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Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana

Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana

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A jurisprudência do TST sobre a questão da embriaguez habitual como justa causa para dispensa do empregado começou a se modificar com o fortalecimento do Neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade humana no Direito brasileiro.

“Nossa dignidade não está no que fazemos, mas no que compreendemos”.

George Santayana

Resumo: O presente trabalho teve por objetivo discutir o uso judicial da noção de dignidade humana, em especial sua aplicação quanto ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a rescisão do contrato de trabalho. Para tanto, buscou-se inicialmente desvelar as raízes históricas dessa noção, que se engendrou em detrimento da antiga ideia de honra. Em seguida, com apoio em escritos de autores como J. Habermas, R. Dworkin, R. Posner e outros, procurou-se apontar alguns dos problemas e virtudes relacionados ao seu emprego judicial – emprego cada vez mais comum com o fortalecimento do Neoconstitucionalismo. Por fim, analisou-se o uso judicial da noção de dignidade na jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho) produzida entre 1999 e 2013, no que diz respeito ao binômio alcoolismo e trabalho. Algumas das conclusões a que se chegou foram a de que o Neoconstitucionalismo pode ser entendido, em parte, como uma tentativa de resposta do Direito ao desafio moral ocasionado pelo surgimento da noção de dignidade humana; a jurisprudência do TST, sobre a questão da embriaguez habitual como justa causa para dispensa do empregado, começou a se modificar com o fortalecimento do Neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade humana no Direito brasileiro (e não tanto com a decisão da Organização Mundial de Saúde, no sentido de entender o alcoolismo como doença); o posicionamento do TST quanto à não incidência do art. 482, “f”, da CLT no caso de empregado alcoolista, fruto ora explícito, ora implícito, da aplicação judicial da noção de dignidade humana, embora seja passível de algumas críticas (sobretudo para quem vê com ceticismo tanto a referida noção, quanto a pretensão de se fazer uma “leitura moral do Direito”), não implicou a criação de um novo direito, mas apenas invalidou a incidência do referido dispositivo a uma determinada situação de fato (configuração do alcoolismo); o posicionamento do TST, ao menos em alguns casos, pode estar em consonância com a noção de eficiência de Kaldor – Hicks, cara aos partidários da análise econômica do Direito, que estão dentre os maiores críticos contemporâneos do uso judicial do conceito de dignidade humana.

Palavras-chave: dignidade humana, honra, alcoolismo, trabalho, neoconstitucionalismo, análise econômica do Direito.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A bebida no Ocidente, o alcoolismo e o artigo 482, “f”, da CLT. 2. Dignidade Humana - a trajetória histórica. Ou: os homens sempre tiveram valor intrínseco? 2.1. Do conceito de honra ao conceito de dignidade humana. 3. A dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo. 3.1. Críticas à noção de dignidade humana. 3.3. Críticas aos críticos da noção de dignidade humana. 4. Dignidade, embriaguez habitual e trabalho nas decisões do TST. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.


Introdução

Com o final da Segunda Guerra Mundial e seus traumas, a noção de dignidade humana surge com força não apenas em uma miríade de documentos da Organização das Nações Unidas (sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos o mais famoso), como nas cerca de 40 Constituições Nacionais promulgadas desde então. É também mencionada em legislações que vão da biotecnologia ao direito do trabalho e direito internacional; em discursos políticos os mais variados e, recentemente, em decisões judiciais produzidas em países díspares como Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Brasil1.

No que tange à jurisprudência trabalhista brasileira, o princípio da dignidade humana sem dúvida tem sido bastante suscitado nos últimos anos, de forma implícita ou explícita, inclusive no que diz respeito ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a cessação do contrato de trabalho pelo empregador. Tem-se entendido, quanto a essa questão, que o empregado alcoolista sofre de uma doença (reconhecida como tal pela Organização Mundial de Saúde) e que sua dispensa, com fundamento no artigo 482, “f”, da CLT, implicaria afronta a sua dignidade humana. Tem havido, nesses casos, a aplicação de um princípio em detrimento da letra da lei, ainda que nem sempre de forma explícita.

A primeira questão que se pretende discutir neste trabalho é por que a noção de dignidade humana tem sido cada vez mais invocada nos últimos anos no âmbito do Direito (em contraposição ao quase total silêncio acerca dessa ideia antes da Segunda Guerra Mundial). Para tanto, far-se-á um breve histórico dessa concepção, tentando-se mesmo 'averiguar' se os homens sempre tiveram dignidade intrínseca. Em seguida, com espeque em autores como Ronald Dworkin e Richard Posner, tentar-se-á discutir sua aplicação judicial no âmbito do Neoconstitucionalismo, buscando-se apontar algumas de suas virtudes e limites. Por fim, analisar-se-á o papel da noção de dignidade humana na jurisprudência do TST acerca do binômio alcoolismo e trabalho.2


1. A bebida no Ocidente, o alcoolismo e o artigo 482, “f”, da CLT

Na primeira cena de Farrapo Humano, a câmera de Billy Wilder desliza por prédios e janelas da Nova York de 1945 de forma quase lânguida. Detém-se em uma janela em particular, não sem antes ter dito ao espectador que a história que ali começa poderia estar ocorrendo em qualquer outra.

Mas a janela em que a câmera se detém é a de Don Birman. Uma garrafa, presa a ela por um barbante, está em suspenso do lado de fora. Foi a maneira que Don encontrou para esconder o álcool do irmão, para saciar a sede tão logo esteja sozinho. Logo se vê que não é só a garrafa que está em suspenso. A vida de Don também está. Trata-se de um homem que, enfim, perdeu a crença em si. Mesmo a inabalável fé de Helen, a mulher que o ama, mais o exaspera do que o comove.

