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Crime de embriaguez ao volante: tipo penal, tipicidade, classificação e consequências da nova redação

Crime de embriaguez ao volante: tipo penal, tipicidade, classificação e consequências da nova redação

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O presente trabalho pretende analisar o tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro dado pela Lei 12.760/2012, com ênfase na sua tipicidade, tipo penal, classificação e consequências jurídicas da nova redação.

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro dado pela Lei 12.760/2012, com ênfase na sua tipicidade, tipo penal, classificação e consequências jurídicas da nova redação.


1 INTRODUÇÃO 

A Lei n. 12.760 alterou, mais uma vez, a redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Pela redação original, o crime consistia em conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem. A partir da primeira alteração dada pela Lei 11.705/2008, o fato típico passou a ser conduzir veículo estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de outra substância psicoativa que determine dependência.

A nova redação prevê como crime conduzir veículo com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. Além disso, foi acrescentado o parágrafo primeiro, segundo o qual as condutas incriminadoras serão constatadas por concentração alcoólica determinada, ou por sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora.

Para o setor repressivo estatal, o artigo 306, com a redação dada pela Lei 12.760/2012, configura crime de perigo abstrato puro, pelo qual bastaria a simples constatação da presença de álcool no sangue ou no ar alveolar, ou de sinais diversos de embriaguez, para ser possível presumir a capacidade psicomotora alterada, prescindindo de qualquer constatação sobre a ocorrência de perigo efetivo. Entendem, ainda, que o parágrafo primeiro faz parte da figura típica determinada pelo caput do mencionado dispositivo.

Na opinião de defensores de réus e condenados e de boa parte da doutrina penalista, contando com adesão de alguns Tribunais do país, a simples verificação da presença de álcool ou de outros sinais é insuficiente para tipificar a conduta, sendo necessária a comprovação de que a ingestão de substâncias psicoativas tenha efetivamente alterado a capacidade psicomotora do condutor. Vislumbra-se, assim, um crime de perigo abstrato de perigosidade real, além de reconhecer que o parágrafo primeiro estabelece apenas situações que possam servir como meios de prova, não fazendo parte da figura típica do caput.

Com arrimo nestas premissas, sem a pretensão de esgotar o tema, o presente trabalho objetiva estudar, a partir da análise das redações legais anteriores, dos debates doutrinários e de posições judiciais, o tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro dado pela Lei 12.760/2012, com ênfase na sua tipicidade, tipo penal e classificação, buscando-se discernir aquilo que, efetivamente, compõe a previsão delituosa e o que é necessário para sua verificação. Visa, por fim, entender as consequências jurídicas geradas pelo dispositivo modificado.


2 AS REDAÇÕES ANTERIORES DO ARTIGO 306 DO CTB 

O artigo 306 apresentava originalmente o seguinte teor: “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.

Percebe-se, primeiramente, que o dispositivo não fazia qualquer referência quantitativa sobre a presença de álcool ou de produtos similares, mas apenas menção qualitativa, evidenciada pela expressão “sob a influência”. Sendo assim, a presença de álcool, por exemplo, necessária à constatação da tipicidade, deveria ser suficiente ao ponto de determinar o modo de condução do motorista, não bastando a evidência de mera ingestão para incidência do tipo.

Além disso, a referida lei consignou a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, estabelecendo a classificação do fato em questão como crime de perigo concreto. Ou seja, a condução do veículo deveria ser influenciada pelo álcool, ou outra substância, e dotada de uma anormalidade apta a gerar um perigo concreto, efetivo, expondo a risco de dano a segurança de alguém. Assim, de acordo com as lições clássicas da doutrina, para a consumação do delito em comento, embora prescinda da ocorrência de dano, deveria haver uma exposição do bem jurídico a perigo de dano, e a situação de perigo deveria ser concreta, real, efetiva, comprovada, não bastando a mera presunção.

Após a edição da Lei 11.705/2008, o artigo 306 do CTB passou a ter a seguinte composição: “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

Constata-se, inicialmente, que o diploma citado retirou da norma, naquilo que toca especificamente ao álcool, a expressão “sob influência”, estabelecendo, agora, um critério quantitativo. Ainda, retirou a dicção “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. Assim, para a ocorrência do tipo passou a ser suficiente a mera verificação da quantidade de álcool exigida, sem mais indagar a sua capacidade de determinar a conduta anormal do motorista. Também foi eliminada a exigência de produção de um risco efetivo, real, prescindindo da comprovação de perigo concreto. Desse modo, a norma passou a ser classificada como crime de perigo abstrato puro ou presumido, consumando-se mesmo sem a criação de situação de risco para quem quer que fosse.

A aplicação do artigo 306 alterado pela Lei 11.705/2008 esbarrou em um obstáculo muito importante: o princípio da não autoincriminação. Isso porque, para aferir o critério quantitativo do tipo penal, o motorista deveria ser submetido ao teste de alcoolemia, produzindo prova contra si mesmo. Como ninguém é obrigado a esta produção, muitos condutores, sabidamente, se recusavam a fazer o exame e, portanto, não poderiam ser incriminados, tendo em vista a impossibilidade de comprovação do teor alcoólico exigido pelo tipo.

A partir disto, visando o legislador a obter os efeitos pretendidos com a primeira alteração do artigo 306, modificou, mais uma vez, este dispositivo, através da Lei 12.760/2012, dando-lhe nova redação, não menos sujeita, porém, a questionamentos sobre sua tipicidade, classificação e aplicação.


