de seu uso pelos magistrados.

Por fim, quanto às fontes formais não estatais, há que se falar sobre os negócios jurídicos enquanto fontes jurídicas. O negócio jurídico típico é o contrato, que faz lei entre as partes, ou seja, estabelece entre os contraentes um conjunto de normas jurídicas individuais, que, no entanto, devem estar de acordo com as normas jurídicas abstratas e gerais decorrentes das fontes jurídicas formais estatais. Excepcionalmente um negócio jurídico ensejará a criação de normas jurídicas gerais, como acontece, por exemplo, no Direito brasileiro, com as convenções e os acordos coletivos de trabalho.

As fontes formais estatais englobam o processo legislativo, a jurisprudência e os tratados e convenções internacionais.

O processo legislativo é a principal fonte formal dos ordenamentos jurídicos modernos e seu o produto são as leis, que em sentido amplo se referem às diversas espécies normativas (ou legislação) e, em sentido estrito ou técnico, têm a ver com a produção decorrente da atividade do poder legislativo. O resultado do processo legislativo pode ser primário, se tem a aptidão para inovar na ordem jurídica, criando, assim, direitos e obrigações, e pode ser secundário, se não possui tal aptidão, servindo para dar eficácia ou executividade às leis. Assim, a legislação pode ser primária ou secundária.

A legislação primária comporta as seguintes espécies: a) lei constitucional, que é aquela que se sobrepõe a todas as demais normas do ordenamento jurídico, refletindo suas regras e princípios, sendo exemplos a Constituição e as emendas constitucionais; b) a lei complementar, utilizada para certas matérias constitucionalmente especificadas, em virtude de exigir um quórum de aprovação qualificado; c) a lei ordinária, que é o ato legislativo típico; d) a lei delegada, que é elaborada pelo Presidente da República ou por comissão ou Casa do Congresso, devendo haver permissão (ou delegação) pelo poder legislativo, obedecendo-se determinados limites; e) as medidas provisórias, que não são leis, mas têm força de lei, consistindo em normas expedidas pelo Presidente da República no exercício de competências constitucionais, devendo observar os critérios da urgência e da relevância, além de serem imediatamente submetidas ao Congresso para apreciação e, se for o caso, conversão em lei; f) o decreto legislativo, que é editado pelo Congresso sobre matéria de sua exclusiva competência e promulgado pelo presidente do Senado, sem necessidade de submissão ao Presidente da República; g) as resoluções do Senado Federal, que têm força de lei ordinária e que dizem respeito a assuntos de seu interesse peculiar.

Por sua vez, a legislação secundária abrange, por exemplo, as seguintes espécies: a) os decretos regulamentares, que são normas jurídicas expedidas pelo poder executivo para regulamentar uma lei, facilitando sua execução ou sua aplicação; b) as instruções ministeriais, que são expedidas pelos Ministros de Estado, para executar leis, decretos ou regulamentos sobre temas específicos de sua pasta ministerial; c) as circulares, que são normas jurídicas que ordenam a realização de serviços administrativos; d) as portarias, que são normas gerais expedidas por órgão superior para observância de órgãos inferiores a ele subordinados; e) as ordens de serviço, que determinam a execução de serviços determinados.

Vistas quais as fontes formais estatais primárias e secundárias, é necessário tratar sobre o processo legislativo, que é a verdadeira fonte formal estatal[26], podendo ser definido, segundo Maria Helena Diniz, como “um conjunto de fases constitucionalmente estabelecidas, pelas quais há de passar o projeto de lei, até sua transformação em lei vigente[27]”. Em regra, as espécies normativas seguirão o seguinte procedimento: a) iniciativa: ato que desencadeia o início do trâmite de um projeto de lei; b) discussão: quando as comissões se pronunciam sobre o projeto, podendo ser apresentadas emendas; c) deliberação ou votação: quando o poder legislativo se manifesta favorável ou desfavorável ao projeto; d) sanção ou veto: quando o chefe do executivo recusa o projeto, submetendo-o a uma nova apreciação pelo legislativo, ou concorda com o projeto, quando se dará a: e) promulgação do projeto: quando este se transforma em lei, passando a existir juridicamente, de modo que se pode exigir sua aplicação e seu cumprimento; f) publicação: quando a lei se torna pública, isto é, de conhecimento da comunidade. Além do processo legislativo, há que se observar a devida técnica legislativa, que consiste no conjunto de procedimentos e de normas específicas para a elaboração, para a redação e para a alteração das leis em sentido amplo.

Outra fonte formal estatal é a jurisprudência, que pode ser conceituada como um conjunto de decisões uniformes e reiteradas dos tribunais sobre determinadas matérias, ou seja, decisões sobre interpretação e aplicação de normas jurídicas. Além de ementários de jurisprudência, os tribunais têm uma súmula de jurisprudência que contém enunciados, vinculantes ou não. Esses enunciados são chamados, normalmente, na prática jurídica, embora sem muita técnica, de súmulas, que podem ter duas naturezas, ou ser orientadoras ou ser vinculantes, a depender do tribunal que as edita e de seu processo de aprovação; além das súmulas, há tribunais que editam orientações jurisprudenciais.

Como resultado do modo como os tribunais interpretam os institutos jurídicos, as decisões judiciais (e o conjunto delas, a jurisprudência) são uma importante fonte formal estatal do Direito, já que elas promovem uma atualização da legislação de acordo com as configurações sociais atuais, além de preencherem eventuais lacunas deixadas pelo legislador. Assim, pode-ser ver a jurisprudência como um suplemento da legislação.

Sob esse aspecto, pode-se afirmar que os juízes detêm poder normativo, já que criam normas jurídicas, tanto quando integram (preenchendo lacunas) ou corrigem antinomias (conflitos de normas) quanto quando realizam a subsunção do fato à norma. Ou seja, eles, os magistrados, têm o poder de criar normas jurídicas gerais e abstratas (normalmente quando lhes são submetidos processos objetivos, isto é, para decidirem sobre normas), bem como de criar normas jurídicas individuais e concretas (quando lhes são submetidos processos subjetivos, nos quais decidem casos concretos, com base na realidade social que lhes é apresentada pelas partes interessadas).

Por fim, dentre as fontes formais estatais figuram também tratados e convenções internacionais, que são, segundo Valerio de Oliveira Mazzuoli, “incontestavelmente, a principal e mais concreta fonte do Direito Internacional Público na atualidade, não apenas em relação à segurança e estabilidade que trazem nas relações internacionais, mas também porque tornam o direito das gentes mais representativo e autêntico, na medida em que se consubstanciam na vontade livre e conjugada dos Estados e das Organizações Internacional, sem a qual não subsistiriam. Além de serem elaborados com a participação direta dos Estados, de forma democrática, os tratados internacionais trazem consigo a especial força normativa de regularem matérias das mais variadas e das mais importantes[28]”. De acordo com Mazzuoli, “os tratados internacionais são superiores às leis internas[29]”, devendo-se, acresça-se, observar que os tratados e as convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados com quórum e procedimento de emenda constitucional, terão a mesma força dessas emendas, enquanto aqueles que não forem, serão considerados como fontes supralegais, isto é, possuindo uma hierarquia intermediária entre a Constituição e as leis; os demais tratados e convenções entram no sistema jurídico nacional com força de lei.


7. Normas jurídicas

Vistas as fontes de normas jurídicas, convém discorrer sobre as normas jurídicas. Se o Direito tem a função de contribuir para a paz, a harmonia e a ordem sociais, então tais finalidades devem ser atingidas de alguma maneira – por meio das normas jurídicas. Daí se afirmar que as normas jurídicas são instrumentos que dispõem sobre o comportamento dos membros de uma sociedade; são elas que determinam (ou ajudam a determinar) as condutas humanas. Diante disso é que se pode dizer que as normas jurídicas são normas de conduta porque regulamentam comportamentos humanos. Mas não apenas isso, além de regulamentarem condutas humanas, as normas jurídicas determinam a organização das instituições e dos institutos sociais. Nesse sentido, pode-se conceituar uma norma jurídica como o instrumento que serve à regulamentação de comportamentos, condutas humanas, e de organização da sociedade; fala-se, portanto, em normas de conduta, no primeiro caso, e em normas de estrutura, no segundo caso.

Pelo fato de servirem à regulamentação de comportamentos humanos, isto é, pelo fato de o seu sentido revelar a expressão de um valor, as normas jurídicas podem ser referidas como decorrentes de valores: “a norma jurídica nasce de uma decisão do homem entre múltiplas possibilidades, porque normas implica eleger baseando-se num juízo de valor[30]”. Consubstanciando os valores previamente considerados para a sua formação, as normas jurídicas prescrevem condutas de acordo com a finalidade do Direito. Dizer que uma norma jurídica prescreve é o mesmo que dizer que ela determina, ou seja, que ela “é imperativa como toda norma destinada a regular o agir do homem e a orientá-lo para suas finalidades. É imperativa porque impõe um dever, um determinado comportamento[31]”.