O título do filme de Billy Wilder em inglês, The lost weekend, menos dramático do que a versão brasileira, Farrapo humano, é mais exato em sua ironia: a película não trata de um fim de semana perdido, mas de uma vida quase perdida com a ajuda do álcool. No caso, a vida de Don, o escritor cuja inteligência e sensibilidade deram em nada e que vive, agora, às custas do irmão.

The lost weekend foi o primeiro filme de Hollywood a tratar o problema do alcoolismo de maneira menos moralista e com mais densidade humana. O que não quer dizer que seja um filme condescendente. Ele mostra bem as fraquezas e, por vezes, a mesquinhez de Don Birman, hipertrofiadas pela bebida. Mas mostra também que parte de sua autonomia dolorosamente se esvaiu: o álcool o escraviza, porque gera o esquecimento de que ele tanto precisa. É reconfortante e poderoso demais. Don tornou-se um homem sem muitas saídas, como incontáveis outros alcoolistas3.

O drama do alcoolismo, bem encenado no filme de Billy Wilder, por certo é tão antigo quanto a própria bebida alcoólica. A Grécia Antiga conheceu períodos de domesticação dos usos do vinho e dos cultos dionisíacos, períodos em que o consumo da bebida passou...

… a ser regido por uma noção de mistura com água, o que constitui um modelo de dieta temperada, em oposição ao vinho puro, visto como destemperado e até mesmo perigoso. Os gregos estipularam uma gradação do consumo equilibrado e do excesso alcoólico (CARNEIRO, 2010, p. 27).

Também na Roma Antiga houve tentativas de se regrar o consumo de álcool, inclusive períodos de proibição oficial das festas dedicadas ao deus Baco.

Ao longo da Idade Média, embora os maiores pensadores da Igreja Católica não tenham defendido a abstinência total do álcool, viam a embriaguez como “sinônimo de perda da razão, (...) que nos leva a cometer todos os pecados”. Embriagar-se, então, “seria tornar-se voluntariamente escravo do pecado e abdicar da razão” - e beber “intencionalmente para perder a razão” seria “pecado mortal” (CARNEIRO, 2010, p. 112).

Nesse sentido, era preciso que a bebida permitisse “‘sair da carne, permanecendo no corpo', como dizia Cassiano”; era preciso “domar, moderar, temperar as solicitações sensuais, mas não aboli-las”, pois com a “abolição da tentação, não haveria o mérito da resistência a ela” (CARNEIRO, 2010, p. 112).

Nos séculos que se seguiram ao fim da Baixa Idade Média, o uso da bebida alcoólica continuou a ter defensores e delatores fervorosos, as várias percepções do álcool foram sempre permeadas por contradições, por antagonismos irreconciliáveis. A bebida foi ora vista como substância capaz de reduzir um homem a sua animalidade, ora utilizada não apenas como diluente de medicamentos, mas como poderoso medicamento em si, para males que iam desde “humores ‘frios’” até “certos tipos de febre” (CARNEIRO, 2010, p. 168):

A medicina medieval e a moderna consideravam o álcool destilado um remédio, assim como fizera a medicina da Antiguidade em relação ao vinho. Apenas em 1915, o uísque e o conhaque foram excluídos da lista dos medicamentos da Farmacopeia dos Estados Unidos. Ainda no final do século XIX, muitas das teses apresentadas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro tratavam dos usos terapêuticos do vinho (CARNEIRO, 2010, p. 167).

Em diferentes lugares e em diferentes momentos, ao longo da história ocidental do uso do álcool, foram estabelecidas formas legítimas e não legítimas de se beber. A noção de embriaguez e, segundo Carneiro, mesmo a noção de vício são antigas. Mas é no século XIX que ocorre uma verdadeira “ontologização do mal”, com a “adoção de uma teoria orgânica da doença”. Nesse período foi fundada, em Londres, uma Society for the Study of Inebriety (depois Society for the Study of Addiction) e, naquele mesmo ano, um médico de nome Norman Kerr referia-se ao vício como “‘produto natural de uma organização nervosa depravada, debilitada ou defeituosa (...) indiscutivelmente uma doença, assim como a gota, a epilepsia ou a insanidade’” (CARNEIRO, 2010, pp. 188/189).

Também é no século XIX que o álcool passa a ser visto como uma degeneração hereditária ou uma “enfermidade de herança nervosa, cuja predisposição dependeria não só dos pais ou de outros antepassados terem sido alcoolistas, como também do risco de ter havido estado de embriaguez durante a concepção” (CARNEIRO, 2010, p. 186). Ainda naquele século foram criados os primeiros asilos destinados unicamente a alcoolistas.

No início do século XX, há uma mudança no que tange à percepção do alcoolismo: esse “provoca doenças orgânicas, mas não é uma doença orgânica”. Com a recusa do modelo orgânico oitocentista, o álcool passa a ser visto como uma “‘doença da vontade’”. Nesse novo modelo psicológico, o termo “adição” ganha destaque (CARNEIRO, 2010, pág. 190).

Atualmente, sabe-se que o álcool afeta...

...praticamente todas as células do corpo, inclusive aquelas do sistema nervoso central. Após exposição prolongada ao álcool, o cérebro torna-se depende. Beber firme e consistentemente, com o tempo, pode produzir dependência e sintomas de abstinência. Essa dependência física, no entanto, não é a única causa do alcoolismo. Para desenvolvê- lo, outros fatores usualmente entram em jogo, incluindo-se fatores biológicos, genéticos, culturais e psicológicos. (A.D.A.M., Inc., 2013)

Dessa maneira, as causas do alcoolismo, e das adições em geral, são ainda alvo de grandes discussões. Pesquisas sugerem que a doença está associada “a variações genéticas em 51 regiões cromossômicas diferentes”, mas o “Ambiente, a personalidade e fatores emocionais também têm um forte papel” (A.D.A.M., Inc., 2013).