3 A NOVA REDAÇÃO 

O artigo 306 do CTB passou a ter o seguinte teor: “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.

Inovou, ainda, ao positivar o parágrafo primeiro: “as condutas previstas no caput serão constatadas por: I- concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou II- sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora”.

Como já dito, para os agentes da repressão estatal, este artigo configura crime de perigo abstrato puro. Entendem, ainda, que o parágrafo primeiro faz parte da figura típica determinada pelo caput do mencionado dispositivo. Na opinião jurídica de defensores de réus e condenados e de boa parte da doutrina penalista, contando com adesão de alguns Tribunais do país, a simples verificação da presença de álcool ou de outros sinais é insuficiente para tipificar a conduta, sendo necessária a comprovação de que a ingestão de substâncias psicoativas tenha efetivamente alterado a capacidade psicomotora do condutor. Vislumbra-se, assim, um crime de perigo abstrato de perigosidade real, além de reconhecer que o parágrafo primeiro estabelece apenas situações que possam servir como meios de prova, não fazendo parte da figura típica do caput.

Para que seja possível analisar qual das correntes melhor se adequa aos anseios de um Estado Democrático de Direito, é necessária uma abordagem correta sobre o tipo penal trazido pelo artigo 306, verificando-se quais os elementos que dele realmente fazem parte, de modo a indicar precisamente a conduta que o dispositivo incriminador deseja reprimir.

Antes de adentrar, porém, ao exame do tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é importante, para melhor compreensão do tema, uma breve abordagem sobre o princípio da legalidade e a doutrina da tipicidade.

3.1 Legalidade, Tipo Penal e Tipicidade 

O princípio da legalidade vem insculpido no artigo 1º do Código Penal e no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Segundo Greco (2010), o princípio da legalidade possui quatro funções fundamentais: a) proibir a retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia); b) proibir a criação de crimes e penas pelos costumes (nullum crimen nulla poena sine lege scripta); c) proibir o emprego da analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta); d) proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa).

A maior parte da doutrina penalista brasileira orienta-se no sentido de não haver diferença conceitual entre princípio da legalidade e princípio da reserva legal. Capez (2010), contudo, vai de encontro à maioria, defendendo que o princípio da legalidade é gênero composto de duas espécies: reserva legal e anterioridade penal. Na verdade, o autor desenvolve as mesmas lições de Greco, embora sob diferentes enfoques.

Pelo princípio da reserva legal, somente a lei, em seu sentido mais estrito, pode definir crimes e cominar penalidades. Nenhuma outra fonte subalterna pode gerar a norma penal, uma vez que a reserva de lei proposta pela Constituição é absoluta, e não meramente relativa. Assim, “somente a lei, na sua concepção formal e estrita, emanada e aprovada pelo Poder Legislativo, por meio de procedimento adequado, pode criar tipos e impor penas” (CAPEZ, 2010, p. 60).

Ainda de acordo com a reserva legal, aduz o autor que a lei penal deve ser precisa, uma vez que um fato só será considerado criminoso se perfeitamente correspondente ao descrito pela norma. A legalidade exige que a lei defina a conduta delituosa em todos os seus elementos e circunstâncias, a fim de que somente no caso de integral correspondência possa o agente ser punido. Desse modo, fica vedado o uso da analogia in malam partem.

A reserva legal impõe, também, que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com tipos genéricos, demasiadamente abrangentes, através de expressões vagas, abertas e de sentido duvidoso, capazes de alcançar qualquer comportamento humano.

O último aspecto da reserva legal se refere ao seu conteúdo material. Assim, o Direito Penal não pode ser destinado à proteção de bens desimportantes, ou à imposição de convicções éticas de certa e definida moral oficial, nem à punição de atitudes internas, de opções pessoais, de posturas diferentes.

Deve ser buscado, segundo Capez (2010) um conceito material, ontológico de crime, segundo o qual somente possam ser consideradas pelo legislador como delituosas as condutas que efetivamente coloquem em risco a existência da coletividade.

A anterioridade penal, por sua vez, preconiza ser necessário que a lei já esteja em vigor na data em que o fato é praticado (tempus regit actum). Um dos efeitos da anterioridade é a irretroatividade, pela qual a lei penal é editada para o futuro e não para o passado.

Por imposição do princípio da legalidade, o legislador, quando quer impor ou proibir condutas sob ameaça de sanção, deve, obrigatoriamente, valer-se de uma lei. Quando a lei em sentido estrito descreve a conduta (comissiva ou omissiva) com o fim de proteger determinado bem cuja tutela mostrou-se insuficiente pelos demais ramos do direito, surge o chamado tipo penal, composto por quatro elementos: conduta dolosa ou culposa, resultado, nexo causal e tipicidade,

Tipo, como o próprio nome diz, é o modelo, o padrão de conduta que o Estado visa impedir que seja praticada. É a descrição precisa do comportamento humano, feita pela lei penal. Quando alguém pratica uma ação que se amolda perfeitamente ao modelo previsto, surge outro fenômeno, chamado tipicidade, ou seja, a subsunção perfeita da conduta realizada com a descrita pelo tipo penal.

Esta adequação da ação ao tipo faz surgir a tipicidade formal ou legal, que deve ser perfeita, sob pena de ser o fato considerado atípico. Para Greco (2010, p. 152), quando se fala em subsunção, quer-se dizer que “por mais que seja parecida a conduta levada a efeito pelo agente com aquela descrita no tipo penal, se não houver um encaixe perfeito, não se pode falar em tipicidade”.

