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As discriminações nos concursos públicos e os princípios constitucionais do Direito Administrativo

As discriminações nos concursos públicos e os princípios constitucionais do Direito Administrativo

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O concurso público objetiva selecionar os melhores para a carreira pública. Eventuais restrições de ingresso com base em tatuagem ou gênero devem observar os princípios da proporcionalidade, igualdade e legalidade.

Resumo: O concurso público objetiva selecionar os melhores para a carreira pública. Todavia, essa seleção está sujeita aos princípios constitucionais. Assim, restrições de ingresso com base em tatuagem ou gênero devem observar os princípios da proporcionalidade, igualdade e legalidade.

Palavras-chave: Concurso Público; Legalidade; Igualdade; Proporcionalidade.

Sumário: 1 – Introdução. 2 – A Evolução Histórico-Constitucional da Exigência dos Concursos Públicos. 3 – Os Agentes Públicos. 4 – Do Ingresso nas Carreiras Públicas. 5 – Dos Princípios Constitucionais do Direito Administrativo. 5.1 – Do Princípio da Legalidade. 5.2 – Do Princípio da Proporcionalidade. 6 – Do Princípio da Igualdade. 7 – Das Discriminações nos Concursos Públicos e os Princípios Constitucionais do Direito Administrativo. 7.1 – Da Vedação de Candidato com Tatuagem e o Princípio da Proporcionalidade. 7.2 – Das Vagas em Razão do Gênero dos Candidatos e Princípio da Igualdade. 8 – Conclusão. 9 – Referências Bibliográficas.


1 – INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no artigo 37, inciso II, determina a necessidade de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, para que qualquer brasileiro ou estrangeiro que preencha os requisitos previstos em lei possa ser investido em cargo ou emprego público, excetuado os cargos em comissão. Referida forma de contratação é precedida da publicação de Edital contendo as regras e peculiaridades do certame. Eventualmente, um edital pode contemplar restrições aos candidatos, com o objetivo de afunilar a concorrência e mitigar o livre acesso aos cargos públicos, selecionando de maneira arbitrária os concorrentes ao ingresso na carreira pública. Como exemplo, cita-se a vedação de candidatos com tatuagem ou a previsão de menos vagas para mulheres.

O presente artigo tem o objetivo de analisar pragmaticamente os citados exemplos, à luz dos princípios constitucionais do Direito Administrativo, em especial dos princípios da proporcionalidade, legalidade e isonomia. Dessa maneira, espera-se que o presente estudo possa ser útil para a sociedade em geral, pois tem o nítido condão elucidativo a respeito dos concursos públicos, traçando as possibilidades de discriminações previstas nos editais, trazendo também, o posicionamento moderno dos Tribunais Brasileiros sobre o tema.

Por derradeiro, assinala-se que o presente trabalho utilizou material bibliográfico e julgados recentes, com intuito de traçar um paralelo entre os casos analisados pelo Judiciário e as teorias dominantes.


2 - A Evolução Histórico-Constitucional da Exigência dos Concursos Públicos[1]

Analisando as Constituições anteriores, desde o império até a forma republicana dos tempos atuais, nota-se que a exigência de realização de concurso público para provimento de cargo efetivo é matéria que já mostrava indícios, mesmo não havendo ainda sua previsão expressa. Nesse sentido, a Constituição do Império de 25 de março de 1824, prescrevia em seu artigo 179, inciso XIV, que “todo cidadão pode ser admitido aos Cargos Públicos Civis, Políticos, ou Militares, sem outra diferença, que não seja dos seus talentos, e virtudes”.[2] Vale aqui destacar que conforme se verifica no dispositivo legal citado, já se tinha preocupação com o princípio da isonomia e a proclamação da regra de mérito inerente aos certames públicos, uma vez que previa o livre acesso a todo cidadão que demonstrasse talentos e virtudes correspondentes ao cargo almejado.  No mesmo sentido, a Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, previa em seu artigo 73, a possibilidade de acesso aos “cargos públicos civis ou militares a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir, sendo, porém, vedada as cumulações remuneradas”.[3]

A Constituição de 1934, foi a primeira prescrição expressa da necessidade de realização de concurso público, inclusive com a obrigatoriedade da realização de exame de sanidade, para admissão nos postos das repartições administrativas. Nesse diapasão, o artigo 170, 2º, da referida Carta Magna, ordenava que “a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e nos demais que a lei determinar, efetuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos”. A mesma Constituição, ainda trazia em seu artigo 158, a vedação de “dispensa do concurso de títulos e provas no provimento de cargos do magistério oficial, bem como, em qualquer curso, a de provas escolares de habilitação, determinada em lei ou regulamento”. Em seguida, com o advento da Constituição de 1937[4], foi retirada apenas a exigência do exame de sanidade, que voltou na Constituição 1946[5], sob a denominação de inspeção de saúde, englobando alem da verificação psicológica do candidato (sanidade), também as suas condições de saúde física. Posteriormente, a Carta de 1967 cujos traços se vê na Constituição atual a respeito da exigência de concurso público para ingresso nas carreiras da Administração Pública. Com efeito, o artigo 95, previa em seu § 1º, que “A nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos”. Em contrapartida, trouxe a desnecessidade da realização de concurso para os cargos em comissão, dispondo o § 2º, do mesmo artigo, que “Prescinde de concurso a nomeação para cargos em comissão, declarados em lei, de livre nomeação e exoneração”. Todavia, com a edição da Emenda Constitucional nº 1/1969, o artigo 95 da Constituição citada, passou a prever a possibilidade de dispensa de concurso público nos casos indicados.[6]

Atualmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê em seu artigo 37, incisos I e II, a necessidade de concurso de provas ou provas e títulos, para ingresso nas carreiras públicas, bem como estendeu referida possibilidade aos estrangeiros na forma prevista em lei, in verbis:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).