Assim, há estudiosos que levam em consideração fatores biológicos e ambientais para a explicação do alcoolismo e outros vícios, afirmando, por exemplo, que a ocorrência de traumas infantis (violências, abusos e/ou negligências) acabam por modificar a biologia cerebral ainda em formação e tornam indivíduos mais suscetíveis a vícios (cf. In the realm of the hungry ghosts, do Dr. Gabor Maté). Há outros que ressaltam os aspectos ambientais e vêem a adição em termos de “cultura familiar”, passada de geração a geração – e não em termos de herança genética. Há também aqueles que têm destacado o papel da dopamina para explicar os vícios em geral, a depressão e a motivação, como o neurocientista Robert Sapolsky.

No que concerne aos efeitos do consumo abusivo e prolongado do álcool, é sabido que “pode afetar os neurônios (células nervosas), a química cerebral e a corrente sanguínea entre os lobos frontais do cérebro”. Os “neurotransmissores (mensageiros químicos do cérebro) também são afetados a longo prazo pelo uso do álcool” (A.D.A.M, Inc., 2013).

De todo modo, é apenas no início da segunda metade do século XX, em 1956, que o alcoolismo foi “cientificamente reconhecido como doença (...), conforme ato da Associação Médica Americana”. Somente “20 anos depois, em 1976, Grifith Edwards e Milton Gross caracterizaram e descreveram a chamada Síndrome de Dependência ao Álcool (DAS)” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 171).

Em 1978, a Organização Mundial de Saúde substituiu o termo alcoolismo por síndrome de dependência alcoólica no Código Internacional de Doenças (CID-10), que está especificada na CID F10.2 (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 172).

A OMS admite o alcoolismo como doença, considerando que “será doente o sujeito que fizer uso de substâncias entorpecentes por força da dependência química que vincula o usuário à substância” (VAZ, 2012, p. 18).

Há hoje, portanto, distinção entre o uso não dependente do álcool, dependência do álcool e abuso deste. Ou seja...

... uma pessoa pode fazer uso nocivo do álcool sem ser dependente deste. Assim, se um indivíduo, mesmo que não seja consumidor habitual de álcool, resolver dirigir embriagado, a sua atitude (...) não pode ser interpretada como efeito da dependência em relação à droga, mas deve ser vista como resultado de uma postura consciente quanto ao perigo provocado (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 172).

No que tange ao binômio álcool e trabalho, embora existam estudos médicos que afirmem “inexistir um reflexo automático do estágio de dependência física sobre o corpo e dos efeitos do ato de beber sobre as relações socioprofissionais do indivíduo”, de acordo com Zéu Palmeira Sobrinho, “em todas as relações estabelecidas entre o trabalhador e o álcool há sempre a probabilidade do risco” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, pp. 172 e 174).

Há que se ressaltar, aqui, aliás, que a relação entre bebida e trabalho tornou-se um verdadeiro problema pelo menos desde a Revolução Industrial em fins do século XVIII. Eric Hobsbawm já afirmou que a industrialização e a urbanização sem precedentes daquele período trouxeram em sua esteira verdadeiro “alcoolismo em massa” (HOBSBAWM, 1998).

Naquelas primeiras décadas de industrialismo, em que o trabalho era usualmente penoso e realizado às vezes por dezesseis horas seguidas, “alguns homens que se debruçaram sobre o problema, como Engels, viam a dependência do álcool não como uma inclinação viciosa do caráter, mas uma forma inevitável de consolo das agruras da exploração, por isso, quanto mais exaustivo, desgastante e perigoso o trabalho, maior a busca da bebida” (CARNEIRO, 2010, p. 211).

Engels chegou a citar um médico que, sobre o trabalho nas minas, afirmou que “‘a infâmia deste ofício’ se comprovava pelo fato de que ‘os mais fortes bebedores são (...) os que vivem mais tempo, porque faltam ao trabalho’” (CARNEIRO, 2010, p. 213).

Ante à epidemia do álcool dos séculos XVIII e XIX, muitas reformas coercitivas e medidas proibitivas passaram a ser intentadas pelos patrões e pelo Estado, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Não deixou de existir quem as denunciasse, como Ernest L. Abel, segundo o qual tais medidas eram “uma reação patronal e governamental contra as classes operárias, que usavam os espaços de consumo alcoólico como locais de sociabilidade”. Além disso, “se, de um lado, as bebidas podiam chegar a limitar a capacidade de trabalho e a produtividade (...), de outro eram um consolo e anestésico eficaz para ajudar uma parcela majoritária dos trabalhadores a suportar condições brutais de existência” (CARNEIRO, 2010, p. 182).

De qualquer forma, o álcool, no mundo do trabalho, era, com razão, um problema para os empregadores, pois afetava a produtividade dos empregados. Mas também era mal visto naquele contexto, pois estava relacionado à “vida nas tavernas”, à “fomentação de sindicalismo e rebeliões” (CARNEIRO, 2010, p. 204). Seu consumo foi, certamente, uma das causas para que “o controle da vida privada” dos trabalhadores se tornasse verdadeiro “princípio econômico”, de acordo com Henrique Carneiro.

Dentro da fábrica era preciso...

... aumentar sempre a produtividade do trabalho e o uso do álcool (e também, em menor grau, do tabaco) interfere no processo produtivo industrial. Fumar afeta a própria continuidade regular da produção, que deve ocupar incessantemente as mãos do operário, e o álcool perturba a capacidade de desempenho (CARNEIRO, 2010, p. 219).

Nesse contexto é que se pode entender o fordismo não apenas como bem-sucedido sistema de produção industrial, mas “estratégia moralizante” que, além “de controlar cronometricamente o tempo de trabalho, pretendia o controle da vida pessoal dos trabalhadores fora da fábrica” (CARNEIRO, 2010, p. 221). Ou seja, o fordismo foi também intervenção em todos os “aspectos da vida do operário, através de departamentos de sociologia da empresa, que investigavam em detalhe hábitos e comportamentos”. Os dois aspectos “mais evidentes na empreitada de controle comportamental do industrialismo foram a vida sexual e o consumo alcoólico dos trabalhadores” (CARNEIRO, 2010, p. 221).