Greco (2010) traz o conceito de elementares do tipo penal, que são seus dados essenciais, sem os quais ocorre atipicidade absoluta ou relativa. A absoluta acontece quando falta uma elementar indispensável ao tipo, tornando a ação um indiferente penal, enquanto a relativa se dá quando a ausência de uma elementar desclassifica o fato para outra figura típica.

Capez (2010, p. 210-211) traz em sua obra o conceito de tipo e os elementos que o compõem:

O conceito de tipo, portanto, é o de modelo descritivo das condutas humanas criminosas, criado pela lei penal, com a função de garantia do direito de liberdade.

Na sua integralidade, o tipo é composto dos seguintes elementos: núcleo, designado por um verbo (matar, ofender, constranger, subtrair, expor, iludir etc.); referências a certas qualidades exigidas, em alguns casos, para o sujeito ativo (funcionário público, mãe etc.); referências ao sujeito passivo (alguém, recém-nascido etc.); objeto material (coisa alheia móvel, documento etc.), que, em alguns casos, confunde-se com o próprio sujeito passivo (no homicídio, o elemento “alguém” é o objeto material e o sujeito passivo); referências ao lugar, tempo, ocasião, modo de execução, meios empregados e, em alguns casos, ao fim especial visado pelo agente.

O autor divide os elementos do tipo em objetivos, normativos e subjetivos. Os primeiros referem-se ao aspecto material do fato. Existem concretamente no mundo dos fatos e só precisam ser descritos pela norma, como o objeto do crime, o lugar, o tempo, os meios empregados, o núcleo do tipo, entre outros.

Já os normativos são aqueles cujo significado não se extrai da mera observação, sendo imprescindível um juízo de valoração jurídica, social, cultural, histórica, política, bem como de qualquer outro campo do conhecimento humano. Aparecem sob a forma de expressões como “sem justa causa”, “indevidamente”, “documento”, “funcionário público”, “estado puerperal”, “ato obsceno”, “dignidade”, entre outras. Por essa razão, os tipos que contêm elementos normativos são considerados anormais, tendo em vista que alargam muito o campo de discricionariedade do legislador, perdendo um pouco de sua característica básica de delimitação.

Por fim, os elementos subjetivos são os que pertencem ao campo psíquico-espiritual e ao mundo da representação do autor. Encontram-se nos delitos de intenção. O legislador destaca uma parte essencial do dolo e a insere expressamente no tipo penal. Essa parte é a finalidade especial, que pode ou não estar presente na intenção do autor. Quando o tipo contém um elemento subjetivo, é necessário, para sua configuração, que o agente, além de realizar os elementos objetivos, aja com a finalidade especial descrita no modelo legal.

3.2 O Crime de Embriaguez ao Volante 

É possível perceber, de imediato, que o núcleo do tipo penal do artigo 306 do CTB é o verbo principal da descrição, ou seja, “conduzir”, que significa dirigir, colocar em movimento. Trata-se, como já visto, de um elemento objetivo do tipo, existindo concretamente no mundo dos fatos e independendo de juízo de valoração para descobrir o seu alcance. Este núcleo refere-se, obviamente, ao “veículo automotor”, isto é, movimentá-lo a partir do acionamento de seus mecanismos.

Como último elemento objetivo do tipo em tela tem-se a ingestão de “álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência”. Por evidente, deve o acusado ter ingerido bebida alcoólica ou ter feito uso de produto análogo.

A polêmica atual em torno do artigo 306 refere-se aos seus elementos normativos, quais sejam, “capacidade psicomotora alterada” e “em razão da influência”. E por serem normativos, são expressões que requerem do intérprete uma valoração para que o seu significado e o seu alcance sejam definidos e delimitados.

É necessário, primeiramente, que se estabeleça o efeito que o álcool ou as substâncias psicoativas causam na condução realizada pelo agente infrator. Neste sentido, o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

Não basta, para a configuração adequada, a constatação da substância ilícita em si, porém, sobretudo, que o condutor, pelo seu uso, estivesse sob a influência dela, atestado por profissional habilitado mediante exame adequado. Não se pode deslizar no imaginário de que a maconha foi utilizada e que, por si, tenha causado influência, pois se sabe que o THC depende de uma concentração específica (TJSC, Autos de Ação Penal 023.09.032443-1, da Capital, rel. Juiz Alexandre Morais da Rosa, j. 5-11-2009).

É decisivo avaliar a forma de condução de veículo automotor, porquanto, segundo Bem e Gomes (2013, p. 56), “todo aquele que consegue controlar o perigo do consumo prévio de álcool ou das drogas não deve responder pelo delito, pois não criou contexto de risco potencial aos bens jurídicos [...]”. O comportamento do condutor deve estar, portanto, influenciado, determinado ou animado pelo produto ingerido.

Ainda, a influência da ingestão do álcool ou de outra substância deve ser suficiente para alterar a capacidade psicomotora do condutor. Capacidade psicomotora alterada significa a afetação das faculdades psicofísicas de percepção, autocontrole e reação. Exige-se, portanto, que o consumo diminua efetivamente as faculdades do agente para a condução do veículo. Mesmo tendo ingerido bebida alcoólica, por exemplo, e estando por ela influenciado, caso o agente não apresente a sua capacidade psicomotora alterada, a sua conduta não se amolda perfeitamente ao artigo 306 do CTB, sendo, assim, atípica.

De acordo com o parágrafo primeiro do artigo 306, a influência e a alteração da capacidade psicomotora podem ser configuradas pela concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, e, ainda, por sinais que indiquem aquela alteração, na forma disciplinada pelo Contran.