3 – Os Agentes Públicos

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “agente público é toda pessoa física que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração Indireta”. [7] No mesmo sentido, o Saudoso Doutrinador Hely Lopes Meirelles, explica que os agentes públicos “são todas as pessoas físicas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal”.[8] Apenas como esclarecimentos, antes da entrada em vigor da Carta Política atual, não eram incluídos neste rol de agentes, aqueles pertencentes às pessoas jurídicas de direito privado, criadas pelo Poder Público, a saber, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Assim, em linhas gerais e de maneira simplificada, agentes públicos são todos aqueles que possuem de alguma forma, vínculo de trabalho com os entes estatais, independentemente do poder em que estejam atrelados.

Destarte, analisando a Constituição Federal de 1988, após a Emenda Constitucional nº 18/98, temos quatro categorias de agentes públicos. São elas: agentes políticos, servidores públicos, militares e particulares em colaboração com o Poder Público. Insta esclarecer que apesar da grande oscilação a respeito da classificação dos agentes públicos, preferimos utilizar esta, acompanhando a autora Marya Sylvia Zanella Di Pietro, uma vez que após as alterações introduzidas pela Emenda constitucional nº 18/98, os militares deixaram de receber a denominação de “servidores militares”, sendo necessária a adição de uma categoria a eles destinada, muito embora não exista distinção conceitual entre servidores civis e os militares.[9]

Portanto, os servidores públicos constituem uma espécie do gênero agentes públicos. Assim, no presente estudo, abordaremos os servidores públicos titulares de cargos efetivos e os empregados públicos, haja vista que ambos ingressam na Administração Pública por concurso público, conforme se explicitará no tópico seguinte. Enfim, neste trabalho, a denominação “agentes públicos” refere-se aos servidores públicos e aos empregados públicos.


4 – Do Ingresso nas Carreiras Públicas

O artigo 37, II, da Constituição Federal[10], prevê que:

a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

Nesse diapasão, para ingresso nos cargos públicos é necessária aprovação em concurso público de provas ou provas e títulos, pois se trata de posto de trabalho no setor público, cuja remuneração é proveniente dos cofres públicos. Igualmente, referido dispositivo constitucional, vem dar efetividade ao Estado Democrático de Direito, possibilitando a igualdade de condições no concurso, para todos aqueles que almejam um lugar nos postos de trabalho da Administração Pública. Nesse sentido, destacam-se os ensinamentos do renomado jurista Hely Lopes Meirelles:

A obrigatoriedade de concurso público, ressalvados os cargos em comissão e empregos com essa natureza, refere-se à investidura em cargo ou emprego público, isto é, ao ingresso em cargo ou emprego isolado ou em cargo ou emprego público inicial da carreira na Administração direta e indireta. [11]

Portanto, o objetivo da Administração Pública é selecionar os candidatos mais capacitados para o exercício do cargo, emprego ou função pública que se encontra vago, ou passível de breve vacância e criação. Ademais, o concurso público é um meio técnico que dispõe a administração para melhorar o serviço público, propiciando de forma igualitária a todos os interessados a oportunidade isonômica de concorreram a vaga aberta, desde que preenchido os requisitos legais determinados pela natureza e complexidade do cargo ou emprego a que se concorre, constante prescrição do artigo 37, II, da CF.

Nesse diapasão, para a autora Odete Medauar, “A exigência de concurso público para ascender a postos de trabalho no setor público atende, principalmente, ao princípio da igualdade e ao princípio da moralidade administrativa”. [12]

Destarte, ainda a respeito do inciso II, do artigo 37 da Constituição Federal, que torna obrigatória a realização de concurso público para as contratações feitas pelo Poder Público quanto a seus trabalhadores, finaliza, com extrema propriedade, o Saudoso Doutrinador Hely Lopes Meirelles. “Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando cargos e empregos públicos”.[13]

Contudo, o legislador constituinte previu a possibilidade de ingresso em cargo ou emprego público sem a necessidade de concurso público, para aqueles derivados de lei de livre exoneração e nomeação, intitulados de cargos em comissão. Ocorre que, o inciso V do mesmo artigo, determina que as funções de confiança só podem ser exercidas por servidores ocupantes de cargo efetivo, e, portanto, concursado, deixando os cargos em comissão para os servidores de carreira, que é compreendido em atribuições de direção, chefia e assessoramento.

As referidas exceções encontram guarida ainda no inciso IX, do referido artigo 37, quando permite a “contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”, nas nomeações para cargos de Ministros ou Conselheiros dos Tribunais de Contas, com espeque nos artigos 73, §2º, c/c 84, XV, bem como para Ministros do STF conforme artigo 101, STJ artigo 104, e TST artigo 111-A, todos da Carta Magna de 1988. Vale acrescentar a este rol, as nomeações para o quinto constitucional para ocuparem uma das cadeiras de Desembargadores dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Estaduais e do DFT, constante artigo 94, assim como as nomeações temporários para Ministros do TSE e juízes dos TREs, conforme artigos 119 e 120, respectivamente, também da CF.

Sendo assim, não obstante o vasto rol acima, os cargos em comissão são exceção perante a Constituição da República, devendo, inclusive, respeitarem condições e percentuais mínimos previstos em lei. Com efeito, a regra é a realização de concurso público para provimento de cargo efetivo, não sendo dada ao administrador a possibilidade de contratação por via oblíqua, sob pena de nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, conforme dispõe o § 2º do artigo 37 da CF.

Assim, pode-se concluir que o concurso público é o meio imperativo e técnico que dispõe a Administração Pública, observando os princípios constitucionais administrativos, para buscar de maneira eficiente e isonômica o aperfeiçoamento do serviço público, por meio da seleção do candidato mais apto a vaga que se encontra aberta ou passível de imediata vacância, excetuado o preenchimento dos cargos de chefia, direção e assessoramento, que são providos mediante livre nomeação e exoneração, nos termos da legislação correspondente.