Também o Estado, como já aventado, tentou colaborar para tal “controle comportamental”, produzindo legislação que visava proibir ou diminuir o consumo do álcool: nos EUA, a “primeira das leis contra as bebidas havia sido proclamada em 1847, no Estado do Maine, e durante mais de meio século desenrolou-se uma luta entre estados e cidades secas e úmidas”. Em 1736, o Gim Act taxa pesadamente a bebida na Inglaterra com o fito de inibir seu consumo, o que atingiu sobretudo os trabalhadores pobres (CARNEIRO, 2010, pp. 196 e 203).

No Brasil, houve algumas iniciativas legislativas que visavam restringir o consumo do álcool, como os projetos de lei “do deputado Juvenal Lamartine, em 1917, propondo triplicar os impostos sobre a cachaça e o vinho”, e do deputado “Plínio Marques, propondo, em 1921, a proibição do consumo de bebidas alcoólicas aos domingos e feriados” (CARNEIRO, 2010, p. 205).

No campo da legislação trabalhista, pode-se suscitar o artigo 482, “f”, da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1º de maio de 1943, segundo o qual:

Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: (...)

f) embriaguez habitual ou em serviço

Antes desse dispositivo, já “rezava a letra b do artigo 54 do Decreto nº 20.465, de 1º de outubro de 1931, ao tratar da Caixa de Aposentadoria e Pensões dos servidores públicos, que era falta grave a embriaguez habitual ou em serviço”, o mesmo preceituando a alínea “b” do artigo 90 do Decreto nº 22.872 de 1933, “ao criar regras sobre o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos” (MARTINS, 2013, p. 86).

Ainda anteriormente a esses dispositivos citados por Sérgio P. Martins, o artigo 69 do Decreto 17.941/1927 já dispunha, em seu caput, que “Depois de dez anos de serviço efetivo, o ferroviário a que se refere o presente regulamento só poderá ser demitido no caso de falta grave...”, sendo que, em seu parágrafo primeiro, afirmava:

§ 1º Será considerada falta grave: (...)

c) embriaguez habitual ou em serviço

Pensa-se, aqui, na esteira de Henrique Carneiro, que esses dispositivos da nascente legislação trabalhista denotam o esforço estatal (ainda que limitado e tardio no Brasil) para se disciplinar e adequar comportamentos e hábitos dos trabalhadores ao mundo do trabalho industrial então nascente.

Aliás, Dorval de Lacerda assim já escreveu, sobre o citado art. 482, “f”, Consolidado:

... se presume, na inserção da embriaguez habitual no elenco faltoso, nem tanto um prejuízo da empresa e uma arma de defesa do empregador contra os perigos que oferece um ébrio habitual, embora momentaneamente (durante o serviço) sóbrio, mas uma ação indireta do Estado contra a propagação do alcoolismo (...). Não é de hoje a ação do Estado contra o alcoolismo ou qualquer espécie de vício que conduza à embriaguez (...). Não será, pois, acusado de rigorismo o legislador que, por todos os meios e modos, procure atenuar o terrível mal; não sendo, consequentemente, sem propósito e oportunidade a ação nesse campo vasto e propício das relações de trabalho. (LACERDA, 1976, apud VAZ, 2012, p. 21 - grifei)

Ou seja, tanto o dispositivo Consolidado (art. 482, “f”, da CLT), quanto os dispositivos anteriores que certamente lhe deram inspiração podem ser entendidos, também, como tributários desse esforço de se disciplinar mentes e corações para o mundo do trabalho industrial, na medida em que não punem o consumo moderado da bebida, mas punem um hábito (“embriaguez habitual”) e um comportamento (“embriaguez em serviço”) considerados desviantes, capazes de interferir com a produção.

É nesse sentido que o industrialismo “não se detém na forma específica da produção e da exploração capitalistas, mas adquire uma espécie de autonomia como motor civilizatório” (CARNEIRO, 2010, p. 222).

A bebida alcoólica, portanto, foi naturalmente alvo de interdições e proibições ao longo de sua história no Ocidente, mas com o advento do capitalismo industrial a necessidade de se disciplinar seu consumo alcançou proporções inéditas.

Não é desarrazoado, portanto, afirmar que o art. 482, “f”, da CLT, bem como os mencionados dispositivos de edição anterior podem ser explicados pelo processo de centralização do trabalho na vida dos indivíduos - processo que começou com o advento da Revolução Industrial e que modificaria profundamente a relação entre o homem e seu trabalho, tal qual existente em épocas anteriores.

No entanto, há que se fazer duas observações: não se concebe, aqui, o alcoolismo apenas como um comportamento desviante ou supostamente desviante que teve de ser (ou deve ser) erradicado, em nome da produção industrial ou de um mundo do trabalho cada vez mais absorvente / exigente.

Houve - bem ou mal - um processo histórico complexo que implicou a disciplinarização / adequação de comportamentos, hábitos, corpos e mentes em razão das necessidades do capitalismo industrial. Contudo, a par de seu conteúdo algo desviante, especialmente no mundo do trabalho, o alcoolismo, como já decidiu a OMS, também é uma doença, que inclusive gera bastante sofrimento.

O combate ao alcoolismo no mundo do trabalho nem sempre pode ser visto como mera afronta às liberdades do indivíduo, nem o conhecimento científico que se tem da doença deve ser descartado como 'instrumento' que, em última análise, visaria apenas ‘categorizar’ pessoas. Há, afinal, indivíduos que sofrem em razão do vício – e o sofrimento é real, não se trata apenas de uma construção teórica.

Ademais, o binômio álcool e trabalho, infelizmente, já gerou e gera graves acidentes e, a depender das atividades exercidas, a bebida pode colocar em risco a saúde não apenas do empregado que bebe, como de colegas, clientes da empresa, etc.