Mas a norma jurídica não é apenas imperativa, é, também, atributiva, no sentido de que atribui ao lesado pela violação da conduta prescrita na norma a faculdade de exigir do violador o cumprimento da norma ou a reparação pelo dano sofrido[32]. Alguns autores entendem que a norma não é essencialmente atributiva, e sim autorizativa, “porque o que compete a ela é autorizar ou não o uso dessa faculdade de reação do lesado[33]”. Assim, pode-se dizer que “a norma jurídica é imperativa porque prescreve as condutas devidas e os comportamentos proibidos e, por outro lado, é autorizante, uma vez que permite ao lesado pela sua violação exigir o seu cumprimento, a reparação do dano causado ou ainda a reposição das coisas ao estado anterior[34]”.

As normas jurídicas assim como as normas morais são imperativas, de maneira que o que distingue umas das outras é o caráter autorizante das normas jurídicas. Além disso, as normas jurídicas são bilaterais (por um lado, impõem um dever a uma pessoa; por outro lado, autorizando a exigência pelo lesado de seu cumprimento) e as demais normas, incluídas as morais, são unilaterais (só estabelecem o dever) – daí que “o cumprimento das obrigações morais deve ser voluntário; a obrigação jurídica pode ser satisfeita inclusive mediante o uso de medidas repressivas[35]”. Há que se considerar, também, que as normas jurídicas são heterônomas, ou seja, postas por terceiros e que, enquanto vigentes, obrigam e se impõem, ainda que contra a vontade dos obrigados, ou seja, por mais iníquas que sejam, devem ser respeitadas e obedecidas; ao contrário, as normas morais são autônomas, só obrigando se o próprio indivíduo as aceita como obrigatórias. Além disso, as normas jurídicas são gerais, porque regulamentam condutas de maneira universal, ou seja, sem se dirigir a um indivíduo ou a um grupo específico de pessoas, e abstratas, já que sua previsão não se encontra no mundo dos fatos (mundo ôntico), e sim no mundo das ideias, no mundo hipotético (mundo deôntico).

Portanto, as normas jurídicas enquanto instrumentos de regulamentação de condutas humanas e de estruturas sociais são imperativas, atributivas ou autorizantes, bilaterais, heterônomas, abstratas e gerais. Some-se a isso a coercibilidade, que não é propriamente uma característica das normas jurídicas, mas uma consequência provável para quando elas forem descumpridas, significando a possibilidade de que uma norma seja cumprida mediante o uso de medidas coercíveis (repressivas), seja a violência física ou psicológica, desde que legítimas. Vertendo-se isso em conceito, pode-se dizer que normas jurídicas são instrumentos impositivos, gerais e abstratos, estabelecidos pelo Estado, e que se orientam para uma determinada finalidade, determinam comportamentos ou prescrevem uma organização, atribuindo ou autorizando as pessoas a exigirem seu cumprimento, inclusive mediante o uso de medidas coercitivas.

As normas jurídicas podem ser classificadas de variadas formas, aqui estão as que se reputam, aqui, mais úteis para o Curso de Direito:

1) Quanto à imperatividade: a) cogentes, impositivas ou de ordem pública, revelam imperatividade absoluta, ordenando ou proibindo algo de maneira absoluta, ou seja, sem que o particular possa intervir, a fim de que não sejam trazidos prejuízos à sociedade – são normas que tutelam interesses fundamentais, o bem comum; b) dispositivas ou de ordem privada, revelam imperatividade relativa, podendo ser permissivas (quando consentem abstenções ou ações) ou ser supletivas (quando suprem a falta de manifestação das partes).

2) Quando ao autorizamento: a) mais que perfeitas, quando violadas ensejam nulidade do ato com restabelecimento ou não da situação anterior (statu quo ante) e aplicação de pena; b) perfeitas, quando violadas ensejam a nulidade ou a anulação do ato; c) menos que perfeitas, quando violadas determinam a aplicação de pena; d) imperfeitas, quando violadas não proporcionam qualquer consequência jurídica.

3) Quanto à hierarquia: a) internacionais; b) supraconstitucionais; c) constitucionais; d) supralegais; e) legais; f) infralegais; g) individuais.

4) Quanto à natureza das disposições: a) substantivas ou materiais, quando criam direitos e impõem deveres; b) adjetivas ou processuais, quando regulam a maneira como efetivar as relações jurídicas ou fazer valer direitos e deveres.

5) Quanto à aplicação: a) normas de eficácia absoluta, quando não podem ser alteradas senão por uma nova ordem constitucional – são as cláusulas pétreas; b) normas de eficácia plena, quando suficientes para regulamentar as relações jurídicas; c) normas de eficácia restringível ou contida, quando têm aplicabilidade imediata, mas sua eficácia pode ser reduzida por lei; d) normas de eficácia relativa complementável ou de eficácia limitada, quando dependem, para produzir efeitos, de norma posterior que lhe dê eficácia.

6) Quanto ao poder de autonomia legislativa: a) nacionais, quando criadas pela União, sendo válidas para toda a nação; b) federais, quando criadas pela União, sendo válidas em todo o território federal; c) estaduais, quando criadas pelos Estados, sendo válidas em todo o território do respectivo Estado; d) municipais, quando criadas pelos Municípios, sendo válidas em todo o território do respectivo Município.

7) Quanto à sistematização: a) esparsas ou extravagantes, quando regulamentam uma determinada matéria de maneira isolada; b) codificadas, quando regulamentam uma determinada matéria, organizando-se em um corpo orgânico; c) consolidadas, quando, sendo sobre um determinado assunto, encontram-se reunidas várias leis esparsas.

As normas jurídicas têm três planos de validade. O primeiro é o plano formal (ou jurídico), do que se extrai a vigência da norma jurídica, ou seja, que tenha sido criada pelo poder competente e com a obediência dos procedimentos legais. O segundo é o plano social, que é também referido como de validade fática ou, ainda, de eficácia, do que se extrai se a norma pode ser aplicada pela autoridade (contém os elementos normativos que permitem sua atuação concreta) e é obedecida pelos seus destinatários (produz efeitos por estar adequada à realidade). O terceiro é o plano ético, pelo que a norma jurídica consiste na realização de valores socialmente exigíveis, embora, em si, ela não valore fatos.

Vistas essas questões preliminares (conceito, características, classificações e planos de validade) sobre as normas jurídicas, cumpre discorrer sobre a sua estrutura lógica. O entendimento acerca da estrutura lógica das normas jurídicas é fundamental para que se possa entender como o Direito se comporta.

Foi dito que as normas jurídicas regulamentam os comportamentos humanos e a organização das instituições. Todavia, as normas jurídicas não são pré-fabricadas, nem se encontram determinadas no ordenamento jurídico. Assim, as fontes formais jurídicas não introduzem, necessariamente, normas jurídicas num determinado ordenamento, e sim enunciados prescritivos (normativos), sobre os quais incidirá a linguagem especializada, transformando-os em normas jurídicas. Portanto, há que se ter em mente isso: enunciados prescritivos são introduzidos num ordenamento jurídico mediante um veículo introdutor específico (fontes formais), de maneira que o operador do Direito, isto é, o especialista em Direito, irá ler e interpretar esse enunciado prescritivo, relacionando-o com outros, presentes no mesmo ordenamento jurídico, extraindo daí normas jurídicas.

A importância da estrutura lógica das normas jurídicas está exatamente no modo de entender como elas são compostas, sobre o que elas se aplicam e o que elas podem gerar. Assim, simplificadamente, uma norma jurídica é formada por uma hipótese (um fato ou ato jurídico abstratamente previsto em enunciados prescritivos) que se ocorrer no mundo concreto e for observada por um agente competente irá incidir sobre o fato ou o ato concreto, que será subsumido àquela hipótese, gerando, assim, uma consequência jurídica – que será a formação de uma obrigação jurídica intersubjetiva. Essa obrigação jurídica relaciona dois sujeitos, um ativo (dono de um direito subjetivo) e um passivo (dono de um dever jurídico), ligados por um mesmo objeto (bem da vida) que é devido por um ao outro mediante uma prestação (dar, pagar, fazer ou não fazer). Se for descumprida essa prestação, poderá ser aplicada uma sanção, responsabilizando-se o sujeito inadimplente.

Como se observará nas próximas seções, a partir daqui se estudam tanto a aplicação quanto a interpretação das normas jurídicas. Assim, na próxima seção, será estudado o ordenamento jurídico, ou seja, a dinâmica das normas jurídicas, o que se pode chamar de nomodinâmica, distinguindo os elementos constituintes desse ordenamento (normas, regras e princípios), compreendendo a importância da estrutura escalonada (o que se convencionou denominar de pirâmide normativa) e identificando as características do ordenamento jurídico (unidade, coerência e completude). O estudo dessas questões tem como objetivo abrir o caminho para se entender os métodos e espécies de interpretação, as formas de integração do ordenamento e a solução de antinomias entre normas, bem como para introduzir conceitos relacionados com a obrigatoriedade, a vigência e a extinção das normas, e com o que diz respeito ao seu cumprimento.