Também o parágrafo segundo indica meios de prova, com o teor a seguir: “a verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

Conforme anteriormente relatado, os agentes da repressão estatal entendem que a mera constatação da concentração de álcool no sangue superior à quantidade mínima prevista pelo parágrafo primeiro do artigo 306 da Lei de Trânsito é suficiente para indicar a alteração da capacidade psicomotora do condutor em razão da influência da bebida. De acordo com este pensamento, o parágrafo primeiro faz parte do tipo penal previsto no caput do artigo mencionado.

Contudo, apesar das respeitáveis opiniões neste sentido, esta não é a interpretação mais adequada à figura típica em questão. Adéqua-se melhor, em respeito ao princípio da legalidade e às lições doutrinárias sobre tipicidade, bem como ao Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988, a exegese que vislumbra o parágrafo primeiro apenas como meio de prova para a verificação dos elementos normativos previstos no caput do dispositivo.

O setor doutrinário que defende a suficiência, por exemplo, da concentração de álcool igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar para presumir de forma absoluta o preenchimento dos elementos normativos acaba riscando do tipo penal as expressões “em razão da influência” e “alteração da capacidade psicomotora”, como se inservíveis fossem.

Assim, encaram a nova redação do artigo 306 da mesma forma como foi entendida a redação anterior, dada pela Lei 11.705/2008. Esta, sim, previu como elementar do tipo, inclusive com a sua inserção no caput, o critério meramente quantitativo, que era suficiente para a aferição da tipicidade. Desse modo, a interpretação sugerida por esta parte da doutrina penalista nega, ou parece não conseguir enxergar, a nova redação conferida pela Lei 12.760/2012.

Um fator que desconstrói os argumentos desta corrente é a própria disposição do artigo 306. Observa-se que o inciso I do parágrafo primeiro se refere a concentrações alcoólicas aferidas através de testes de alcoolemia, enquanto o parágrafo segundo afirma que os testes de alcoolemia servem como meios de prova, juntamente com outros tipos.

Portanto, um mesmo artigo não pode, esdruxulamente, encarar uma mesma situação como meio de prova e como elementar de um tipo penal. Isto não condiz com um ordenamento penal baseado no princípio da legalidade, que, como visto, prima pela descrição precisa e indubitável de uma conduta incriminadora.

Reforçando o entendimento de que o parágrafo primeiro vislumbra meios de prova, Bem e Gomes (2013, p. 152) afirmam que “onde está escrito ‘parágrafo 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por’, leia-se: ‘parágrafo 1º A embriaguez prevista no caput será constatada (comprovada) por’”. Isso porque as regras desse parágrafo são probatórias da embriaguez, não induzindo presunção. Além de comprovar a embriaguez, é necessário demonstrar a capacidade psicomotora alterada e a influência do álcool ou de outra substância sobre a forma de dirigir.

Bem e Gomes (2013) entendem que a regra do parágrafo primeiro é processual, enquanto a norma do caput é penal, não sendo possível confundir crime com a prova de um de seus requisitos. O campo processual não pode interferir na demarcação da tipicidade, pois o que está proibido está previsto no caput.

Sendo assim, a alteração da capacidade psicomotora deve ser aferida em cada caso concreto, pois pode acontecer que uma pessoa possa estar com concentração de álcool acima do permitido e continuar com a sua capacidade concreta inalterada.

A verificação caso a caso, portanto, é de suma importância porque, em direito penal, nada pode ser presumido contra o réu, o que violaria a presunção maior da inocência. O direito penal da ofensividade não admite tal situação. A prova da impregnação alcoólica não faz presumir os demais elementos do tipo, tendo em vista que o crime não se reduz a dirigir sob impregnação alcoólica, como ocorria na redação anterior.


4 CLASSIFICAÇÃO 

A corrente doutrinária, que começa a ser seguida por alguns Tribunais pátrios, mais condizente com os princípios penais da legalidade e da ofensividade classifica o crime de embriaguez ao volante como delito abstrato de perigosidade real. De acordo com esta posição, embora seja um crime de perigo abstrato, dispensando, assim, a comprovação de efetivo perigo, faz-se necessário que a conduta do agente, no caso concreto, tenha sido, ao menos, perigosa, excluindo-se a tipicidade daquela que sequer ofertou risco ao bem jurídico tutelado.

Dessa forma, mesmo que se admita que o parágrafo primeiro faça parte do tipo penal do artigo 306 e que a sua mera aferição já comprova as elementares normativas do caput, eventual conduta que apresente esta tipicidade formal não será verdadeiramente típica caso nenhum risco ofereça ao bem jurídico protegido pela descrição legal.

4.1 Os Bens Jurídicos Tutelados pelo Artigo 306 do CTB 

A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., que são os denominados bens jurídicos. Assim, seleciona e incrimina os comportamentos mais graves, capazes de colocar em risco aquilo que é tutelado.

De acordo com Capez (2010), segundo o princípio da ofensividade, não há crime quando a conduta não tiver oferecido ao menos um perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Seja esse risco abstrato ou concreto, o importante é que não se deve punir uma agressão em sua fase ainda embrionária. A função principal da ofensividade é a de “limitar a pretensão punitiva estatal, de maneira que não pode haver proibição penal sem um conteúdo ofensivo a bens jurídicos” (p. 43).

Para entender a atuação do princípio da ofensividade no tipo penal do artigo 306 e de que forma contribui para a sua classificação, é necessário entender qual o bem jurídico efetivamente tutelado pela descrição legal.