5 – Dos Princípios Constitucionais do Direito Administrativo

Antes de adentrar na problemática que o presente trabalho visa elucidar, insta mencionar alguns princípios constitucionais do Direito Administrativo necessários para o raciocínio lógico da solução jurídica dos problemas que serão levantados. Vale frisar que o objetivo do presente estudo não é fazer uma análise sistemática e conceitual dos princípios constitucionais do Direito Administrativo, mas fazer um paralelo destes com determinados editais de concursos públicos, no intuito de demonstrar a possibilidade de discriminação quanto aos candidatos, por tatuagem ou gênero, bem como eventuais excessos impugnáveis via ação proposta no Poder Judiciário. Enfim, como não se deve analisar uma questão sem antes compreender a sua origem, se faz necessária a exposição, mesmo que sintética, de alguns princípios constitucionais da Administração Pública, haja vista que toda ciência tem como ponto de partida o estudo lógico de seus princípios.

O Professor Manoel Messias Peixinho, assim explica:

Quando se fala de princípios constitucionais, deve-se entender aqueles princípios que estão presentes explícita e implicitamente e que informam determinada Constituição, estabelecendo diretrizes para interpretação e aplicação de suas normas.[14]

Vale ainda destacar, o brilhante posicionamento da autora Odete Medauar, sobre a relevância dos princípios no direito administrativo, in verbis:

No direito administrativo, os princípios revestem-se de grande importância. Por ser um direito de elaboração recente e não codificado, os princípios auxiliam a compreensão e consolidação de seus institutos. Acrescente-se que, no âmbito administrativo, muitas normas são editadas em vista de circunstâncias de momento, resultando em multiplicidade de textos, sem reunião sistemática. Daí a importância dos princípios, sobretudo para possibilitar a solução de casos não previstos, para permitir melhor compreensão dos textos esparsos e para conferir certa segurança aos cidadãos quanto à extensão dos seus direitos e deveres.[15]

Ainda nessa esteira de raciocínio, a mesma autora traz a importância dos princípios para o Direito Administrativo nos dias de hoje, in verbis:

A relevância dos princípios no direito administrativo vem comprovada na atualidade no chamado “direito administrativo comunitário” europeu: a Corte de Justiça da União Europeia vem se valendo dos princípios do direito administrativo na solução de muitas questões, em especial na tutela dos direitos dos cidadãos ante medidas da Administração de Estados integrantes.[16]

Todavia, não obstante a relevância da matéria, existe grande oscilação no ordenamento jurídico vigente e na doutrina em relação aos princípios do Direito Administrativo. Entretanto, a Constituição de 1988 prescreve explicitamente em seu artigo 37, caput, os seguintes princípios da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ocorre que, para o presente estudo, analisa-se apenas o princípio da legalidade acrescido de mais dois princípios que não se encontram no rol legal mencionado: o princípio da igualdade e o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade.

Por fim, os princípios possibilitam a aplicação do direito perante todas as ações ocorridas no cotidiano de uma sociedade, pois mesmo que referida situação não esteja positivada no ordenamento jurídica, é possível garantir uma solução correta, embasando-se nos princípios norteadores de todo o Direito.

5.1 - Do Princípio da Legalidade

Tido por alguns autores como um dos princípios mais importantes de todo o Direito, o princípio da legalidade tem sua essência no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, que “ressalta os aspectos da soberania e da cidadania”.[17]

Este princípio, junto ao da supremacia do interesse público sobre o particular, apesar de não serem específicos do Direito Administrativo, uma vez que servem de supedâneo para todos os ramos do direito público, são os elementos essenciais para a formação de todos os demais princípios. Sua origem está umbilicalmente ligada ao Estado Democrático de Direito, pois com a submissão da Administração Pública à lei, suas ações são provenientes dela, e se a lei deriva dos representantes do povo, não há que se falar em qualquer forma de Estado Absoluto, ou em vontade única das autoridades, configurando, nitidamente, o externamento da vontade popular e a vitória da soberania.

Nesse sentido, Manoel Messias Peixinho citando o autor Charles Debbasch, explica sobre o direito administrativo francês:

Para Charles Debbasch, comentando o direito administrativo francês, a submissão da Administração Pública à Lei constitui-se um princípio fundamental do Estado Liberal. Ao contrario do que ocorre no Estado de Polícia, em que a Administração é totalmente livre de sua ação, o Estado Liberal é um Estado de Direito. Os administrados detêm direito iguais aos da Administração, tendo o direito de exigir que o Estado respeite as regras de direito, principalmente pelo exercício de recursos jurisdicionais. Os particulares, assim, têm a garantia de que ação administrativa será conduzida objetivamente e não com parcialidade.[18]

O princípio da legalidade visa em sua conceituação obrigar a Administração Pública seguir rigorosamente os ditames previstos na legislação vigente, ou seja, só é permitido a ela realizar algum ato ou deixar de praticá-lo, caso haja estrita prescrição legal. Vale aqui frisar que de acordo com o inciso I, do parágrafo único do artigo 2º da Lei 9.784/99[19], a atividade administrativa deve seguir não só a lei, mas também o Direito. Assim, podemos concluir que além do dever de estrita obediência à lei, a Administração Pública deve também observância aos princípios do Direito Administrativo, para que se alcance o real significado da legalidade. Nessa esteira de raciocínio, com o brilhantismo de costume, ensina o saudoso Doutrinador Hely Lopes Meirelles:

A legalidade, como princípio da administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inc. I do parágrafo único do art. 2º da Lei 9.784/99. Com isso, fica evidente que, alem da atuação conforme à lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos.[20]

Em contrapartida ao princípio da legalidade, está o da autonomia da vontade, onde estão submetidos, mesmo que implicitamente, todos os particulares. Este princípio, garante aos cidadãos o direito de fazer qualquer coisa, desde que não proibida por lei. Portanto, em linhas gerais, o princípio da legalidade torna mais objetiva as ações da Administração Pública, evitando eventual subjetivismo arbitrário dos administradores públicos, porque suas ações devem observar a lei e o Direito, buscando com isso a segurança jurídica do Estado Democrático de Direito, onde os indivíduos não possuem restrições em suas ações, a não ser, aqueles limites para que outros indivíduos possam exercer os mesmos direitos.