8. Introdução ao ordenamento jurídico

As normas jurídicas não existem isoladamente, elas fazem parte de um conjunto: o ordenamento jurídico. O estudo singular e isolado das normas jurídicas denomina-se nomostática, enquanto o estudo de suas relações entre si, enquanto pertencentes a um ordenamento jurídico, é chamado de nomodinâmica. A partir do estudo do conjunto de normas jurídicas, isto é, do ordenamento jurídico, extrai-se que este é complexo, não só porque composto por várias normas jurídicas, mas também porque a relação entre elas não se dá de maneira linear. Em virtude dessa complexidade é que surgem problemas sobre o comportamento de um ordenamento jurídico, isto é, sobre a sua dinâmica. Eis aí a relevância de se estudar a nomodinâmica, em primeiro lugar, como se faz neste tópico, a partir do entendimento de alguns conceitos básicos, em segundo lugar, como se faz nos tópicos subsequentes, a partir do aprofundamento desses conceitos e das questões a eles atinentes.

O primeiro conceito básico que deve ser apreendido é o de unidade do ordenamento jurídico, pelo que, apesar de as normas jurídicas emanarem de fontes variadas, todas elas se reportam, no fim das contas, a uma única norma ou regra fundamental que identifica o ordenamento jurídico e “que orienta e dirige a interpretação e aplicação das normas singulares que o integram[36]”. É a unidade que determina a validade, isto é, a pertinência da norma ao ordenamento, além de estabelecer, também, uma necessária hierarquia normativa. Pode-se dizer que, pela unidade, o ordenamento jurídico é um conjunto de normas jurídicas de diferentes níveis hierárquicos que formariam uma pirâmide, ou melhor, uma estrutura escalonada.

Ao discorrer sobre a nomodinâmica, Kelsen[37] trata sobre o que ele chama de norma hipotética fundamental, a qual seria o fundamento de validade de toda e qualquer ordem normativa. Com ela, o autor estabeleceu um ponto além do qual o que se estuda não são as normas jurídicas e suas relações, mas algo distinto; e também, ao mesmo tempo, um ponto que fundamenta a validade das normas jurídicas, evitando regressões infinitas na busca pelo fundamento de validade das normas jurídicas de um ordenamento. Pode-se, assim, definir a norma hipotética fundamental como a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico; por conta dela é que se pode afirmar que o ordenamento jurídico é um sistema, isto é, uma totalidade ordenada.

A funcionalidade, portanto, de uma norma hipotética fundamental é estabelecer a nota da unidade de um ordenamento jurídico, pois, como escreve Joseph Raz, o ordenamento jurídico não é um conjunto de normas escolhidas ao acaso[38]. É importante observar que a norma hipotética fundamental não é jurídica, mas lógica, estabelecendo, abaixo de si, uma estrutura escalonada, que os autores costumam chamar de pirâmide normativa. Dela decorrem dois axiomas: o primeiro é o de que sempre haverá uma norma determinante (superior) e uma norma determinada (inferior), pertencendo, ambas, a um mesmo sistema jurídico[39]; o segundo é de que todas as normas dum ordenamento jurídico são autorizadas (determinadas) direta ou indiretamente por outra[40]. Esses dois axiomas resumem bem o modo pelo qual se relacionam as normas que compõem um ordenamento jurídico.

Considerando-se a pirâmide normativa, tem-se, em ordem decrescente a seguinte ordem de normas: no primeiro escalão, as normas constitucionais; no segundo, as normas legais; no terceiro escalão, as normas infralegais. Com base nisso, tem-se que as normas constitucionais determinam ou autorizam as normas legais e estas as normas infralegais. Noutras palavras, as normas infralegais buscam seu fundamento de validade nas normas legais, diretamente, e nas normas constitucionais, indiretamente; as normas legais buscam seu fundamento de validade nas normas constitucionais. E as normas constitucionais, em que normas elas buscam seu fundamento de validade? A resposta é: na norma hipotética fundamental. Ou seja, enquanto a norma hipotética fundamental é o fundamento lógico de validade de todo o ordenamento jurídico, as normas constitucionais são o fundamento jurídico desse ordenamento. Entender isso é essencial para que se possa compreender uma série de relacionamentos normativos durante o Curso de Direito.

Diretamente ligada a essa questão está o segundo conceito básico, o de coerência do ordenamento jurídico, que significa a compatibilidade entre as normas pertencentes a um mesmo sistema. De acordo com Antonio Enrique Pérez Luño, a coerência é “a tendência de todo ordenamento jurídico a conformar-se como um todo ordenado: um conjunto de elementos entre os quais se dá uma ordem sistematizada[41]”. Isso significa que é preciso que as normas jurídicas que fazem parte de um sistema não conflitem entre si, não sejam incompatíveis. Se houver incompatibilidade normativa, o resultado será a existência de antinomias, as quais deverão ser resolvidas, a partir do uso de determinados critérios e procedimentos, a fim de se manter a integridade, a unidade e a coerência do ordenamento jurídico.

Por fim, o terceiro conceito básico é o de completude ou da plenitude do ordenamento jurídico, o que significa que o sistema é completo, ou seja, a falta de normas jurídicas que regulamentem determinadas condutas, isto é, que a existência de omissões ou de lacunas é apenas algo aparente, já que o próprio ordenamento estabelece regras para resolver os casos omissos ou lacunosos, mediante procedimentos e técnicas de integração.

Esses três conceitos (unidade, coerência e completude), ao lado de outros que com eles têm alguma relação, serão mais bem discutidos na sequência, quando se passa a estudar os arts. 1º a 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Os tópicos a seguir são organizados de acordo com a matéria constante dos artigos da LINDB. Em primeiro lugar, discorre-se sobre a obrigatoriedade das leis (arts. 1º e 3º da LINDB). Em segundo lugar, discorre-se sobre a revogação e a modificação das leis, as possíveis antinomias que podem daí advir, abordando os critérios para solucioná-las, e a questão sobre direito intertemporal (arts. 2º e 6º da LINDB). Em terceiro lugar, discorre-se sobre a interpretação das leis e sobre o problema das lacunas e os mecanismos de sua integração (arts. 4º e 5º da LINDB).


9. Obrigatoriedade

Antes de adentrar no estudo do que vem disposto na Lei de Introdução (LINDB), é preciso que se entenda a sua natureza dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de um conjunto de normas jurídicas sobre como as normas jurídicas se comportam, isto é, cuida-se de um código de normas que “descreve as linhas básicas da ordem jurídica, exercendo a função de lei geral, por orientar a obrigatoriedade, a interpretação, a integração e a vigência da lei no tempo e por traçar as diretrizes das relações de direito internacional privado[42]”. Assim, a Lei de Introdução é composta por duas partes, uma que vai do art. 1º ao 6º sobre a vigência e a aplicabilidade das normas jurídicas; outra que vai do art. 7º a 17 sobre Direito internacional privado. Sob a epígrafe de obrigatoriedade das normas jurídicas tem-se a análise de dois dispositivos da Lei de Introdução: arts. 1º e 3º.

É preciso fazer uma ponderação prévia, no entanto. É que os autores e os legisladores se utilizam de nomenclaturas sem muita técnica, o que pode prejudicar o aprendizado, já que pode conduzir a confusões. Assim, cabe tomar algumas pequenas notas. No início do Curso falou-se em fontes formais estatais do Direito, da qual a principal é a legislação, resultado de um processo legislativo. Falou-se que a legislação pode ser primária (quando tem aptidão para estabelecer direitos e criar deveres) e secundária (quando não tem tal aptidão, servindo apenas para dar executoriedade à legislação primária). Dentro dessa legislação primária, destacaram-se, em conformidade com o art. 59 da Constituição de 1988, quais as espécies: Constituição, Emenda à Constituição, Lei Complementar, Lei Ordinária, Lei Delegada, Medida Provisória, Decreto Legislativo e Resolução do Senado. Essas espécies de legislação primária são, no entanto, referidas normalmente como leis – devendo-se levar em consideração que essa referência diz respeito a leis em sentido amplo.

Tecnicamente, o que se tem é que cada espécie de legislação primária consiste num veículo introdutor de normas no ordenamento jurídico diferente. Ou, ainda, de maneira mais específica, cada espécie é um veículo introdutor de enunciados prescritivos dos quais é possível extrair normas jurídicas. Então, o que se tem é que aquilo que na prática se denomina de leis é, dentro de uma técnica mais apurada, veículo introdutor. Fala-se em leis, portanto, num sentido genérico, o que não é equivocado, embora não seja exato. Faz-se essa observação porque quando o legislador se refere à lei ele poderá estar se referindo a: 1) quaisquer daquelas espécies normativas denominadas legislação primária (leis em sentido amplo); 2) leis em sentido próprio ou estrito; 3) enunciados prescritivos (normalmente confundidos com normas jurídicas).