Muitos magistrados, na tarefa de analisar sobre qual bem jurídico recai a proteção do legislador, entendem que o artigo 306 do CTB contempla um bem jurídico coletivo representado pela incolumidade pública no aspecto da segurança viária ou segurança no trânsito.

Bem e Gomes (2013), no entanto, entendem que os verdadeiros bens jurídicos protegidos são a vida, a integridade física e o patrimônio. Segundo os autores, o bem jurídico deve estar fundamentado em base realista e não espiritual, pois a sua proteção não deve servir de substrato para a expansão da pena, mas, ao contrário, deve limitar o poder punitivo estatal. Sendo assim, não se pode falar em algo real em se tratando de incolumidade pública ou segurança viária. E essa posição foi sustenta pelo Supremo Tribunal Federal:

Habeas corpus. Penal. Delito de embriaguez ao volante. Art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Alegação de inconstitucionalidade do referido tipo penal por tratar-se de crime de perigo abstrato. Improcedência. Ordem denegada. [...] Na espécie, a proibição da conduta pela qual o paciente foi condenado objetiva, especialmente, combater e prevenir a ocorrência de delitos de trânsito que possam colocar em risco a incolumidade física ou até mesmo a vida dos indivíduos da coletividade ou provocar danos patrimoniais [...] (STF, Habeas Corpus 109.269/MG, 2ª T., rel. Min, Ricardo Lewandowski, j. 27-9-2011).

Admitir que o bem jurídico tutelado pelo artigo 306 é a segurança viária ou a incolumidade pública é transformar um crime de perigo em crime de dano, pois qualquer ação de risco no trânsito configuraria uma lesão à segurança do tráfego. Antecipa-se, assim, a própria lesão ao verdadeiro objeto de proteção.

4.2 Crimes de Perigo

Diversamente dos crimes de dano, nos quais se exige uma efetiva lesão ao bem jurídico protegido para sua consumação, os crimes de perigo apenas necessitam da possibilidade de dano, ou seja, a exposição do bem jurídico tutelado a um risco de lesão. A partir disto, é possível extrair a primeira lição: o crime previsto no artigo 306 do CTB é crime de perigo, uma vez que não exige a ocorrência do evento danoso sobre os bens jurídicos que protege (vida, integridade física e patrimônio), bastando a verificação do risco.

Capez (2010, p. 286-287) assim subdivide o crime de perigo:

[...] a) crime de perigo concreto, quando a realização do tipo exige a existência de uma situação de efetivo perigo; b) crime de perigo abstrato, no qual a situação de perigo é presumida, como no caso da quadrilha ou bando, em que se pune o agente mesmo que não tenha chegado a cometer nenhum crime; c) crime de perigo individual, que é o que atinge uma pessoa ou um número determinado de pessoas, como os dos arts. 130 a 137 do CP; d) crime de perigo comum ou coletivo, que é aquele que só se consuma se o perigo atingir um número indeterminado de pessoas, por exemplo, incêndio (art. 250), explosão (art. 251) etc.; e) crime de perigo atual, que é o que está acontecendo; f) crime de perigo iminente, isto é, que está prestes a acontecer; g) crime de perigo futuro ou mediato, que é o que pode advir da conduta, por exemplo, porte de arma de fogo, quadrilha ou bando etc.

É possível, assim, inferir que o crime do artigo 306 do CTB é de perigo abstrato, uma vez que o risco é presumível, baseado na prática da descrição legal, elaborada a partir da experiência do legislador. É importante ter em mente que os bens jurídicos tutelados pelo dispositivo são a vida, a incolumidade física e o patrimônio e que o perigo deve ser dirigido diretamente para esses bens, e não para a segurança viária ou a incolumidade pública.

4.3 Perigo Abstrato de Perigosidade Real: embriaguez ao volante

Enquanto crime de perigo abstrato, com risco dirigido à vida, à integridade física e ao patrimônio, Bem e Gomes (2013) vislumbram diversas tendências para conferir legitimação ao delito em análise.

Segundo os autores, na prática, há quem entenda a infração penal como um delito de perigo abstrato por se tratar de um delito formal. Essa corrente distingue crime formal de perigo, que é o crime de perigo abstrato, do crime material de perigo, que é o crime de perigo concreto. Os autores entendem que quem segue essa classificação apenas acompanha a vontade legislativa de punir por pura desobediência à norma de cuidado, sem considerar as circunstâncias do caso concreto, o que afronta as exigências de um Direito penal próprio de um Estado democrático de Direito.

A segunda tendência reside na classificação como crime de perigo abstrato de perigosidade concreta. Assim, as ações que geram um perigo provável aos bens jurídicos, em uma análise prévia, podem ser punidas quando os objetos protegidos entram no raio de ação da conduta ilícita, e o perigo decorreria unicamente de dirigir alcoolizado.

A terceira corrente enxerga o crime de perigo abstrato em comento como delito de perigo geral, pressupondo um comportamento geralmente perigoso segundo um juízo de probabilidade estatística. Refere-se a condutas de massa em setores de risco, nos quais é exigida a padronização de comportamentos para evitar infrações.

Por último, Bem e Gomes (2013) concebem a tendência mais moderna, qual seja, o crime de perigo abstrato com perigosidade real, nos quais se exige um resultado de risco para um concreto objeto de proteção, ou seja, para a vida, a integridade física e o patrimônio. Assim, algum bem jurídico deve entrar no raio de ação da real periculosidade da conduta, não sendo necessário haver vítima concreta, mas indeterminada.