A segunda observação que se deve fazer é que a jurisprudência trabalhista já há algum tempo tem visto com bastante reserva a aplicação indiscriminada do art. 482, f, da CLT, pelo menos no que tange à embriaguez habitual.

Ou seja, a maior parte dos tribunais e, certamente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) têm entendido, reiteradas vezes, que o empregado alcoolista - dependente da substância - não pode ser dispensado com fundamento no citado art. 482, “f”, Consolidado.

Em geral, essas decisões têm se pautado no fato de que o alcoolismo é considerado como doença pela OMS e a dispensa de um empregado doente atenta, em última análise, contra a sua dignidade humana:

É dever do empregador tratar com dignidade o alcoolista empregado, ou seja, ao invés de rescindir o contrato de trabalho deste, incumbe ao patrão encaminhar à Previdência Social o empregado acometido de alcoolismo para efetuar o tratamento ou possibilitar a concessão do benefício cabível, sob pena de vir a responder por danos morais (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 182).

Percebe-se, quanto a esses casos de embriaguez habitual, a aplicação de um princípio em detrimento de uma norma legal. Pode-se falar, ainda, na existência de dois processos subjacentes que ficam visíveis e se contrapõem nesse posicionamento preponderante dos tribunais trabalhistas: um relacionado à disciplinarização / adequação de comportamentos e hábitos, exigidas pelo mundo do trabalho, sobretudo no contexto do capitalismo industrial, e que é capaz de explicar, ao menos em parte, a existência de dispositivos legais como o art. 482, “f”, da CLT; outro que culminou no recente uso judicial da noção de dignidade humana em detrimento de dispositivos como o citado art. 482, “f”, Consolidado - processo que será discutido posteriormente.

De todo modo, temos vigente um dispositivo legal que preceitua que a embriaguez habitual é hipótese de justa causa e, em contraposição, o fortalecimento de uma jurisprudência que, fundamentada (explicitamente ou não) no princípio da dignidade humana, deixa de aplicá-lo - ao menos nos casos em que a dependência resta configurada.

No entanto, há quem discorde, ao menos em parte, desse entendimento jurisprudencial. Sérgio Pinto Martins afirma que a embriaguez habitual ou crônica “está muito mais para uma doença do empregado, que necessita de tratamento, do que para justa causa. Entretanto, existe a previsão da lei” (MARTINS, 2013, p. 97 – grifo meu).

O referido jurista, aliás, afirma que o “empregador, com a dispensa, não está impedindo o empregado de perceber o benefício previdenciário, que independe da rescisão do contrato de trabalho, mas da manutenção da qualidade de segurado e de período de carência” (MARTINS, 2013, pp. 96/97). Acrescenta que a “doença não seria um problema do empregador, mas do Estado” (MARTINS, 2013, p. 95).

Essas considerações de Sérgio P. Martins são razoáveis e são comumente suscitadas pelos que se posicionam contrariamente à não aplicação do art. 482, “f”, da CLT.

Parece justo que um empregado alcoolista encontre apoio para enfrentar o alcoolismo na empresa em que trabalha, ao invés de ser dispensado por justa causa (o que, muitas vezes, pode ser a “gota d'água”, pode implicar sua definitiva ruína pessoal4 ).

Entretanto, é justo que o empregador tenha de mantê-lo em seu quadro, mesmo que suspenso o contrato, preterindo um candidato produtivo que poderia ocupar a vaga? A jurisprudência majoritária já se posicionou, como se disse, no sentido de que deve prevalecer o princípio da dignidade humana e não a letra da lei nesses casos.

Mas o que se quer aqui é justamente discutir esse posicionamento dos tribunais trabalhistas, em especial do TST. Tentar-se-á demonstrar sua validade e suas fragilidades.

Para tanto, contudo, julga-se necessário fazer um ligeiro histórico da noção de dignidade humana.


2. Dignidade Humana - a trajetória histórica. Ou: os homens sempre tiveram valor intrínseco?

Hanna Arendt já escreveu que “o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atômicas” (ARENDT, 2000, p. 14). O mesmo pode-se dizer sobre a onipresença da noção de dignidade humana no Direito. Com o final da Segunda Guerra Mundial e seus traumas, essa concepção surge com força não apenas em uma miríade de documentos da Organização das Nações Unidas (sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos o mais famoso), como nas cerca de 40 Constituições Nacionais promulgadas desde então. É também mencionada em legislações que vão da biotecnologia ao direito do trabalho e direito internacional; em discursos políticos os mais variados e, recentemente, em decisões judiciais produzidas em países díspares como Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Brasil.

O quase total silêncio do Direito em relação à ideia de dignidade humana antes da Segunda Guerra Mundial (e até o surgimento da ONU e seus documentos fundadores) é algo a ser explicado. Mas pode-se dizer que o modo eloquente como essa noção tem sido suscitada desde então deve-se, em grande parte, ao choque da descoberta dos campos de concentração e o morticínio e assassínio racionalizado e “industrial” que ocorreram naqueles locais (HOBSBAWM, 1995).

De todo modo, anteriormente à Segunda Grande Guerra, pelo menos fora do Direito, existia a concepção de que todo homem tem dignidade em si? A noção de dignidade humana como um valor universal, intrínseco a todos os homens, capaz de colocar a todos em pé de igualdade, tem mesmo apenas setenta anos ou sempre esteve presente no mundo das ideias das sociedades Ocidentais (e até fora do Ocidente)? E, mais importante, a dignidade humana sempre foi um fundamento moral que autoriza qualquer ser humano a exigir certos direitos?

Se fizermos essas perguntas à história, as respostas poderão ser negativas. Claro, haverá estudiosos que dirão que o entendimento de que “'a humanidadepossui uma profunda dignidade não é uma prerrogativa moderna'” e que essa noção, inclusive, aparece “em várias culturas ao redor do mundo, Leste e Oeste, e em textos teológicos do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo” (MISZTAL, 2013, p. 102).