O art. 1º, caput, da LINDB, dispõe que não existindo previsão em sentido contrário, a lei terá vigência em todo o território brasileiro 45 dias depois de oficialmente publicada. A referência, nesse caso, é à lei em sentido amplo. Para entender esse dispositivo cumpre recordar que o processo legislativo, isto é, o processo de criação de leis em sentido amplo (lato sensu), tem, em regra, o seguinte trâmite: 1) iniciativa, quando alguém que tenha competência propõe um projeto de lei; 2) discussão, quando o corpo legislativo discute e propõe emendas ao projeto; 3) deliberação ou votação, quando o corpo legislativo aprova ou rejeita o projeto; 4) sanção ou veto, quando o chefe do Executivo aprecia o projeto, concordando com ele (sanção) ou fazendo-o retornar ao corpo legislativo para uma nova deliberação (veto); 5) promulgação, quando o Executivo autentica a lei, tornando-a existente; 6) publicação, quando a lei publicada no Diário Oficial passa a ser conhecida pela comunidade e por seus destinatários.

Observando-se esse processo legislativo, tem-se que a lei só deixa de ser um projeto quando se dá sua promulgação: existência depende do preenchimento das formalidades necessárias, isto é, ter o projeto de lei sido proposto pelo órgão competente e tramitado corretamente. Assim, atestada, ainda que equivocadamente, que o projeto foi proposto por quem tinha competência e que o trâmite do projeto foi o correto, tem-se a existência da lei, o que confirmará sua executoriedade, dada, anteriormente, pela sanção. Todavia, para que possa ser aplicada e possa produzir seus efeitos, a lei deve ser obrigatória, e a obrigatoriedade depende da publicação oficial da lei. Mas não só, para que possa obrigar seus destinatários não é suficiente apenas que tenha ocorrido sua publicação, é preciso ainda que a lei esteja em vigor, ou seja, que a lei possua vigência.

Portanto, o que se tem é que antes mesmo de ser publicada, uma lei já é executável e existente. No entanto, ainda que exista e que se possa cobrar sua produção de efeitos, só isso não basta. É preciso, também, que se tenha dado conhecimento aos destinatários da lei, o que ocorre mediante sua publicação em veículo oficial, tornada pública, isto é, dada a devida publicidade da lei, pode-se falar que ela é obrigatória. Mas, mesmo assim, para que possa produzir seus efeitos ela precisa estar vigente. Assim, é necessário que se diga o que significa vigência: trata-se da aptidão de uma lei para produzir seus efeitos. Daí que quando a lei está apta a produzir efeitos, diz-se que ela está em vigor.

A norma que se pode extrair do caput do art. 1º da LINDB determina: se a lei tiver sido oficialmente publicada para vigência no território brasileiro e não houver previsão em sentido contrário sobre sua vacância, então deverá ter vigência em todo o território brasileiro depois de decorridos 45 dias. Assim, publicada a lei no Diário Oficial e sendo uma lei brasileira para viger em território brasileiro, deve-se aguardar 45 dias a partir da publicação para que essa lei tenha aptidão para produzir seus efeitos e possa ser invocada como obrigatória. A esse prazo de 45 dias em que a lei fica em estado de espera denomina-se vacatio legis, que significa: vacância da lei – o que equivale a dizer que a lei existe, mas está “vaga”, já que não é obrigatória, não podendo vincular a conduta de seus destinatários. Daí que a vacância consista na inaptidão para produzir efeitos.

É preciso observar, por fim, duas cláusulas exceptivas contidas na norma jurídica que foi acima enunciada. A primeira se refere à cláusula “se não houver previsão em sentido contrário”, isto é, não tendo o legislador, no texto da nova lei, explicitado em quanto tempo a partir da publicação oficial essa lei entrará em vigor, o prazo será de 45 dias, os quais serão contados computando-se o dia do início (dies a quo) e o dia do fim (dies ad quem), passando a lei a ter vigência no dia seguinte. Assim, a regra geral é o silêncio e, com o silêncio, serão computados 45 dias. Mas e se o termo, isto é, o último dia do prazo cair em feriado ou em domingo, tem-se que “não se considerará prorrogado o prazo até o dia útil seguinte por não se tratar de cumprimento de obrigação, mas de início de vigência da lei, que deve ser obedecida mesmo nos domingos e feriados[43]”.

Havendo previsão na lei nova de prazo ou não havendo (hipótese em que a lei entra em vigor na data de sua publicação), valerá o que vier expresso na lei. Portanto, a regra é que haja vacatio legis, mas o legislador autoriza que o próprio legislador estabeleça de maneira distinta.

A segunda cláusula diz respeito a “território brasileiro”, ou seja, se a lei tiver sido produzida para viger dentro do território brasileiro, valerá o disposto no caput do art. 1º da LINDB. Tendo sido produzida para viger em país estrangeiro, o prazo de vacância, que não admite exceção, é de três meses depois da publicação oficial. A norma jurídica, neste caso, é assim trabalhada: se a lei tiver sido oficialmente publicada e se destinada à vigência em país estrangeiro, então deverá ter vigência no estrangeiro, depois de decorridos três meses. É preciso ter atenção, pois o legislador estabeleceu um prazo de três meses, que é diferente de um prazo de 90 dias.

Por fim, o art. 1º da LINDB, em seus §§3º e 4º, dispõe que se o texto da lei vier a ser republicado em virtude de correção, se o prazo de vacância não tiver terminado, será recontado, se tiver findado, as correções serão consideradas lei nova. Tem-se, portanto, a confirmação de que durante a vacatio legis a lei não é obrigatória, ou seja, não vincula o comportamento de seus destinatários, de maneira que a lei anterior ainda continua em vigor, e, assim, válida. Identificada alguma incorreção em seu texto, se ainda estiver em curso a vacatio legis a correção será feita no bojo da própria lei, que, modificada, contará com um novo prazo de vacância, republicando-se a lei; do contrário, se não houve vacatio legis ou se o prazo desta já se extinguiu, o texto corrigido será considerado como nova lei, publicando-se nova lei.

Vistas as normas jurídicas que se extraem dos enunciados prescritivos contidos no art. 1º, caput e §§1º, 3º e 4º, da LINDB, passa-se ao exame do art. 3º do mesmo diploma. De acordo com este dispositivo, tem-se que, depois de publicada oficialmente a lei, não se pode, alegando desconhecimento, descumprir a lei. Nisso se tem nova norma jurídica, que pode ser assim enunciada: se tiver sido publicada oficialmente, então a lei deverá ser cumprida, não se podendo alegar, para o seu descumprimento, seu desconhecimento.

Com essa norma jurídica firma-se a necessidade da publicação para tornar uma lei obrigatória, e isso tem uma razão de ser: “como as leis limitam as atividades humanas, elas precisam ser conhecidas por seus destinatários, para que saibam o que é permitido ou obrigado, aplicando-as com segurança[44]”. Assim, publicada oficialmente determinada lei, o seu destinatário não poderá descumpri-la, alegando desconhecê-la. Assim, estando uma lei em plena vigência, não poderá seu destinatário, desde que ela tenha sido devidamente publicada, alegar que não sabia que ela estava vigendo, ou, ainda, alegar que não sabia que a lei anterior não estava mais vigendo.

Diante disso há que se cuidar da questão relativa à revogação das leis, regulamentada no art. 2º da LINDB.


10. Revogação e Direito intertemporal

Trata-se de tema que diz respeito à vigência das leis no tempo, de maneira que se pode assim formular uma regra geral: uma lei vige até que outra lei a modifique ou revogue. A exceção fica por conta de leis de vigência temporária. Disso decorre que as leis poderão ter vigência temporária, se pré-fixarem o tempo de sua duração ou a ocorrência de uma determinada condição fática, ou ter vigência permanente, se não houver pré-fixação do tempo de sua duração nem de condição fática.

Assim, normalmente, as leis que são modificadas e revogadas são as que possuem vigência permanente. Por modificação há que se entender que as leis são alteradas, tanto podendo ser melhoradas quanto pioradas, seja integralmente, seja parcialmente, o que é mais comum. Por revogação há que se entender que as leis são extintas, perdendo sua vigência, não estando mais aptas a produzirem efeitos, e, por isso, não se podendo mais falar que são obrigatórias. A revogação pode ser total, quando receberá o nome de ab-rogação, ou ser parcial, quando receberá o nome de derrogação. Ademais, pode-se classificar a revogação em expressa, quando a lei revogadora declarar que a lei anterior está extinta, parcial ou integralmente, e em tácita, quando a lei revogadora não trouxer tal declaração, mas ficar clara a incompatibilidade entre a lei nova e a lei antiga ou a lei nova regulamentar toda a matéria objeto da lei antiga (art. 2º, §1º, LINDB).

Ainda de acordo com o art. 2º, da LINDB, porém trazendo-se o seu §3º, é possível o caso de a lei revogadora (lei posterior ou lei nova) perder sua vigência, caso em que, regra geral, a lei revogada (lei anterior ou lei antiga) não terá sua vigência restaurada. As exceções ficam por conta de previsões legais e, por isso, expressas. Um importante caso em que a lei revogada recupera sua vigência pela perda de vigência da lei revogadora é o de lei declarada inconstitucional pelo STF. Esse efeito de recuperação de vigência tem o nome de repristinação. Explica-se a regra da ausência de efeitos repristinatórios pelo fato de a revogação operar, em regra, efeitos ex nunc, ou seja, a partir do momento em que entra em vigor a lei revogadora; efeitos ex tunc, vale dizer, retroativos, são considerados excepcionais, já que vão ao âmago da lei, retirando-a do sistema, pois nunca deveria ter existido.