5.2 – Do Princípio da Proporcionalidade

Com relação a este princípio, a doutrina diverge sobre sua correspondência com o princípio da razoabilidade. Para uns são dois princípios distintos. Outros doutrinadores defendem que o princípio da proporcionalidade abarca o da razoabilidade. Outros ainda sustentam o contrário, é o princípio da razoabilidade que contem o da proporcionalidade.

Para a Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a proporcionalidade é um dos aspectos do princípio da razoabilidade, in verbis:

Embora a Lei nº 9.784/99 faça referência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, separadamente, na realidade, o segundo constitui um dos aspectos contidos no primeiro. Isto porque o princípio da razoabilidade, entre outras coisas, exige proporcionalidade entre os meios de que se utiliza a Administração e os fins que ela tem que alcançar. E essa proporcionalidade deve ser media não pelos critérios pessoais do administrador, mas segundo padrões comuns na sociedade em que vive; e não poder media diante dos termos frios da lei, mas diante do caso concreto.[21]

Em outra quadra, Hely Lopes Meirelles trata ambos os princípios de forma igual, mas com efeitos distintos, alegando ainda, que a razoabilidade envolve a proporcionalidade, assim como a proporcionalidade envolve a razoabilidade.[22] Explica o Autor:

A Lei 9.784/99 também prevê os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Assim, determina nos processos administrativos a observância do critério de “adequação entre os meios e fins”, cerne da razoabilidade, e veda “imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”, traduzindo aí o núcleo da noção da proporcionalidade (cf. art. 2º, parágrafo único, VI).[23]

No presente trabalho, adota-se a corrente defendida por Odete Medauar, que prefere englobar o sentido de razoabilidade no princípio da proporcionalidade[24]. Nessa esteira de raciocínio, a Autora conceitua este princípio como sendo o limitador das ações da Administração Pública, para quando esta, obrigar, restringir ou sancionar os indivíduos em geral, não extrapolar o interesse público, seguindo assim, um critério razoável para adequar os meios aos fins.[25]

Assim, pode-se concluir que o princípio da proporcionalidade visa limitar a discricionariedade administrativa na busca dos meios mais econômicos, razoáveis e eficientes para se atingir o verdadeiro interesse público.


6 – Do Princípio da Igualdade

Insta esclarecer inicialmente, que o referido princípio que aqui será conceituado não se trata propriamente do princípio da igualdade sobre o âmbito único e exclusivo do Direito Administrativo, mas sobre a isonomia vista como direito e garantia fundamental, prevista no caput do artigo 5º e em seu inciso I, da Constituição da República, que rege todo o direito em razão de sua natureza constitucional.

Nesse contexto, além da previsão expressa contida no artigo supracitado, o princípio da igualdade é também mencionado pela Carta Magna, nos incisos XXX e XXXI, do artigo 7º, vedando “a diferença de salários, de exercícios de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”, bem como “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”. Vale aqui sublinhar que a proibição contida no inciso XXX também é aplicada aos servidores públicos civis por expressa prescrição do parágrafo 3º, do artigo 39, da CF.

O enunciado maior a respeito do princípio da igualdade previsto no artigo 5º se mostra ligeiramente destoado em seu sentido literal, porque os cidadãos são seres humanos desiguais por natureza, desde seus portes físicos e psicológicos, até suas essências, se analisarmos condições de dignidade e caráter. Com isso, grande parte da doutrina critica impetuosamente a redação do referido artigo, no tocante a parte em que garante a igualdade de todos sem distinção de qualquer natureza, pois “prever simetria onde há desproporção visível não é garantir igualdade real, mas consagrar desigualdade palpitante e condenável”.[26]

Assim, nos dias atuais, não basta apenas o preenchimento da igualdade perante a lei para que se tenha atendido a verdadeira igualdade material prevista na Carta Política de 1988. Nesse sentido elucida o Professor e Desembargador Kildare Gonçalves:

De fato, a igualdade formal, entendida como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, tem sido insuficiente para que se efetive a igualdade material, isto é, a igualdade de todos os homens perante os bens da vida, tão enfatizada nas chamadas democracias populares, e que, nas Constituições democráticas liberais, vem traduzida, sobretudo, em normas de caráter programático, como é o caso da Constituição brasileira. Iguala-se por meio de concessão de direitos sociais substanciais, em que o Estado passa a atuar positivamente, proporcionando a todos condições reais para uma existência digna.[27]

Portanto, vale encampar a máxima Aristotélica de que a igualdade consiste em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”.[28]

Contudo, ante a abstratividade dos princípios, torna tarefa difícil aplicar o princípio da isonomia no caso concreto, pois, para situações onde se encontram partes com vários pontos comuns, surgem pequenas diferenças em algumas circunstâncias que ensejam a concessão ou restrição de direitos para que se chegue a real igualdade conforme demonstrado acima.

Nessa esteira de raciocínio, Kildare citando Celso Antônio Bandeira de Melo, explica:

Para que um discrímen legal seja conveniente com a isonomia, impende que concorram quatro elementos:

a) que a desequiparação não atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito seja efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.[29]

Por derradeiro, pode-se concluir que o princípio da igualdade ou isonomia, não possui efetivação absoluta no ordenamento jurídico, devendo ser analisada pelo aplicador do direito perante as peculiaridades do caso concreto. Igualmente, este princípio visa tornar a relação em sociedade isonômica para todos os cidadãos na busca pelo bem-estar de todos, o que só é possível mediante a restrição de direitos para aqueles que se encontram em condições de superioridade e concessão destes mesmos direitos para aqueles que se encontram em nítida inferioridade, dentro da mesma relação jurídica.