O objetivo é excluir as ações que se amoldam à descrição legal quando, pelas circunstâncias como foram perpetradas, não resultarem perigosas para o bem jurídico. Neste sentido, encara-se o crime do artigo 306 do CTB não como delito de perigo abstrato puro, no qual a presunção é absoluta, mas como delito de perigo abstrato de perigosidade real, onde a presunção é relativa, admitindo prova em contrário, sendo necessário para a condenação que seja demonstrado que pelo menos um dos bens jurídicos tutelados (vida, integridade física, patrimônio) foi ameaçado, o que condiz com o princípio da ofensividade ao excluir condutas sem qualquer condão de agredir qualquer bem jurídico.

Cabette (2013) critica a classificação do crime de embriaguez ao volante como delito de perigo abstrato de perigosidade real, segundo a transcrição abaixo:

Indo direito ao ponto, pode-se afirmar com toda segurança que o neologismo “crime de perigo abstrato de perigosidade real” não passa de uma alteração do nome daquilo que é conhecido desde antanho como “crimes de perigo comum” em oposição aos “crimes de perigo individual”. Acontece que as classificações de “crime de perigo concreto e crime de perigo abstrato” por um lado; e “crime de perigo comum e crime de perigo individual” por outro, nada têm a ver entre si, de modo que podem existir crimes de perigo comum abstrato ou concreto. Já quanto aos crimes de perigo individual, geralmente estão ligados a perigo concreto não porque sejam uma mesma categoria, mas porque ao ser a conduta dirigida necessariamente a pessoa determinada, normalmente será exigida a criação de um perigo concreto. Enfim, essas denominações de perigo (comum/individual) (concreto/abstrato) não se confundem, já que cada uma delas se refere a um aspecto que em nada influencia naquele versado pela outra. São dicotomias independentes.

Assevera, ainda, o autor que essa nova categoria de crime nada mais é do que um palavreado vazio, falácia, que designa o crime de perigo comum, chamado, por meio de outro nome, para solucionar a questão do perigo abstrato versus perigo concreto, que nada lhe diz respeito.

Para Bem e Gomes (2013), porém, a categoria dogmática que se encaixa com perfeição ao novo tipo penal do artigo 306 é a do perigo abstrato de perigosidade real. Rompe-se, assim, a velha dicotomia entre o perigo abstrato e o concreto, nascendo um tercius. Assim, só haverá crime se houver a superação de um risco-base, retratado na conduta anormal. De acordo com os autores, é justamente a perigosidade da conduta anormal, previamente considerada, que levou o legislador a criminalizá-la.

Desse modo, não é suficiente provar a mera ingestão da substância para a consumação do delito (perigo abstrato), bem como não é preciso demonstrar que houve efetivo risco para bens ou pessoas certos e determinados (perigo concreto). Isso porque a nova redação do artigo 306 exige a comprovação da alteração da capacidade psicomotora com reflexo na condução anormal do motorista para que haja crime, não havendo presunção absoluta do perigo, cabendo prova em contrário. Também não é necessário que o risco seja comprovado efetivamente, como seria caso crime de perigo concreto fosse, razão pela qual faz parte dos crimes de perigo abstrato.

É permitido asseverar, então, que cabe à acusação, para possibilitar a condenação do agente, além de demonstrar a ocorrência de todas as elementares do caput do artigo 306, em especial os elementos normativos “em razão da influência” e “capacidade psicomotora alterada”, através dos meios probatórios previstos nos seus parágrafos primeiro e segundo, deve comprovar que houve um risco-base gerado pela condução do agente, ou seja, que algum bem jurídico tutelado pela figura típica – vida, integridade física ou patrimônio – tenha entrado no raio de ação da real periculosidade da conduta, sem que seja necessário, no entanto, haver vítima concreta, mas sim indeterminada.

Sendo assim, ainda que presentes, verificadas e aferidas todas as elementares do tipo, corroboradas com instrumentos probatórios suficientes, se não for demonstrado que da conduta originou-se um perigo básico, o fato é atípico, tendo em vista que não houve a mínima ofensividade aos bens jurídicos protegidos.

Isso porque o que caracteriza fundamentalmente o injusto penal é a exigência (ao lado de um desvalor da ação) de um desvalor do resultado, conforme visto anteriormente. Para a intervenção penal, sempre será indispensável uma afetação ao bem jurídico, ou seja, um contato, mínimo que seja, entre a ação perigosa e o bem protegido. Mesmo presente a tipicidade formal e parte da tipicidade material (desvalor da ação), a tipicidade penal não é completa, pois falta o complemento daquela tipicidade material, isto é, o desvalor do resultado. Não se pode punir, portanto, condutas que gerem um resultado inócuo.


5 CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS 

O posicionamento defendido por Bem e Gomes começa a ser adotado pelos Tribunais brasileiros, dos quais o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é exemplo:

[...] O réu é confesso. E a confissão é corroborada pelos depoimentos dos PM’s que atenderam a ocorrência e pelo resultado do teste do etilômetro, que indicou concentração de álcool muito superior ao limite legal: o triplo. A Lei 12.760/2012 alterou o disposto no artigo 306 do CTB. O tipo já não se realiza pelo simples fato de o condutor estar com uma determinada concentração de álcool no sangue e sim por ele ter a capacidade psicomotora alterada em razão da influência do álcool, seja ela qual for. A concentração que antes constituía elementar do tipo passou a ser apenas meio de prova dessa alteração. O resultado do exame constitui presunção relativa, em um sentido ou noutro. Houve descontinuidade típica, mas não abolitio criminis. Para os processos que ainda se encontrem em andamento, mormente as condenações impostas antes da vigência da alteração pendentes de recurso, como no caso dos autos, deve-se verificar se há evidência da alteração da capacidade psicomotora, sem o que não pode ser mantida a condenação. Caso em que há evidência nesse sentido. Condenação mantida. Penas aplicadas com parcimônia. Sentença confirmada. Recurso desprovido (TJRS, Apelação Crime nº 70052903184, Terceira Câmara Criminal, rel. Des. João Batista Marques Tovo, j. 27-6-2013).