Além disso, pode ser que a lei nova não revogue nem modifique a lei anterior. Isso se dará quando a lei nova estabelecer disposições gerais ou especiais diferentes das que já existam. Ou seja, pelo que se extrai do §2º do art. 2º da LINDB, quando a lei posterior regulamentar nova conduta ou estabelecer nova competência, a lei anterior permanecerá vigente (não revogada) e inalterada (não modificada).

É nesse carrossel de modificação, ab-rogação ou derrogação que podem surgir o que se denomina antinomia. As antinomias surgem porque é impossível ao legislador, diante da complexidade de um ordenamento jurídico, conhecer todas as normas que dele fazem parte. Pode-se afirmar, assim, que quanto mais complexo um ordenamento jurídico maior a chance de haver incoerências internas, ou seja, antinomias. São basicamente dois os tipos: a) as antinomias aparentes, solucionáveis a partir do uso dos critérios criados para a solução dessas incoerências; b) as antinomias reais, quando os critérios existentes não resolvem a inconsistência interna do ordenamento jurídico, de maneira que o magistrado deverá estabelecer qual a lei ou a norma jurídica que deverá produzir efeitos no e quais os efeitos e sua extensão para caso concreto – fala-se, assim, em criação de norma concreta e individual, mas também é possível a criação de um precedente, que consiste em uma norma abstrata e geral.

Os critérios tradicionais para a solução de antinomias são três: a) critério hierárquico, pelo qual a lei superior prevalece sobre a lei inferior (lex superior derogat legi inferiori) – o conhecimento da estrutura escalonada do ordenamento jurídico é fundamental para que se aplique esse critério; b) critério cronológico, pelo qual a lei posterior prevalece sobre a lei anterior (lex posterior derogat legi priori) – ou seja, entre normas pertencentes ao mesmo patamar hierárquico, a mais nova prevalecerá; c) critério de especialidade, pelo qual a lei especial prevalece sobre a lei geral (lex specialis derogat legi generali) – a lei que possuir, além dos elementos gerais, elementos específicos ou especializantes, é a que deverá prevalecer.

Há situações, no entanto, nas quais esses critérios não são suficientes para resolver as antinomias que se colocam. Fala-se, assim, em antinomias de segundo grau, isto é, casos em que os próprios critérios entram em conflito. Assim, pode haver antinomia entre: a) o critério hierárquico e o critério cronológico, quando uma norma superior for anterior a uma norma inferior mais nova – nesse caso, tem precedência o critério hierárquico, no que a norma superior anterior prevalece em relação à norma inferior posterior; b) o critério de especialidade e o critério cronológico, quando uma norma geral for posterior a uma norma anterior especial – neste caso não há regra definida, o magistrado deve decidir conforme o caso concreto; c) o critério hierárquico e o critério de especialidade, quando uma norma especial for inferior a uma norma geral superior – aqui também não há uma regra definida, o magistrado deve decidir conforme o caso concreto. Verifica-se, portanto, que pode acontecer de não haver critérios disponíveis para resolver-se um caso de antinomia real, de todo modo, “num caso extremo de falta de um critério que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo seria o princípio supremo da justiça: entre duas normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa. Isso é assim porque os referidos critérios não são axiomas, visto que gravitam na interpretação ao lado de considerações valorativas, fazendo co quem a lei seja aplicada de acordo com a consciência jurídica popular e com os objetivos sociais[45]”. Assim, o critério da justiça poderá ser aplicado, excepcionalmente, para solver um problema de antinomia.

Diante disso, diz-se que quando uma antinomia é superada a partir da aplicação dos critérios existentes, o caso era de antinomia aparente; do contrário, quando a antinomia não se resolve com a aplicação de tais critérios, diz-se que se trata de antinomia real. Há quem distinga entre antinomias solúveis e antinomias insolúveis[46]; no entanto, inexistem antinomias insolúveis. E isso se deve ao fato de que, logicamente, sendo solúvel uma determinada antinomia, não se trata efetivamente de antinomia, daí utilizar-se a expressão antinomia aparente. De outro ponto, as antinomias reais são chamadas insolúveis porque não podem ser solucionadas a partir dos critérios tradicionais, ou seja, elas são apenas aparentemente insolúveis, já que é preciso buscar outros critérios para resolvê-las.

Um desses critérios seria a justiça, segundo Maria Helena Diniz[47], o que equivale a dizer que, na impossibilidade de se aplicar qualquer um dos critérios tradicionais, “a solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos quase falar de um autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma só regra[48]”. Diante disso, o intérprete (normalmente o magistrado) tem diante de si três alternativas: a) eliminar uma das normas ou leis antinômicas; b) eliminar ambas; c) conservar ambas. Ou seja, as antinomias reais são solúveis, mas a solubilidade depende de outros critérios que não os tradicionalmente apontados. O resultado, igual para o caso de antinomia aparente, é a coerência do ordenamento jurídico. Assim, ainda que duas normas jurídicas coexistam incompatíveis num determinado sistema, sendo ambas válidas, o intérprete deverá tornar uma delas eficaz para todos (eficácia erga omnes), de maneira que a outra será ineficaz, ou tornar uma delas eficaz para as partes (eficácia inter partes), de maneira que para os demais casos concretos apresentados poderão ser dadas soluções parcial ou integralmente diferentes.

Para além dos critérios tradicionais, tem-se falado, modernamente, na possibilidade de ponderação ou balanceamento, que é uma “técnica de decisão jurídica empregada para solucionar conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais[49]”. A técnica da ponderação leva a um caminho distinto das técnicas tradicionais para solução de antinomias, quer dizer: a ponderação é uma alternativa à subsunção[50], ou seja, o emprego da ponderação “deve ser reservado apenas para as hipóteses de insuficiência da subsunção, que continua a ser a forma ordinária de aplicação dos enunciados normativos[51]”. Daí que a ponderação seja aplicada se não for possível resolver a antinomia a partir das técnicas tradicionais.

É que dada à presença cada vez maior de cargas axiológica, principiológica e política nos ordenamentos jurídicos, não se tem conseguido aplicar os critérios tradicionais que se inscrevem tão-só, normalmente, aos conflitos estritamente jurídicos. A ponderação não é exatamente uma alternativa à subsunção, e sim uma técnica para que se resolva sobre as colisões entre valores que qualificam o ordenamento jurídico ou entre princípios que dele fazem parte; do que a subsunção aplica-se aos conflitos entre regras. E essa distinção entre as técnicas aplicáveis tem uma razão de ser. Princípios e regras são normas[52] que se diferenciam quanto ao uso que lhes é dado conforme o caso concreto[53]. Utilizando-se uma distinção bastante utilizada pela jurisprudência brasileira e, também, de certa forma, pela doutrina, pode-se dizer que princípios são os comandos nucleares do ordenamento jurídico (Celso Antônio Bandeira de Mello), determinando que algo seja concretizado da melhor maneira possível, isto é, são comandos de otimização (Robert Alexy) que revelam padrões de comportamento (Ronald Dworkin) requeridos pelo sistema considerado; ao passo que regras são normas que devem ser seguidas ou não, comportando-se à maneira do tudo-ou-nada (Robert Alexy e Ronald Dworkin), ou seja, ou são vigentes porque válidas ou não são vigentes porque inválidas. Dessa maneira, quando princípios entram em colisão, um deles prevalece para o caso concreto, mas sem determinar a retirada do outro do ordenamento jurídico – ou seja, é feita uma ponderação ou um balanceamento para o caso concreto; enquanto que quando regras entram em conflito, uma delas deverá ser retirada do ordenamento jurídico ou não mais aplicada àquele caso concreto – isto é, determina-se que o fato analisado só possa se subsumir àquela regra que foi considerada prevalecente.

Dentro da questão sobre as antinomias insere-se o disposto no art. 6º da LINDB. O referido dispositivo também cuida da eficácia das normas no tempo. Trata-se do Direito intertemporal, o qual “soluciona o conflito das leis no tempo, apontando critérios para aquelas questões, disciplinando fatos em transição temporal, passando da égide de uma lei a outra, ou que se desenvolvem entre normas temporalmente diversas[54]”. Assim, com a entrada de uma lei (em sentido amplo) em vigor, suas disposições terão efeito imediato e geral, desde que respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (art. 6º, caput, LINDB).

O que se pode extrair é que o Direito intertemporal regulamenta as relações jurídicas que já haviam sido definidas pelas leis anteriores, ora revogadas. Três são os casos em que as disposições da nova lei não terão efeito imediato e geral, quando houver: (a) ato jurídico perfeito, consistente naquele ato jurídico já consumado segundo a lei vigente à época em que se consumou, ou seja, aquele direito que já tem aptidão para produzir seus efeitos (art. 6º, §1º, LINDB); (b) direito adquirido, consistente naquele direito que já se incorporou, definitivamente, ao patrimônio ou à personalidade de seu respectivo titular, não podendo lei ou fato posterior alterar essa situação juridicamente relevante (art. 6º, §2º, LINDB); (c) coisa julgada, consistente no efeito decorrente da decisão judicial contra a qual não caibam recursos.