No caso em estudo, o presente princípio visa dar condições isonômicas a todos os brasileiros para concorrerem em real igualdade a um posto de trabalho no Poder Público, mediante a instauração de concurso, concedendo ou restringindo vantagens a alguns candidatos, conforme se verificará a seguir.


7 – Das Discriminações nos Concursos Públicos e os Princípios Constitucionais do Direito Administrativo

Conforme declinado em linhas anteriores, os agentes públicos – aqui entendidos como servidores públicos e empregados públicos – ingressam nos quadros da Administração Pública, por meio de procedimento administrativo denominado concurso público, regulado por edital que disciplina o certame, visando selecionar os profissionais mais competentes e com maior aptidão para o serviço público. Nesse contexto, restou demonstrado que a Administração Pública tem o dever de oportunizar de forma isonômica as condições para que todos os cidadãos concorram às vagas ofertadas, sob pena de anulação do ato desrespeitoso e sanção do responsável legal. Logo, se a Administração Pública, impessoal em sua essência, favorecer alguma categoria específica de pessoas, aplicando-lhes tratamento diferenciado, há sempre presunção de ilegalidade daquele privilégio. Todavia, em determinadas situações específicas, pode o administrador público, conceder direitos a uma classe de candidatos, sem que isso venha infringir essa isonomia, não obstante ser o princípio da igualdade o pilar soberano aplicável às regras dos concursos públicos.

Nesse sentido, nos tópicos seguintes, destacam-se algumas limitações inerentes aos certames públicos, das quais em alguns momentos, a Administração Pública obedece de forma precisa os princípios constitucionais da Administração Pública, bem como em outras, viola tais princípios, desafiando os candidatos prejudicados a buscarem a anulação do ato ilegal mediante a provocação do Poder Judiciário.

7.1 – Da Vedação de Candidatos com Tatuagem e o Princípio da Proporcionalidade

O primeiro problema aqui levantado consiste no fato de que na maioria dos concursos públicos para as carreiras militares existe previsão de exclusão de candidato que apresente qualquer tipo de grafia ou anomalia corporal que não possa ser acobertada pelas vestimentas nas aulas de educação física ministradas dentro da corporação.

Ocorre que referida vedação guarda resquícios de eras passadas, onde os indivíduos que possuíam tatuagem eram em sua maioria criminosos demonstrando o grupo a que pertenciam, ou ainda, existem relatos de que, dependendo da grafia desenhada no corpo do indivíduo, esta se referia a confrontos com policiais. Nesse contexto, pode-se concluir perfeitamente aceitável a restrição aqui questionada, pois, além de trazer fortes sinais de desvio de conduta moral do candidato, estas também maculavam toda a corporação militar, prejudicando sua imagem perante a sociedade.

Contudo, nos dias atuais, as tatuagens passaram a serem toleradas, inclusive são utilizadas por diversos cidadãos, independentemente da classe que pertençam, não obstante ainda haja forte preconceito quanto àqueles que as tenham. Assim, sob apenas os aspectos morais e sociais, a previsão editalícia aqui questionada, se encontra em desacordo com o contexto social em que vivemos, haja vista a mudança cultural ocorrida, consequência do dinamismo inerente às sociedades modernas.

Transportando referida situação para análise com foco no âmbito das ciências jurídicas, não merecia melhor sorte a vedação imposta aos candidatos que possuem tatuagem, inclusive os reprovando nos testes de aptidão física sob este único argumento, mormente quando aprovados em todas as outras fases do certame.

Nesse diapasão, é cediço que a Administração Pública possui discricionariedade para estabelecer todas as regras pertinentes aos concursos públicos, mediante a publicação prévia do edital do certame, contendo os critérios específicos para a seleção dos candidatos de acordo com a natureza do cargo que se pretende preencher, conforme preceitua o parágrafo 3º, do artigo 39 da Carta Política de 1988.

Todavia, referida discricionariedade, assim como toda a atuação do Poder Pública, sofre freios dos princípios norteadores de todo o Direito, em especial na situação posta a estudo, não pode a Administração Pública agir fora dos critérios da razoabilidade.

Nesse sentido, aplicando o princípio da razoabilidade como impedimento da discricionariedade da Administração Pública, os autores Márcio Barbosa Maia e Ronaldo Pinheiro de Queiroz, explicam:

Assim sendo, o princípio da razoabilidade funciona como verdadeiro “freio” da postura discricionária, no afã de compatibilizá-la com os direitos dos administrados, via adoção de critérios racionais e lógicos no processo de escolha e valoração das soluções administrativas, máxime no que concerne à estipulação do sentido e alcance de conceitos legais indeterminados ou noções imprecisas.[30]

Portanto, na situação em análise, o edital do concurso que prescreve a impossibilidade de candidatos que possuam qualquer desenho gráfico em sua pele, se mostra demasiadamente fora dos limites do princípio da proporcionalidade, haja vista que destoa dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ferindo as prerrogativas constitucionais do cidadão. A tatuagem exposta no candidato, provavelmente não impede as funções inerentes ao cargo que se concorre, e por isso, não o torna incapacitado para desempenhar suas funções, revelando desproporcional tal limitação, afrontando também, o dispositivo constitucional citado acima.

O brilhante doutrinador Celso Antônio Bandeira de Melo, a respeito dos atos administrativos em desacordo com o princípio da proporcionalidade, leciona:

Este princípio enuncia a ideia – singela, aliás, conquanto frequentemente desconsiderada – de que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas. Segue-se que os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do âmbito da competência; ou seja, superam os limites que naquele caso lhes corresponderiam. (...) Ora, já se viu que inadequação à finalidade da lei é inadequação à própria lei. Donde, atos desproporcionais são ilegais e por isso fulmináveis pelo Poder Judiciário, que, em sendo provocado, deverá invalidá-los quando impossível anular unicamente a demasia, o excesso detectado.[31]

Desta maneira, o foco da atuação administrativa deve sempre visar um fim específico restrito, que em sentido amplo, deve convergir ao interesse público, ou seja, não pode a Administração adotar medidas que não possua uma finalidade determinada. Assim também, as características exigidas dos candidatos nos concursos públicos, devem corresponder às finalidades inerentes ao cargo em concorrência, verificando se a restrição imposta é capaz de comprometer a atividade que será exercida pelos aprovados. Isso se dá, pois, o princípio da proporcionalidade, sob o foco da necessidade da medida, impõe a Administração Pública a necessidade de quando adotar medida restritiva, verificar se seria possível atingir os mesmos fins sem essa restrição ou por outra menos gravosa.