A primeira consequência do posicionamento adotado reside na questão interpretativa da lei penal. A exegese de fatos e normas penais deve respeitar o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio maior da presunção de inocência (faz-se aqui, também, uma interpretação conforme a Constituição). A uma, porque o princípio da inocência somente é superado com a comprovação de fatos e elementares típicas, jamais por presunções que prejudiquem o réu. A duas, pois, em caso de dúvida quanto à interpretação de uma normal penal, deve-se privilegiar aquela favorável ao agente.

Assim, diante da opção de admitir o crime de embriaguez ao volante como delito de perigo abstrato puro (presumido), no qual basta a mera ingestão para configurar a tipicidade, é substancialmente mais favorável ao agente a interpretação proposta por este trabalho, rezando ser necessária a comprovação de todas as elementares e a ocorrência de um risco-base para possibilitar a condenação, perante a insuficiência de critérios meramente quantitativos.

Outra possibilidade exegética para o crime de embriaguez ao volante é adotar a interpretação restritiva do tipo penal. Uma vez que o tipo penal do artigo 306 do CTB não traz palavras que permitam a ampliação do seu alcance e não é composto de uma descrição simplificada que permita declarar o seu sentido, é oportuno interpretá-lo restritivamente. Isso porque os elementos normativos inseridos pela nova redação (“em razão da influência” e “capacidade psicomotora alterada”) requerem a sua prova, aumentando os requisitos imprescindíveis para a incriminação do fato e reduzindo o alcance da norma, uma vez que um número inferior de condutas, em comparação com o critério quantitativo da redação anterior, será abarcado.

Um importante efeito da visão adotada por este estudo é a aplicação da regra da novatio legis in mellius, prevista no parágrafo único do artigo 2º do Código Penal Brasileiro (“a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”).

Assim, para fatos ocorridos antes do advento da Lei 12.760/2012, que resultaram em condenações baseadas simplesmente no critério quantitativo da dosagem alcoólica, a nova redação, mais benéfica ao agente, deve ser aplicada, ainda que operado o trânsito em julgado, se, à época do processo-crime, não ficou demonstrada a alteração da capacidade psicomotora em razão da influência de álcool ou substância psicoativa e/ou a ocorrência de risco-base para os bens jurídicos protegidos, resultando na absolvição do condenado.

Já é possível visualizar a aplicação retroativa da nova redação do artigo 306 pelos Tribunais Pátrios, adotando o entendimento de ser mais benéfica aos condenados ou acusados antes do advento da Lei 12.760/2012:

Apelação. Embriaguez ao volante. Alteração da capacidade psicomotora. Lei 12.760/12. Retroatividade. Com a alteração do artigo 306 da Lei 9503/97 pela Lei 12.760/12, foi inserida no tipo penal uma nova elementar normativa: a alteração da capacidade psicomotora. [...] Assim, a adequação típica da conduta, agora, depende não apenas da constatação da embriaguez (seis dg de álcool por litro de sangue), mas, também, da comprovação da alteração da capacidade psicomotora pelos meios de prova admitidos em direito. Aplicação retroativa da Lei 12760/12 ao caso concreto, pois mais benéfica ao réu. Ausência de provas de alteração da capacidade psicomotora, notadamente em razão do depoimento do policial responsável pela abordagem, que afirmou que o réu conduzia a motocicleta normalmente. Absolvição decretada (TJRS, 3ª Câmara Criminal, rel. Des. Nereu Giacomolli, j. 09-5-2013).

Para os fatos ocorridos após a edição da Lei 12.760/2012, deve o magistrado aplicar a nova redação do artigo 306 de acordo com a interpretação mais benéfica, refutando condenações com bases em critérios meramente quantitativos e absolvendo os acusados nos casos em que todas as elementares do tipo não forem demonstradas suficientemente. Exemplificando, os recentes julgados a seguir:

[...] Conforme se verifica, a denúncia não demonstrou a anormalidade realizada pela recorrente na condução do veículo, não se subsumindo na norma descrita no art. 306 da Lei 9503/97 como infração penal, mas sim como infração administrativa, prevista no artigo 165 da mesma Lei. Decisão que não merece reparo porque a denúncia foi oferecida sem a devida exposição do fato criminoso e ausente a justa causa para a deflagração da ação penal, já que a peça inaugural não descreveu o comportamento que caracterizaria a anormalidade na direção do veículo, indispensável para se falar em ofensa ao bem jurídico tutelado criminalmente. Estar "sob a influência", como era exigido pelo texto original do artigo 306-CTB, é condição essencial para a configuração do crime em análise. Deve-se, obrigatoriamente, considerar se o agente está "sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem", como era previsto anteriormente e que ainda deve imperar. RECURSO DESPROVIDO (TJRJ, Recurso em sentido estrito 0025765-11.2013.8.19.0002, 1ª Câmara Criminal, rel. Desa. Sandra Kayat Direito, j. 8-10-13).