O art. 6º da LINDB tem a ver, portanto, com a irretroatividade da lei nova sobre as situações já consolidadas na vigência da lei anterior. Maria Helena Diniz lista, com base na doutrina e na jurisprudência, alguns critérios norteadores de sua aplicação[55]: a regra é pela irretroatividade das leis novas, desde que não ofendam ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada, caso contrário, haverá inconstitucionalidade; o legislador e o órgão judicante estão sujeitos à irretroatividade; as leis interpretativas podem retroagir; os direitos adquiridos não prevalecem sobre normas de ordem pública, as quais, por isso, são retroativas, desde que não haja um desequilíbrio jurídico-social; contra a Constituição Federal não há direito adquirido; as leis processuais se comportam de acordo com o princípio tempus regit actum, aplicando-se a lei nova aos processos em curso; as leis penais retroagem, desde que benéficas ao acusado ou ao condenado.


11. Interpretação e integração

O nexo entre unidade, coerência e plenitude do ordenamento jurídico transparece com maior ênfase quando se trata sobre a interpretação do ordenamento jurídico e sobre a sua integração. Acomodando-se as técnicas existentes aos tipos de normas, já que não há uma relação de exclusão entre elas, mas de complementaridade, uma vez que o ordenamento jurídico é complexo, pode-se afirmar que a construção de uma norma jurídica a partir de enunciados prescritivos contidos em veículos introdutores determina sua aplicação a um caso concreto por meio de um procedimento complexo que envolve tanto a ponderação quanto a subsunção, resultando na concretização e na individualização de uma norma jurídica. Esse procedimento decorre, sempre, da atividade interpretativa.

É dizer, no momento “da aplicação que aparece o homem, atuando por meio dos órgãos singulares ou coletivos, na sua integralidade psicofísica, com seus valores éticos, com seus ideais políticos, sociais, religiosos, fazendo a seleção entre as interpretações possíveis, estimando-as axiologicamente, para eleger uma entre outras, expedindo então a nova regra jurídica. É por isso que se diz, com acerto, que a escolha que o aplicador faz, entre as várias possibilidades interpretativas, é um ato de decisão política[56]”. Diante disso, há que se destacar que toda norma jurídica, por mais clara que ela possa ser, está sujeita à interpretação.

Diz-se, então, que interpretar é pesquisar o significado, é descobrir o sentido, é propor o alcance da norma jurídica extraída a partir do ordenamento jurídico. E como o significado das palavras e das expressões muda porque a sociedade é dinâmica, também a interpretação ou, no plural, as interpretações tendem a ser distintas. Daí Luís Roberto Barroso afirmar que “toda interpretação é produto de uma época, de uma conjuntura que abrange os fatos, as circunstâncias do intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada um[57]”. E isso porque as interpretações têm como finalidade a aplicação da norma jurídica às relações sociais intersubjetivas, estendendo-as, se for o caso, a novas relações que o legislador, por uma limitação que lhe é natural, não foi capaz de prever, além de promover uma conciliação entre o alcance do preceito normativo e as necessidades reais e atuais da sociedade[58]. Portanto, interpretar as normas jurídicas significa tratar o Direito de uma perspectiva dinâmica, entendendo o ordenamento jurídico, o qual se direciona ao atendimento de fins sociais e de valores caros à sociedade[59], como, aliás, dispõe o art. 5º da LINDB.

No entanto, o legislador não tem como prever todos os casos concretos possíveis; e, assim, o ordenamento jurídico acaba por apresentar lacunas, isto é, comportamentos em relação aos quais não há uma regulamentação jurídica, em princípio. Assim, a existência de lacunas não quer dizer que as normas sejam omissas, e sim que em determinado ponto o sistema é omisso. Para o preenchimento (colmatação) de lacunas, lança-se mão da integração. Na verdade, o que há é uma integração de normas, de maneira que as lacunas permanecem, salvo se a integração tiver efeitos gerais. É por isso que se pode afirmar, junto com Maria Helena Diniz, que a interpretação é uma necessidade resultante “do fato de a norma geral a aplicar deixar várias possibilidades em aberto, não contendo nenhuma decisão sobre a questão de se saber qual dos interesses em jogo é o mais importante, deixando esta decisão a um ato de produção normativa, ou seja, à sentença judicial[60]”, por exemplo.

Para orientar a tarefa do intérprete e também a do aplicador do Direito, existem várias técnicas e procedimentos interpretativos estabelecidos pela hermenêutica jurídica. De acordo com Luís Roberto Barroso, “a hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito. A interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato[61]”. Portanto, a hermenêutica jurídica é a ciência da interpretação jurídica, a qual, por sua vez, consiste na atividade que permitirá a aplicação do Direito, concretizando os seus preceitos, isto é, as suas regras e os seus princípios. E essa atividade pode ocorrer de variadas formas, ou seja, há várias espécies de interpretação, ou melhor, de técnicas de interpretação.

Nesse passo, pode-se dizer que o procedimento interpretativo inicia-se com a simples leitura dos enunciados prescritivos, identificando as palavras e as classes de palavras que se encontram contidas nesses grafemas; trata-se da interpretação gramatical ou literal, que depende do conhecimento do vernáculo, bem como dos termos e institutos jurídicos. Pode-se dizer que a interpretação gramatical está sempre presente e que é a primeira técnica da qual se faz uso no procedimento interpretativo. Outra técnica interpretativa que sempre estará presente é a interpretação sistemática, e isso porque, como o ordenamento jurídico supõe unidade, coerência e plenitude, é preciso que seja enxergado como um sistema, determinando uma necessária conexão entre as normas jurídicas que a partir de seus diversos enunciados prescritivos podem ser extraídas. Além dessas duas técnicas, é possível afirmar que também sempre estará presente a interpretação teleológica, a qual determina que as normas jurídicas e, por conseguinte, o ordenamento jurídico deva ser interpretado no sentido de que sejam atendidos os fins sociais a que se dirige e também às exigências do bem comum (art. 5º, LINDB). Com essas técnicas e outras que possam ser apontadas, o intérprete logra cumprir sua missão de “ordenar a pluralidade de elementos que se acham à sua disposição[62]”.

Essa interpretação pode ser feita pelos mais diversos operadores do Direito (juízes, juristas, advogados, legisladores etc.), recebendo, assim, conforme o intérprete, uma denominação, podendo-se falar, então, por exemplo, em interpretação doutrinária (que é feita por juristas, pesquisadores ou cientistas, do Direito, e que fornece os subsídios científicos para os órgãos aplicadores do Direito), em interpretação jurisprudencial (que é feita pelos magistrados e pelos tribunais) e em interpretação autêntica (que é feita pelo legislador).

Quando o operador do Direito, em geral um magistrado, interpretando o ordenamento jurídico para solucionar um caso concreto que lhe foi apresentado, logra não encontrar uma norma que lhe sirva para solver a questão, não tendo como subsumir o fato a um preceito normativo, devido a um defeito do sistema jurídico, “que pode consistir numa ausência de norma, na presença de disposição legal injusta, ineficaz socialmente, ou seja, em desuso[63]”, tem-se uma lacuna, isto é, o não oferecimento pelo Direito de uma solução para um determinado caso concreto[64], ou melhor, a inexistência de uma regulamentação específica aplicável à situação fática. A lacuna pode ser[65]: normativa (caso em que não há norma que regulamente o caso concreto), ontológica (hipótese em que há desajuste entre o fato e a norma) ou axiológica (quando o resultado da aplicação da norma, isto é, a solução por ela oferecida é insatisfatória ou injusta).

Ciente do real problema das lacunas, o legislador prescreve normas que determinam procedimentos utilizáveis no caso de o intérprete identificar a presença de uma lacuna. As técnicas de colmatação de lacunas não instauram, é verdade, a plenitude do ordenamento, mas apenas o integram no caso concreto, de maneira que a lacuna permanece para os demais casos. Daí que uma lacuna só vá ser efetivamente preenchida, deixando de existir, definitivamente, quando for produzida uma norma jurídica abstrata e geral, que sirva para todos os casos concretos em que determinada conduta for identificada no plano fático.

Os meios de preencher uma lacuna são indicados pelo próprio legislador, no art. 4º da LINDB: a) analogia – primeiro instrumento que deve ser observado, “consiste em aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado[66]”, ou seja, para que a analogia possa ser empregada, é preciso haver uma semelhança relevante, uma qualidade que seja a razão suficiente para a colmatação[67]. A analogia vai revelar, portanto, normas implícitas; b) costume – instrumento que deve ser observado se o anterior não funcionar ou não for suficiente. Trata-se do resultado da prática consuetudinária, que se revela juridicamente relevante devido a dois fatores: “o uso e a convicção jurídica, sendo portanto a norma jurídica que deriva da longa prática uniforme, constante, pública e geral de determinado ato com a convicção de sua necessidade jurídica[68]”; c) princípios gerais de Direito – instrumento que deve ser utilizado se os demais não funcionarem ou forem insuficientes, e que consiste em “uma diretriz para a integração das lacunas estabelecida pela própria lei[69]”, sendo, em geral, vagos e imprecisos, pois não estão estabelecidos nas prescrições normativas – não se trata de preceitos éticos, políticos, sociológicos ou técnicos, mas de elementos que compõem o Direito, orientando a compreensão do sistema, sua aplicação e integração, ainda que não estejam positivados[70].