Por tais razões, a cláusula de edital que prevê a eliminação de candidato portador de tatuagem, estigmatizando-o, por si só, como inapto nas fases do certame, se mostra, a princípio, em confronto com o princípio da razoabilidade, uma vez que referido adendo em seu corpo não impossibilita as funções exercidas pelos cargos oferecidos pela Administração Pública, evidenciando assim, a desconformidade de tal vedação com a Constituição Federal, mais precisamente em seu artigo 39, § 3º.

Desta maneira, vale também aplicar o referido raciocínio, para outras restrições encontradas em diversos editais publicados no país, que contenham cláusulas de limite de idade para os candidatos, vedem a participação de candidatos com determinada altura, ou ainda, que possuam qualquer deformidade física, desde que não impeça o regular exercício das funções inerentes ao cargo em disputa.

Por derradeiro, pode-se concluir que o simples fato do candidato possuir qualquer desenho epidérmico em seu corpo, desde que não seja ofensiva a honra, e ainda, não seja de forma demasiada que venha a causar danos na imagem da pessoa, não se mostra razoável eliminá-lo do concurso público. Todavia, caso a Administração venha a praticar sua dispensa arbitrária, é perfeitamente cabível a provocação do Poder Judiciário, mediante a propositura de demanda judicial que venha afastar referido ato coator, na busca de efetivação do princípio da proporcionalidade, bem como aplicando o artigo 39, §3º, da CF.

7.2 – Das Vagas em Razão do Gênero dos Candidatos e o Princípio da Igualdade

O presente tópico talvez seja um dos mais polêmicos de todo o estudo, haja vista que desde os primórdios a disputa de igualdades entre homens e mulheres ganhou repercussões significativas, muito embora ainda não se tenha a conclusão para a referida discussão.

Para a Constituição de 1988, os homens e as mulheres são iguais em direitos e obrigações, conforme preceitua o seu inciso I, do artigo 5º. Ademais, especificamente no tocante aos critérios de admissão, os trabalhadores urbanos e rurais não podem sofrer tratamentos diferenciados, em razão do que dispõe o inciso XXX, do artigo 7º, da Carta Política de 1988. Vale aqui frisar, que referida proibição foi estendida aos servidores públicos em razão de norma expressa no artigo 39, 3º da CF.

Desta maneira, em análise positivada dos artigos trazidos acima, poderíamos concluir, equivocadamente, que não é possível a discriminação de candidatos em virtude do gênero a que pertençam, haja vista existir norma constitucional admitindo a igualdade entre os sexos, bem como vedando sua utilização como critério para admissão dos trabalhares rurais, urbanos e servidores públicos.

Contudo, a parte final do parágrafo 3º, do artigo 39, autoriza “a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo exigir”. Insta esclarecer aqui, que somente lei em sentido estrito pode realizar esta diferenciação, sendo, portanto, dois requisitos que autorizam a discriminação frente os critérios de admissão para os cargos ou empregos públicos, a saber, lei em sentido estrito e exigência da diferenciação em virtude da natureza do cargo. Assim, transportando para a problemática aqui levantada, nota-se que aparece uma possibilidade de discriminação em razão do sexo dos candidatos em determinados concursos públicos, dependendo do cargo que irão concorrer.

O fato é que, para que seja possível a discriminação entre candidatos em razão do sexo, é necessário verificar se esta distinção é relevante e objetiva. Insta aqui esclarecer, que objetiva seria toda aquela desequiparação irrefutável, ou seja, aquela facilmente perceptível por todas as pessoas, não demandando de um juízo de valor ou impressão pessoal para que seja constatada. Portanto, a objetividade sobre determinado critério não deixa dúvidas, e, sendo assim, é perfeitamente possível concluir que a distinção de vagas entre homens e mulheres, possui caráter objetivo em razão da nítida diferenciação biológica, física, e até psicológicas existentes entre eles.

Todavia, o mesmo não acontece com o critério da relevância, uma vez que para sua constatação é necessário verificar a finalidade que este tratamento diferenciado busca atingir. Essa verificação se torna complicada, pois a relevância sobre determinado critério varia conforme os valores vigentes em cada época na sociedade, e, portanto, se permite uma certa margem de discricionariedade.

Nessa esteira de raciocínio, a relevância na discriminação dos candidatos feita pela Administração nos concursos públicos, só se mostraria plausível analisando a natureza do cargo posto a concorrência. Assim, se para determinado cargo em que se busca vigor físico avantajado, o edital do certame amparado em Lei prever a concorrência apenas de candidatos do sexo masculino, deverá ser analisado se a referida limitação, de fato se mostra objetiva e relevante para que seja contratado o candidato mais apto a vaga ofertada, preenchendo assim a real finalidade dos concursos públicos já exposta em tópicos anteriores. Todavia, se a referida discriminação se mostrar desarrazoada, irá afrontar o princípio da igualdade que obriga a Administração dispor de forma isonômica todas as condições para os cidadãos concorrerem às vagas disputadas.