Apelação Criminal. Embriaguez ao volante. Sentença de absolvição sumária. Recurso do Ministério Público. Diferentemente do texto anterior, a nova lei exige a prova da direção que coloque em risco o bem jurídico tutelado. Ônus que cabe a acusação. Precedentes desta Câmara. [...] Desprovimento do recurso (TJRJ, Apelação Criminal 0072636-98.2013.8.19.0067, 1ª Câmara Criminal, rel. Desa. Katya Monnerat, j. 26-9-13).

[...] para o reconhecimento do crime da lei de trânsito referido não basta que o motorista esteja embriagado, impondo-se a comprovação de que ele estava dirigindo sob a influência daquela substância, o que se manifesta numa direção anormal que coloca em risco concreto a segurança viária que é o bem jurídico protegido pela norma. Omissa a denúncia em relação a tal elementar, deve ser reconhecida a sua inépcia. Adoção da interpretação conforme a Constituição, não devendo a norma ser declarada inconstitucional "quando, entre interpretações plausíveis e alternativas, exista alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição." No caso concreto, porém, a denúncia narrou e a prova carreada aos autos no curso da instrução confirmou que o acusado dirigia de forma perigosa, em zigue-zague, também ficando demonstrado que se encontrava embriagado na ocasião, o que é suficiente para tipificar o delito respectivo. Pena aplicada corretamente. Recurso desprovido (TJRJ, Apelação Criminal 0010320-72.2010.8.19.0061, 1ª Câmara Criminal, rel. Des. Marcus Basilio, j. 17-9-13).

Percebe-se, assim, que a nova interpretação do tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro e a classificação proposta (crime de perigo abstrato de perigosidade real), bem como os seus efeitos, como aplicação aos novos casos e retroatividade benéfica aos casos pretéritos, são tendências evidentes no seio jurisprudencial brasileiro.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O princípio da legalidade e as análises sobre tipo penal e tipicidade permitem afirmar que somente haverá crime quando existir perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão penal dada por lei em sentido estrito, que deve ser taxativa, trazendo todos os elementos e circunstâncias no corpo do tipo.

Assim, somente haverá o crime tipificado no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro se o comportamento do condutor apresentar todas as elementares do caput do dispositivo, especialmente os elementos normativos (“capacidade psicomotora alterada em razão da influência”), sendo insuficiente a mera constatação de teor alcoólico para a condenação do agente. Isso porque o parágrafo primeiro funciona como meios de prova (norma processual) e não como elementar do tipo (norma penal). Também porque não cabe a uma resolução, que não é lei em sentido estrito, determinar o que será tido ou não como crime.

Ainda, os bens jurídicos tutelados pelo crime de embriaguez ao volante são a vida, a integridade física e o patrimônio, e não a segurança viária e a incolumidade pública. Portanto, a agressão da conduta dita delituosa deve ser voltada para aqueles bens, e não para os últimos, sob pena de ocorrer a criminalização de qualquer conduta irregular no trânsito.

A partir disso, o artigo 306 do CTB pode ser classificado como delito de perigo abstrato de perigosidade real. Assim, não basta a presença de todos os elementos, devendo a conduta, para configurar o crime, gerar ao menos um risco-base para os bens jurídicos tutelados (vida, integridade física, patrimônio). Isso porque o perigo abstrato do tipo em questão não é puro, presumido, absoluto, mas de perigosidade real, devendo ser demonstrado que pelo menos um dos bens jurídicos entrou no raio de perigo da conduta, sofrendo um risco-base, embora seja prescindível a comprovação de vítima certa e determinada. Admite-se a prova em contrário da presunção do risco em nome do princípio da ofensividade, que impugna tipificações e condenações de fatos com resultados inócuos.

Destarte, mesmo provada a ingestão de álcool ou outra substância psicoativa e a alteração da capacidade psicomotora, se da conduta não sobrevier nenhum perigo sequer aos bens tutelados, o fato é atípico.

Como consequência da adoção dessa tese, alguns Tribunais brasileiros têm absolvido condenados por fatos ocorridos antes do advento da Lei 12.760/2012, entendendo que a nova redação lhes é mais benéfica, tendo em vista que, à época da instrução criminal, não ficaram evidenciados a alteração da capacidade psicomotora do condutor e/ou o risco-base gerado pelo fato, não bastando para a manutenção da condenação a mera constatação da impregnação alcoólica. Além disso, estas proposições também têm sido aplicadas aos fatos gerados após a nova redação legal.

É importante ressaltar, ainda, que, em caso de dúvida do intérprete sobre qual exegese seguir, deve-se privilegiar aquela que favoreça ao acusado, em nome do princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção da inocência, ou interpretar o dispositivo restritivamente, reduzindo as situações de incidência e alcance da norma.


REFERÊNCIAS 

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______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Criminal 70052903184. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/jurisprudencia>. Acesso em 30 de outubro de 2013.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A falácia do denominado “crime de perigo abstrato de perigosidade real”. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3567, 7 abr. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24134>. Acesso em 4 de setembro de 2013.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.


Autor

  • Thiago Meneses Rios

    Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Experiência anterior como Assessor de Juiz em Vara Criminal. Experiência como estagiário da Defensoria Pública Estadual do Piauí.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Thiago Meneses. Crime de embriaguez ao volante: tipo penal, tipicidade, classificação e consequências da nova redação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3919, 25 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27033. Acesso em: 26 abr. 2024.