Por fim, tem-se a questão da equidade, que, apesar de não estar listada como uma das técnicas para a integração do Direito, com ela contribui. Assim, a equidade não é um procedimento de colmatação de lacunas, mas de interpretação e de aplicação das próprias normas jurídicas; é um elemento que contribui para a adaptação da norma jurídica ao caso concreto, atenuando o rigor da norma, adaptando-a aos fatos – corrigindo eventual inadequação da norma ao caso concreto[71]. Daí que se esgotados os procedimento de colmatação de lacunas, é possível ao intérprete-aplicador socorrer-se da equidade para resolver a questão que lhe é posta[72].


12. Relação jurídica

O conjunto de normas jurídicas, isto é, o ordenamento jurídico, regulamenta não os comportamentos humanos, e, sim, os padrões de comportamento. Cada comportamento supõe, à sua vez, ao menos uma relação social entre pessoas, que se constituirá como uma relação jurídica se regulamentada por normas jurídicas. Assim, a transformação de um vínculo de fato em um vínculo jurídico depende que sobre aquele incida uma norma jurídica, tendo como efeitos os seguintes: uma relação entre sujeitos jurídicos, a qual se caracteriza por um vínculo jurídico em torno de um objeto.

Nesse sentido, tem-se que a relação jurídica consiste em uma relação intersubjetiva, isto é, entre sujeitos jurídicos, um ativo e outro passivo, vinculados juridicamente a um objeto imediato e a um objeto mediato. Em termos gerais, pode-se dizer que o sujeito ativo ocupa o polo ativo da relação, sendo titular de um direito subjetivo, enquanto que o sujeito passivo ocupa o polo passivo da mesma relação, sendo titular de um dever jurídico; esses sujeitos são denominados pessoas, podendo ser pessoas físicas (ou naturais) ou jurídicas, estas se subdividindo em públicas ou privadas. Além disso, há que se distinguir o objeto dessa relação em imediato, quando se refira à prestação devida pelo sujeito passivo ao sujeito ativo, podendo ser uma prestação de dar coisa, fazer algo ou não fazer algo; e em mediato, quando se refira ao bem sobre o qual recaia o direito do sujeito ativo. Por fim, há que se dizer que esse vínculo jurídico existente entre o sujeito ativo e o passivo, depende de um fato jurígeno, isto é, um fato jurídico em sentido amplo, que lhe é anterior, e que pode ser: um fato jurídico em sentido estrito, quando independente da ação humana, como, por exemplo, o nascimento, a morte, a maioridade, o decurso do tempo, a força maior e o caso fortuito; um ato jurídico, quando decorrente de um ato voluntário sendo irrelevante o resultado que daí advenha, do que é exemplo a confissão e a transferência de domicílio; um negócio jurídico, quando há um acordo de vontades, tendo como exemplos os contratos e os testamentos; ou um ato ilícito, quando praticado um ato em desacordo com o ordenamento jurídico, de modo que o resultado produzido é determinado não pela vontade das partes, e sim em virtude de previsão legal, como, por exemplo, ocorre no caso dos crimes e do abuso do direito.

Nesse conceito estão indicados, portanto, os cinco elementos fundamentais de uma relação jurídica: a) elemento material: relação social; b) elemento formal: regulamentação jurídica do fato social; c) elemento pessoal ou subjetivo: sujeito ativo ou credor e sujeito passivo ou devedor; d) elemento objetivo ou material: prestação (objeto imediato) e bem da vida (objeto mediato); e) elemento ideal, imaterial ou espiritual: vínculo jurídico, que decorre de um fato jurígeno (fato jurídico em sentido amplo), que estabelece, portanto, um vínculo de atributividade, contratual ou legal, permitindo que se exija o cumprimento de um dever, satisfazendo um direito.

As relações jurídicas podem ser de variadas espécies: a) simples (quando envolvem apenas duas pessoas, uma em cada polo) e complexas (quando envolvem mais de duas pessoas, em um dos polos ou em ambos); b) relativa (quando o sujeito passivo encontra-se determinado, como nos casos de direitos de crédito) e absoluta (quando o sujeito passivo é indeterminado, como nos casos de direitos personalíssimos e de direitos reais); c) pública (quando o Estado participa, impondo sua autoridade e estabelecendo uma situação de desigualdade, caracterizada pela subordinação) e privada (quando se dá entre particulares em plano de igualdade, determinando uma relação de coordenação); d) patrimonial (quando o objeto apresenta valor pecuniário) e extrapatrimonial (quando o objeto não possui valor pecuniário); e) abstrata (quando não há individualização dos titulares de direitos e deveres) e concreta (quando os sujeitos estão individualizados); f) principal (quando independe de outra relação jurídica para existir) e acessória (quando depende de outra relação jurídica para existir); g) pessoal (quando vincula o titular do direito a um número determinado de pessoas), real (quando vincula o titular do direito a um número indeterminado de pessoas) e obrigacional (quando vincula entre si pessoas determinadas); h) material (entre pessoas no dia-a-dia) e processual (entre Estado e as pessoas, para que aquele tutele o direito material questionado em juízo).

Como se pode depreender tanto do conceito quanto das espécies apontadas de relação jurídica, o elemento principal desta é o subjetivo ou pessoal. Ou seja, sem um fato social que se perfaça na relação entre ao menos duas pessoas, não há incidência de norma jurídica que estabeleça vínculo de atributividade, estabelecendo direitos e deveres em torno de um objeto prestacional. Assim, ainda que um dos polos da relação social, que se torna jurídica em razão da incidência de normas jurídicas, seja constituído por sujeitos indeterminados, ainda assim há uma relação intersubjetiva. Tendo, pois, o elemento subjetivo toda essa importância, é preciso detalhar melhor as posições jurídicas: ativa e passiva.

Pode-se definir posição jurídica como a situação jurídica de uma pessoa dentro de uma relação jurídica. Nesse sentido, quem revela uma situação jurídica em que detém um direito subjetivo, um direito potestativo, um poder jurídico ou uma faculdade jurídica, ocupa uma posição jurídica ativa, sendo denominada essa pessoa de sujeito ativo, e pode ser, por exemplo, credor (no caso das obrigações patrimoniais), proprietário, possuidor ou detentor (no caso das obrigações reais). De outro modo, quem revela uma situação jurídica em que detém um dever jurídico, uma obrigação, um ônus ou qualquer outro tipo de sujeição, ocupa uma posição jurídica passiva, sendo denominada tal pessoa de sujeito passivo, podendo ser, por exemplo, devedor (no caso das obrigações patrimoniais), a coletividade (no caso das obrigações reais).

Quem ocupa na relação uma posição jurídica passiva detém, portanto, algum tipo de: a) obrigação, ou seja, um dever jurídico patrimonial, que pode ser contratual (quando o dever decorrer de um acordo de vontades) ou aquiliana ou extracontratual (quando o dever decorrer da lei); b) ônus, ou seja, a necessidade de que uma pessoa se comporte de uma determinada maneira, a fim de que um interesse seu seja realizado; c) dever jurídico, isto é, a necessidade de que o sujeito passivo observe um determinado comportamento compatível com o interesse do sujeito ativo, para que o interesse deste seja satisfeito (o dever jurídico se contrapõe ao direito subjetivo); d) sujeição, quando uma pessoa ou uma coisa é sujeitada ao domínio ou à dependência de outra coisa ou pessoa (a sujeição se contrapõe ao direito potestativo).

Quem ocupa na relação uma posição jurídica ativa detém, por sua vez, algum tipo de: a) direito subjetivo, que se constitui numa norma jurídica que estabelece um poder ou uma faculdade em favor de uma pessoa, podendo esta exigir ou pretender de outrem um determinado comportamento positivo (dar, pagar, fazer) ou negativo (não fazer, abster-se), ou seja, consiste no poder que alguém tem de submeter outrem a um direito seu, que se encontra preestabelecido numa norma jurídica, daí que o seu oposto se constitua no dever jurídico; b) direito potestativo, que consiste no poder de se praticar determinado ato em conformidade com o Direito, produzindo efeitos na esfera jurídica de outras pessoas ou coisas, as quais se sujeitam ao interesse do titular, ou seja, trata-se de um poder que é exercido unilateralmente e não pode ser contestado, provocando a sujeição da coisa ou da pessoa (por exemplo, o divórcio); c) poder jurídico, a situação em que se atribui a uma pessoa poderes sobre outra, os quais são exercíveis em favor e no interesse desta (caso do poder familiar, da tutela e da curatela); d) faculdade jurídica, que consiste no poder que uma pessoa tem de obter, por ato próprio, resultado jurídico independente da atuação de outrem (adoção, por exemplo).