Para esses autores, a ideia contemporânea de dignidade humana, sem dúvida uma das ideias centrais pelo menos das sociedades ocidentais nos últimos setenta anos, tem raízes históricas bastante longas.

Contudo, para muitos historiadores, as raízes não são tão longas assim: a noção de dignidade humana que temos hoje é muito diversa daquela apreendida nos documentos do Mundo Antigo, da Idade Média, do início do período Moderno e talvez mesmo em muitos documentos do século que viu nascer os direitos humanos - o século XVIII5.

Como explica Oliver Sensen (SENSEN, 2011), pode-se falar, seguramente, em pelo menos uma noção tradicional (e historicamente persistente) de dignidade humana, bem diferente da noção contemporânea de dignidade humana.

A noção contemporânea de dignidade, como já aventado, pode ser resumida como a ideia segundo a qual cada pessoa é detentora de um valor inerente e irredutível, conferido a ela por sua própria natureza humana e capaz de fundamentar a exigência de certos direitos.

A noção tradicional de dignidade humana relaciona-se à ideia antiga de dignitas. Na Roma Antiga, a dignitas não era atribuída a todos os homens. Era antes um termo aristocrático, utilizado para distinguir, para expressar “a posição elevada da classe governante” (SENSEN, 2011, p. 75). Sendo assim, a dignitas “era aplicável a poucos, por exemplo, a um cônsul ou senador” (SENSEN, 2011, pp. 75/76).

A noção romana de dignitas, na esteira do que escreve o filósofo Oliver Sensen, é bastante complexa. Ela abrange ideias de classe, de posição social elevada e também de estima, valor ou excelência (ainda que a excelência, estima ou valor não sejam tão importantes quanto à ideia mesma de posição elevada):

No Império Romano tardio, existia a notitia dignitatum, uma lista classificando os mais altos cargos oficiais no império. Ter dignidade, nesse sentido, não pressupunha excelência ou alta estima. Era necessário apenas que se possuísse o cargo, que era concedido pelo imperador. O componente essencial era que dignidade expressava uma relação, uma posição elevada de algo sobre outra coisa. (SENSEN, 2011, p. 76 - grifei).

Assim, a noção romana de dignidade implica que esse valor poderia muito bem ser perdido ou ser ganho, “por mérito, nascimento ou riqueza” (SENSEN, 2011, p. 76). Ou seja, a noção romana diferencia-se da noção contemporânea, porque a dignidade, então, não era democrática, muito menos intrínseca ou não-relacional, como a entendemos hoje. Ela era um valor, aristocrático e relacional, pois expressava o sentido de algo (ou alguém) elevando-se sobre outra coisa (ou outros).

Cícero é que seria o encarregado de 'democratizar' a noção romana de dignitas, na medida em que a utilizou para “expressar a ideia de um lugar elevado para os seres humanos no universo” (SENSEN, 2011, p. 76). Mas isso não ‘aproximou’ tanto a noção antiga de dignidade da noção contemporânea, como se poderia esperar. É que ao perceber todos os homens (e não apenas alguns homens) dotados de dignidade, colocando-os a todos em posição mais elevada que os animais, Cícero afirma também que “'viver uma vida de prazer é algo indigno da posição elevada que os seres humanos ocupam. Nossa superioridade e elevada posição demandam uma vida na qual nossos desejos mais baixos devem ser governados de acordo com a razão'” (Cícero apud SENSEN, 2011, p. 77).

A implicação dessas conclusões de Cícero é que no sentido tradicional, embora todos os homens pudessem, a princípio, ser dignos (pois, comparados a outros animais, são todos dotados de razão), a dignidade, então, não era um valor intrínseco, capaz de fundamentar a exigência de certos direitos. Pelo contrário, a dignidade que possuíam era fundamento de deveres e poderia ser perdida.

Observe-se, novamente, que na noção contemporânea, a dignidade humana implica a propriedade de um valor intrínseco e não relacional, fundamento de direitos. Em Cícero, transparece a noção tradicional de dignidade humana: ela é relacional (o homem é digno, pois está em uma posição superior se comparado a outros animais) e ela é fundamento de deveres (os homens devem se esforçar para se manter em um certo nível, devem permanecer acima dos brutos).

Ou seja, na noção de Cícero, os homens possuem um valor especial, pois detêm uma certa capacidade, no caso a razão. Mas estar elevado ou ser digno, nessa concepção, implica “o dever de se comportar de uma certa maneira, que faça jus a essa dignidade” (SENSEN, 2010, p. 78).

Também J. Habermas percebe, na história da noção de dignidade humana, uma “modificação de perspectiva entre deveres morais e reivindicações legais”, afirmando mesmo que os “direitos subjetivos, ao invés dos deveres, constituem o ponto inicial da construção dos sistemas legais modernos” (HABERMAS, 2010, p. 471). Essa construção ele percebe concomitante a outro processo: “a generalização paradoxal do conceito de dignidade que, originalmente, não estava equipado para qualquer distribuição igualitária de dignidade, mas para diferenciações de status” (HABERMAS, 2010, p. 471).

Em seu interessante estudo, Oliver Sensen nota essas características da noção tradicional de dignidade (ela é relacional e gera deveres que devem ser cumpridos para sua própria manutenção) não apenas na obra de Cícero, mas, com algumas nuances, nas obras de pensadores como Papa Leão I (nesse caso, a alma – e não a razão – é que nos eleva acima dos demais animais, conferindo-nos dignidade) e Pico della Mirandola (a dignidade está na capacidade do homem de escolher o lugar em que deseja estar na ordem universal: mais próximo de Deus ou mais próximo dos animais mais baixos).

Poderíamos ainda adicionar à lista de Sensen dois outros pensadores cristãos: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para Agostinho, a dignidade do homem localiza-se em sua alma trina, composta de memória, intelecto e vontade. Mas “até o intelecto e a vontade poderiam ser bons ou ruins, dependendo do modo como fossem exercidos; bons, se direcionados à Divindade, e maus caso não fossem” (LEWIS, 2007, p. 94).