No mesmo sentido, adotando a possibilidade da Administração eleger critérios diferenciados entre candidatos em um concurso público, vale trazer o posicionamento levantado por Márcio Barbosa Maia e Ronaldo Pinheiro de Queiroz, sob o espeque da doutrina de Celso Antônio Bandeira de Melo[32]:

Em contrapartida, na esteira da doutrina de Celso Antônio Bandeira de Melo, é plenamente possível que a norma jurídica eleja qualquer critério de discrímen como condição de acesso aos cargos públicos, ainda que se relacione à raça, ao credo religioso e ao sexo, desde que exista ‘um vinculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida’ e ‘desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição’.[33]

Ainda sobre o tema, os Autores citados trazem três exemplos de discriminação em concursos públicos, em razão da raça, do sexo, e ainda, em virtude da cor dos olhos dos candidatos. Senão vejamos:

‘Pode-se, ainda, supor que grassando em certa região uma epidemia, a que se revelem resistentes os indivíduos de certa raça, a lei estabeleça que só poderão candidatar-se a cargos públicos de enfermeiro, naquela área, os indivíduos pertencentes à raça refratária à contração da doença que se queira debelar.

(...)

Assim também, nada obsta que sejam admitidas apenas mulheres – desequiparação em razão de sexo – a concursos para preenchimento de cargo de polícia feminina.

(...)

De igual modo, não se adversará à regra da igualdade se for proibida a admissão, em dadas funções que requeiram contato com tribos primitivas, de pessoas portadoras de certa característica física, qual, ‘exempli gratia’, determinada cor de olhos, se as tribos em causa tiverem prevenção contra os possuidores de traço biológico desta ordem’[34].

Desta maneira, para que haja a possibilidade de discriminação em razão do sexo dos candidatos, é necessário que a Administração comprove que a finalidade de referido critério especial é relevante e objetiva a ponto de que, caso seja ocupada por outro cidadão que não possua aquelas especificidades, o cargo posto a disposição não cumprirá efetivamente as suas funções inerentes.

Portanto, percebe-se que para avaliação da possibilidade de critérios discriminatórios em relação ao sexo do candidato, depende cabalmente do cargo a que se está dando a possibilidade de ocupação pelos aprovados no concurso público. Não se podem aceitar, entretanto, diferenças desta natureza nos concursos para Magistratura, Ministério Público, Advocacia Geral da União, entre outros, em que se busca única e exclusivamente aptidão intelectual para o exercício destas funções, haja vista que não existem estudos científicos capazes de auferir diferença racional entre homens e mulheres.

Em contrapartida, é perfeitamente possível a diferenciação de sexo nas carreiras para policiais militares e civis, ocupantes das forças armadas, corpo de bombeiros militar, que, em virtude da nítida necessidade de determinado vigor físico, e, existirem estudos comprovando que em questão de condições biológicos, os homens possuem de fato capacidade física mais avantajada do que das mulheres, é perfeitamente viável a distinção de vagas entre eles, sem infringir os princípios da igualdade e razoabilidade, nem os dispositivos constitucionais aqui elencados.

Contudo, caso exista dúvida quanto os critérios discriminatórios, a solução deve sempre ser no sentido de não haver a possibilidade de discriminação, uma vez que a igualdade de direitos entre os sexos, não só, mas também com relação ao ingresso no serviço públicos, é direito fundamental guardado pela Constituição da República.


8 – Conclusão

O concurso público para escolha dos servidores da Administração Pública deve se pautar por regras previstas no edital do certame que vincula tanto a tomadora do serviço como aqueles candidatos às vagas previstas. Da mesma forma, devem ser observados durante todos os atos da elaboração do concurso público, os princípios constitucionais aplicáveis ao Direito Administrativo, em especial aos princípios da igualdade, proporcionalidade e legalidade.

Nessa esteira, temos que a isonomia deve ser respeitada para todos os cidadãos, permitindo o livre acesso destes aos cargos públicos em igualdade de condições, não obstante a possibilidade de discriminações para se atingir a verdadeira isonomia jurídica. Igualmente, deve haver pela Administração Pública adequação de seus atos para que se busque da maneira mais eficiente e razoável a finalidade pretendida, punindo os excessos e extirpando as truculências desnecessárias. Com o mesmo objetivo de frear as atitudes discricionárias da Administração, bem como permitir a segurança jurídica com a previsibilidade de suas atitudes, explicitamos de maneira sintética o princípio da legalidade.

Desta maneira, pode-se concluir que os concursos públicos visam de forma sistemática buscar para a Administração Pública, dentre aqueles servidores que se encontram em condições de igualdade, o mais apto a desenvolver a função pública posta em disputa, mediante a realização de seleção de provas ou provas e títulos, visando, com isso, a aplicação incondicional do princípio da eficiência no serviço público, haja vista que o vencedor do certame desenvolverá de melhor forma o cargo almejado.

Todavia, os concursos públicos possuem diversas particularidades derivadas do procedimento administrativo, que podem ensejar divergência entre os candidatos, insurgindo assim a necessidade de provocação do poder judiciário no intuito de buscar a declaração dos direitos daqueles litigantes.

Conforme demonstrado, os casos mais comuns postos a apreciação do judiciário, versam sobre os exageros da Administração em exigir de forma desproporcional determinadas características dos candidatos, bem como realizar discriminações exorbitando a isonomia dos concorrentes, tais como, a vedação de tatuagens e a discriminação em razão do sexo dos candidatos.

No tocante a vedação de candidatos com tatuagens, conclui-se que a Administração deve pautar pelo princípio da proporcionalidade, quando na busca dos concorrentes a determinados cargos públicos. Referida vedação, encontra resquícios do moralismo passado, não mais admitido nas sociedades contemporâneas. Todavia, deve-se observar qual função desempenhará o futuro contratado da Administração, verificando se a tatuagem existente em seu corpo impede o regular exercício desta, ou põe a prova a moralidade administrativa. Casos que não preencham estes requisitos devem ser perseguidos pelo Poder Judiciário aplicando para a solução da contenda o princípio da proporcionalidade, haja vista que não é razoável anular candidato que preencheu todas as especificações prescritas para a função almejada, em virtude, exclusivamente, de possuir simples desenho epidérmico, uma vez que tal fator não impede o desempenho das atividades administrativas.