Dentre todas essas categorias, o Direito normalmente se detém mais sobre o direito subjetivo, que consiste no poder ou na faculdade atribuída por uma norma jurídica a alguém de praticar ou não um determinado ato e de exigir de outrem que se comporte de maneira positiva ou negativa em relação a ele, ou de buscar, quando tiver esse seu direito violado, a devida tutela, mediante o acionamento do Judiciário.

Algumas teorias tentaram explicar a natureza do direito subjetivo, no que se pode resumir: a) teoria da vontade, pela qual a existência de um direito subjetivo depende da vontade de seu titular, devidamente reconhecida pelo ordenamento jurídico; b) teoria do interesse, pela qual o direito subjetivo consiste no interesse de seu titular, juridicamente tutelado; c) teoria eclética, pela qual o direito subjetivo consiste na vontade e no interesse de seu titular, juridicamente tutelados; d) teoria negativa, pela qual se nega a existência de direitos subjetivos; e) teoria kelseniana, pela qual o direito subjetivo é a consequência jurídica do direito objetivo, constituindo-se, também, como reflexo de um dever jurídico. A teoria que prevalece é esta última.

Esclarecidos o conceito e a natureza do direito subjetivo, convém apontar algumas de suas espécies: a) absoluto (exercível perante sujeitos abstratos, perante a coletividade, de sujeição indeterminada) e relativo (exercível perante sujeitos concretos, podendo ser exigido contra pessoas determinadas); b) patrimonial (quando possui valor econômico) e extrapatrimonial (quando não possui valor econômico); c) acessório (dependente) e principal (autônomo); d) transmissível (quando há a possibilidade de a titularidade ser transferida ou trocada) e intransmissível (quando não é possível transmitir a titularidade); e) renunciável (quando o se pode abdicar de sua titularidade, ainda que esta não seja transferida a outrem) e irrenunciável (quando não se pode abrir mão da titularidade); f) público (direitos de liberdade, de ação, de petição e políticos) e privado (patrimoniais e não patrimoniais ou extrapatrimoniais); g) alienáveis (que podem ser objeto de negócios jurídicos) e inalienáveis (que não podem ser objeto de negócios jurídicos); h) originários (quando nascem que o próprio sujeito ou quando a ele pertencem originariamente) e derivados (quando o sujeito os adquire por: sub-rogação pessoal, isto é, quando alguém substitui o titular do direito, passando a ocupar o seu lugar; sub-rogação real, quando um bem toma o lugar de outro como objeto do direito; sucessão, quando há transmissão, ou seja, o novo titular adquire o direito que possuía o titular anterior).

Por fim, há que se dizer que os direitos não são absolutos, devendo ser observada sua função social, dentro da qual devem ser exercidos[73]. Assim, se os direitos subjetivos não forem exercidos de acordo com as normas jurídicas presentes no ordenamento jurídico, haverá abuso de direito, o qual será sancionado, havendo a responsabilização do agente.


13. Conclusão

Pretendeu-se com esta pequena introdução ao mundo jurídico apresentar, em uma linguagem simples e clara, dentre os diversos temas que o estudante do Curso de Direito enfrentará desde o seu primeiro período, aqueles mais recorrentes. A proposta aqui não foi, portanto, a de se fazer ciência, mas também não se constituiu em uma simples compilação de autores; a proposta feita no início e que se crê ter sido atingida foi a de inserir aos poucos o estudante no Curso de Direito.


Notas

[1] MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 28.

[2] REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 62: “‘Direito’ significa, por conseguinte, tanto o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo-lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que o estuda, a Ciência do Direito ou Jurisprudência”.

[3] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito: introdução à teoria geral do direito, â filosofia do direito, à sociologia jurídica e lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 35.

[4] O jusnaturalismo racionalista é de matriz contratualista, perfilhando os ideais liberais, caracterizando-se, inicialmente, pelo individualismo do liberalismo clássico. Ver, por exemplo: PINHEIRO FARO, Julio. Liberalismos políticos. Revista Portuguesa de Ciência Política, n. 1, 2011. Para uma versão ampliada, ver: PINHEIRO FARO, Julio. Liberalismos políticos. Revista dos Tribunais, n. 914, dez. 2011.

[5] Nesse sentido, ver, por exemplo: RADBRUCH, Gustav. Five minutes of philosophy of law. Oxford Journal of Legal Studies, vol. 26, n. 1, 2006.

[6] KELSEN, Hans. Sobre los límites entre el método sociológico y el jurídico. Revista de la Facultad de Derecho de México, n. 75-76, 1969.

[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[8] REALE, Miguel. Obra citada, 2005, pp. 64-65.

[9] REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito: situação atual. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 118-119.

[10] REALE, Miguel. Obra citada, 2005, p. 65.

[11] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 43.

[12] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to law: a reply to professor Hart. Harvard Law Review, vol. 71, n. 4, 1958.

[13] HART, H. L. A. Positivism and the separation between law and morals. Harvard Law Review, vol. 71, n. 4, 1958.

[14] REALE, Miguel. Obra citada, 1994, p. 120.

[15] ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: introdução e teoria geral: uma perspectiva luso-brasileira. 10. ed. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 40-41.

[16] REALE, Miguel. Obra citada, 2011, p. 139.

[17] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 98.

[18] REALE, Miguel. Obra citada, 2011, p. 140.

[19] POLETTI, Ronaldo. Introdução ao Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 206-208.

[20] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Obra citada, 1997, p. 117.

[21] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 192.

[22] Para um interessante livro sobre o desuso das leis, ver: CRUET, Jean. La vie du Droit et l’impuissance des lois. Paris: Ernest Flammarion, 1908.

[23] NADER, Paulo. Obra citada, 1986, pp. 195-196.

[24] NADER, Paulo. Obra citada, 1986, pp. 196.

[25] A classificação é de: NADER, Paulo. Obra citada, 1986, pp. 197-199.

[26] REALE, Miguel. Obra citada, 2011, p. 165.

[27] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 312.

[28] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito internacional público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 99-100.

[29] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Obra citada, 2008, p. 100.

[30] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 372.

[31] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 381.

[32] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 404.

[33] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 405.

[34] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 406.

[35] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 407.

[36] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Perspectivas e tendências atuais do Estado constitucional. Trad. Jose Luis Bolzan de Morais e Valéria Ribas do Nascimento. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 20.

[37] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[38] RAZ, Joseph. Kelsen’s theory of the basic norm. American Journal of Jurisprudence, vol. 19, 1974, pp. 94-95.

[39] RAZ, Joseph. Obra citada, 1974, p. 95.

[40] RAZ, Joseph. Obra citada, 1974, p. 95.

[41] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Obra citada, 2012, p. 21.

[42] DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução às normas do Direito brasileiro interpretada. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012a, p. 24.

[43] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 75.

[44] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 106-107.

[45] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 102.

[46] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 92.

[47] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 102.

[48] BOBBIO, Norberto. Obra citada, 1999, p. 100.

[49] BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 18.

[50] BARCELLOS, Ana Paula de. Obra citada, 2005, p. 31.

[51] BARCELLOS, Ana Paula de. Obra citada, 2005, p. 35.

[52] ALEXY, Robert. A theory of constitutional rights. Trans. Julian Rivers. 2. ed. Cambridge: Oxford University Press, 2002, p. 45; von WRIGHT, Georg Henrik. Deontic logic. Mind (New Series), n. 60, 1951, p. 1.

[53] OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de expressão e discurso de ódio na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 80.

[54] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 202.

[55] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 224-228.

[56] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito tributário. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 91.

[57] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.

[58] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 449.

[59] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 171.

[60] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 173.

[61] BARROSO, Luís Roberto. Obra citada, 2008, p. 103.

[62] BARROSO, Luís Roberto. Obra citada, 2008, p. 125.

[63] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 115.

[64] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 119.

[65] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 123.

[66] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 480.

[67] BOBBIO, Norberto. Obra citada, 1999, p. 152.

[68] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 143.

[69] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 491.

[70] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 496.

[71] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012, p. 501.

[72] DINIZ, Maria Helena. Obra citada, 2012a, p. 155.

[73] BATALHA, Wilson de Souza Campos. Teoria geral do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 232.


Autor

  • Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

    Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

    Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Membro do Comitê de Pesquisa da Faculdade Estácio de Sá, Campus Vitória (FESV). Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Financeiro, Direito Tributário e Processo Tributário, no Curso de Direito da FESV. Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da FDV. Consultor de Publicações; Advogado e Consultor Jurídico sócio do Escritório Homem de Siqueira & Pinheiro Faro Advogados Associados. Autor de mais de uma centena de trabalhos jurídicos publicados no Brasil, na Alemanha, no Chile, na Bélgica, na Inglaterra, na Romênia, na Itália, na Espanha, no Peru e em Portugal.

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SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Pequena introdução ao mundo jurídico: temas e elementos de introdução ao estudo do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3440, 1 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23112. Acesso em: 25 abr. 2024.