Tomás de Aquino, diferentemente de Leão I e Agostinho, localiza a dignidade humana na natureza. Para ele o ser humano é naturalmente livre. Mas sua dignidade “é perdida quando um pecado é cometido. O ser humano racional então assume o status de uma besta não racional” (LEWIS, 2007, p. 94).

A despeito das disparidades entre os pensadores citados, podemos ver em todos eles, de alguma maneira, a noção de dignidade humana mais relacionada a deveres e a exigências de autoaperfeiçoamento do que como fundamento de direitos.

No que diz respeito a Immanuel Kant, Sensen ainda vê sua noção de dignidade humana como geradora mais de deveres do que de direitos, sendo o Imperativo Categórico a premissa normativa que se pode perceber no lugar “da concepção teleológica da natureza que Cícero emprega” (SENSEN, 2011, p. 83). Nesse sentido, o autor destoa de muitos estudiosos do conceito de dignidade humana, que apontam Immanuel Kant como o pensador que justamente rompe com a noção tradicional e começa a construir a noção contemporânea de dignidade humana.

Habermas, por exemplo, afirma que, embora “o conceito de dignidade humana não tenha adquirido nenhuma importância sistemática em Kant” (HABERMAS, 2010, p. 474), em sua obra os “direitos humanos derivam seu conteúdo moral (…) de uma concepção de dignidade humana universalista e individualista” (HABERMAS, p. 475).

De todo modo, o que importa aqui é deixar claro que existem, historicamente, ao menos duas noções de dignidade humana: a contemporânea, vastamente exteriorizada em inúmeros documentos da ONU e em legislações do mundo inteiro, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, e a tradicional - que remonta à dignitas romana.

Admitir a existência dessas duas concepções não significa, contudo, como conclui Oliver Sense, que a noção contemporânea de dignidade humana “não tem o suporte de uma longa história”, pois, segundo ele, essa teria no máximo, 60 a 70 anos, ou seja, historicamente apenas nasce com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a descoberta dos campos de concentração e com o nascimento da ONU (SENSEN, 2011, p. 85).

De fato, como já se aventou, é apenas a partir do fim da Segunda Guerra que a noção de dignidade passa a ser “moeda corrente” no Direito e a estar presente nas Constituições e sistemas legais de dezenas de países. Contudo, pensamos aqui, junto com J. Habermas, que a noção contemporânea de dignidade humana tem uma história um pouco mais longa do que defende Sensen, podendo ser estendida até pelo menos à filosofia de Kant e ao século XVIII (não coincidentemente, o século que viu nascer a Declaração dos direitos do homem e do cidadão).

Habermas, aliás, admite a prevalência do conceito de dignidade humana nos textos legais da segunda metade do século XX, mas aponta exceções anteriores, como um artigo da Constituição Alemã de março de 1849 (artigo 139) que, justificando a abolição da pena de morte e das punições corporais, afirma que “'Um povo livre deve respeitar a dignidade humana, mesmo no caso de um criminoso'” (HABERMAS, 2010, p. 466). Também cita a Constituição da República de Weimer, de 1919, que, em seu artigo 151, “fala em 'alcançar uma vida digna para todos'”, acrescentando que, nesse caso, “o conceito de dignidade humana permanece encoberto pelo uso adjetivo de uma expressão coloquial” (HABERMAS, 2010, p. 468).

Ademais, fora dos textos legais, o tema da dignidade humana (em sua concepção moderna) é suscitado nas obras de vários escritores e pensadores dos séculos XVIII e XIX. Mary Wollstonecraft, por exemplo, o utiliza para reivindicar direitos para as mulheres; F. Lassalle, em uma de suas obras, chegou a argumentar que “'o Estado deveria assegurar que os trabalhadores (…) vivessem vidas realmente dignas'” (LASSALLE apud MISZTAL, 2012, p. 102). Subjacente ao movimento abolicionista que se espalhou por diversos países escravocratas no século XIX sem dúvida estava o tema da dignidade humana, ainda que nem sempre explicitado.

Além dessa primeira crítica ao texto de Sensen, que diz respeito à antiguidade do conceito contemporâneo de dignidade humana (achamos que suas raízes vão até pelo menos as revoluções liberais do século XVIII), pode-se também fazer uma outra: em sua visão, o nascimento da noção contemporânea dá-se sem maiores ligações com a noção tradicional de dignidade humana. É como se não houvesse continuidade alguma entre as duas concepções, quase como se tivessem existências completamente independentes.

Para começar, as ideias em geral nascem de outras ideias, seja como continuidade ou como ruptura. Nesse sentido, há que se lembrar que as duas noções dotam o homem de um valor especial, embora com implicações diversas.

Mas isso será discutido posteriormente. Por agora, resta salientar que há autores que divergem ainda mais de Oliver Sensen, pois defendem que a noção de dignidade humana atual remonta até mesmo aos primórdios do Judaísmo e do Cristianismo(MISZTAL, 2012).

Essa visão de uma história extremamente longa do conceito, por sua vez, padece de certa monotonia, o que é algo incomum quando se lida com história das ideias. Não leva em conta que diferentes épocas tendem a entender de diferentes modos certos conceitos. Não leva em consideração, inclusive, a existência de religiões e tradições de pensamento que simplesmente desprezaram a noção de dignidade humana.

Mas, por outro lado, como não notar uma certa concepção de dignidade humana fundamentando, por exemplo, a Regra de Ouro enunciada tanto por Cristo quanto presente no Talmude? Contudo, nesses casos, a noção de dignidade humana parece mais com a tradicional: o homem tem um valor especial que lhe confere deveres e a obrigação de se autoaperfeiçoar. Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você implica dever e autoaperfeiçoamento, mais do que direitos.