Em outra quadra, a discriminação dos candidatos em razão do gênero a que pertençam, encontra obstáculo no princípio da igualdade, uma vez que é obrigação da Administração permitir o livre acesso aos cargos públicos em igualdade de condições a todos os cidadãos. Entretanto, referida discriminação pode ser aplicada, também dependendo da função que exercerá o aprovado no concurso correspondente. Devem as autoridades responsáveis pelo certame, trazer de forma específica a obrigatoriedade de referido cargo somente ser ocupado por homem ou mulher, demonstrando que o não cumprimento de tal requisito inviabiliza o exercício das atividades que irão desempenhar os aprovados, bem como afeta de forma significativa sua eficiência.

De toda forma, a consagração definitiva dos concursos públicos como o meio mais eficaz para se preencher os princípios da isonomia e da eficiência administrativa, somente terá real significado quando os órgãos responsáveis pela fiscalização das funções do Estado, Ministério Público, Poder Judiciário e Tribunais de Contas, atuarem com o rigor e imparcialidade inerentes as suas naturezas constitutivas, extinguindo as vias oblíquas de contratação derivadas dos supostos cargos comissionados, que servem de moeda de troca na busca de votos e reeleição de políticos corruptos, prejudicando o funcionalismo público, uma vez que tira a seleção dos melhores para a atuação perante o serviço público, desvirtuando toda a finalidade da Administração, a saber, servir a coletividade na busca incansável pelo real interesse público.


9 – Referências Bibliográficas

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Notas

[1] MOTTA, Fabrício. Direitos Fundamentais e concurso público. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Edição Especial, ano – XXVIII: biênio 2009-2010, pp. 68-85. Disponível em: <http://200.195.70.14/Revista/Revista/RetornaRevista/401>. Acesso em: 02 de agosto de 2011.

[2] Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: [...] XIV. Todo o cidadão pode ser admitido aos Cargos Públicos Civis, Políticos, ou Militares, sem outra diferença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.

[3] Art. 73. Os cargos públicos civis ou militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as acumulações remuneradas.

[4] Art. 156. O Poder Legislativo organizará o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo aos seguintes preceitos desde já em vigor: [...] b) a primeira investidura nos cargos de carreira far-se-á mediante concurso de provas ou de títulos.

[5] Art. 186 A primeira investidura em cargo de carreira e em outros que a lei determinar efetuar-se-á mediante concurso, precedendo inspeção de saúde.

[6] Art. 97. Os cargos públicos serão acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei. § 1° A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei. § 2° Prescindirá de concurso a nomeação para cargos em comissão, declarados em lei, de livre nomeação e exoneração.

[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 526.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro – 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 76.

[9] Hely Lopes Meirelles classifica os agentes públicos em cinco categorias: agentes políticos, agentes administrativos, agentes honoríficos, agentes delegados e agentes credenciados. Já Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Celso Antônio Bandeira de Mello, classificam os agentes públicos em três categorias: agentes políticos, servidores públicos e particulares em colaboração com o Poder Público.

[10] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 27 de jul. 2011.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 476.

[12] MEDAUAR, Odete, Direito Administrativo Moderno – 15. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 283.

[13] MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 477.

[14] CANOTILHO, 1989, apud PEIXINHO, Manoel Messias. Princípios Constitucionais da Administração Pública. in PEIXINHO, Manoel Messias ; GUERRA, Isabella Franco ; FILHO, Firly Nascimento Filho. Os Princípios da Constituição de 1988 – 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumes Júris, 2006, p. 516.

[15] MEDAUAR, Odete, op. cit., p. 129.

[16] Idem, Ibidem. mesma página.

[17] PEIXINHO, Manoel Messias, op. cit., p. 528.

[18] DEBBASH, Charles, 1976, apud PEIXINHO, Manoel Messias, op. cit., p. 528.

[19] BRASIL. Lei nº 9.784/99, Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm>. Acesso em: 28 de jul. 2011.

[20] MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 89.

[21] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 81.

[22] MEIRELLES, 2011.

[23] Idem, op. cit., p. 95.

[24] MEDAUAR, 2011.

[25] Idem, Ibidem.

[26] MARINHO, Josaphat, 1992, apud CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. – 17. ed., ver. atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 695.

[27] Idem, Ibidem. mesma página.

[28] Idem, Ibidem. mesma página.

[29] BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio, 1990, apud CARVALHO, Kildare Gonçalves. op. cit., pp. 696-697.

[30] MAIA, Márcio Barbosa ; QUEIROZ Ronaldo Pinheiro de. O regime jurídico do concurso público e o seu controle jurisdicional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 37.

[31] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 8ª edição. São Paulo: Malheiros Editore, p. 65/66.

[32] Ver também item 6.

[33] MELO, Celso Antônio Bandeira de, 1984, apud MAIA, Márcio Barbosa ; QUEIROZ Ronaldo Pinheiro de. Op. cit., p. 26.

[34] Idem, Ibidem. p. 26/27.


ABSTRACT: The public tender aims to select the best public career. However, this selection is subject to constitutional principles. Thus, entry restrictions based on gender or tattoo must observe the principles of proportionality, equality and legality.

KEY WORDS: Public Tender, Legality, Equality, Proportionality


Autor

  • Antônio Rodrigues Miguel

    Advogado integrante do escritório Tayrone de Melo Advogados, pós-graduado em Direito Administrativo e Constitucional pela Puc-GO, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro, pós-graduado em Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás. Membro da comissão de Direito Digital e Informática da OAB/GO e da Comissão Direito do Consumidor da OAB/GO, membro do IGDD – Instituto Goiano de Direito Digital.

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Informações sobre o texto

Publicado na revista Prática Jurídica, Editora Consulex, Ano X, nº 116, 30 de novembro de 2011.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIGUEL, Antônio Rodrigues. As discriminações nos concursos públicos e os princípios constitucionais do Direito Administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3486, 16 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23465. Acesso em: 23 abr. 2024.