Ademais, se para o pensamento cristão o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, lembremos que, de acordo com Tomás de Aquino, sua dignidade sempre pode ser perdida em razão do pecado.

Dessa forma, não se entende aqui, por exemplo, que a Bíblia seja fundamento direto para a noção contemporânea de dignidade, pois ali há inclusive uma visão bastante pessimista da natureza humana. A Bíblia diz mais sobre a redenção do homem do que sobre sua dignidade.

A ideia de dignidade humana, em resumo, teve variações ao longo da história e, na esteira do que escreveu Oliver Sensen, pode-se falar ao menos de uma concepção tradicional e de uma noção contemporânea. No entanto, como já aventado, a concepção contemporânea não tem raízes tão curtas como quer o autor norte-americano, pois remonta até pelo menos o século XVIII.

Ademais, acredita-se que as duas noções de dignidade humana, historicamente, conviveram e ainda convivem, ao menos desde o século XVIII, no universo das ideias, havendo rupturas, mas também continuidades entre elas. Ainda que em um longo período uma tenha preponderado e, nos últimos setenta anos, outra prepondere, talvez seja impossível explicar o surgimento da ideia atual sem se reportar à noção tradicional de dignidade humana, que, afinal, também dotou os homens de um valor especial - ainda que sem lhes conferir as prerrogativas que hoje acreditamos que eles detêm.

2.1. Do conceito de honra ao conceito de dignidade humana

A história do conceito de dignidade humana pode ser vista também como a história do declínio da noção de honra.

O mérito dessa perspectiva é apontar não apenas as rupturas entre uma noção e outra - noção tradicional de dignidade (ou honra) e noção contemporânea de dignidade -, mas também as continuidades entre uma e outra concepção.

Além disso, tal perspectiva evidencia melhor o processo mesmo que levou ao engendramento da ideia atual de dignidade humana.

A honra é uma espécie de valor, uma “dignidade conferida pela observância de certos princípios socialmente estipulados” (HOUAISS, 2009). Ou seja, de forma análoga à noção tradicional de dignidade humana, o conceito de honra traz em seu bojo a ideia de cumprimento de deveres (observação de princípios) que têm um fundamento social (os princípios são socialmente estipulados).

Para Julian Pitt-Rivers, citado por Thereza Cristina Gosdal, honra “‘é o valor que uma pessoa tem a seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a sua apreciação do quanto vale, da sua pretensão a orgulho, mas é também o reconhecimento dessa pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito ao orgulho’” (PITT-RIVERS apud GOSDAL, 2006, p. 154 - grifei).

Segundo o sociólogo Peter Berger, a honra é um conceito aristocrático ou ao menos “associado com uma ordem hierárquica de sociedade”. As noções ocidentais de honra são antigas, mas foram fortalecidas, sobretudo, pelos “códigos medievais de cavalheirismo, enraizados nas estruturas sociais do feudalismo” (BERGER, 1983, p. 174). Tais noções sobrevivem até hoje, principalmente em grupos que têm uma visão “hierárquica da sociedade, como a nobreza, os militares” e mesmo em certas profissões,como aquelas relacionadas ao Direito e à Medicina. Em tais grupos, “honra é uma expressão direta de status, uma fonte de solidariedade entre iguais e uma linha de demarcação contra os inferiores” (BERGER, 1983, p. 174).

Em sociedade hierarquicamente ordenada, como a feudal, a etiqueta da vida cotidiana consiste “em transações contínuas de honra, de acordo com o princípio do 'A cada um segundo seu merecimento'” (BERGER, 1983, p. 174). Ainda de acordo com o estudioso, aqueles que detêm um alto...

… status na comunidade, têm obrigações particulares de honra, mas mesmo os que se encontram em posição mais baixa são diferenciados em termos de honra e desonra. Em geral, os homens devem exibir virilidade e as mulheres, recato e vergonha (...).

No mais, a honra provê a ligação, não apenas do self com a comunidade, mas entre o self e normas idealizadas pela comunidade. A honra, considerada como a posse, por homens e mulheres, de certas qualidades, é a tentativa de relacionar a existência a certos padrões arquetípicos de comportamento. (BERGER, 1983, p. 174 - grifei)

Além disso, em um mundo de honra, “o indivíduo é o símbolo social que está em seu brasão. O verdadeiro self do cavaleiro é revelado enquanto ele corre para a batalha”. Nesse mundo, “o homem nu em uma cama com uma mulher representa uma realidade menor do self”. (BERGER, 1983, p. 177).

Por outro lado, em um mundo de dignidade, “o brasão esconde o verdadeiro self. É precisamente o homem nu (…), expressando sua sexualidade, que representa a si de modo mais verdadeiro” (BERGER, 1983, p. 177).

Em outras palavras (e ainda de acordo com o autor), o conceito de honra implica que a identidade está essencialmente ligada aos papéis institucionais: no mundo da honra “o indivíduo descobre sua verdadeira identidade nos seus papéis e afastar-se de seus papéis é afastar-se de si mesmo” (BERGER, 1983, p. 177). O moderno conceito de dignidade, por contraste, implica que a identidade é “essencialmente independente dos papéis institucionais” (BERGER, 1983, p. 177).

No mundo da honra, portanto, homens e mulheres “têm obrigações particulares” e suas identidades “estruturam-se com base nos papéis institucionais que desempenham” e que a sociedade lhes confere. No mundo da dignidade, o “homem deve emancipar-se dos papéis socialmente impostos” para descobrir a dignidade intrínseca de sua “verdadeira identidade” (BERGER, 1986, p. 177). As instituições, por sua vez, são vistas como “fluidas e não confiáveis” (BERGER, 1983, p. 178).

No Ocidente, segundo Berger, é válido ver esse tipo de cultura (a cultura da honra) como “essencialmente pré-moderna”. Mas, pensa-se aqui, há permanências dessa cultura até hoje - não apenas as permanências concretas que o autor sugere (citadas acima), mas outras que, se não se relacionam mais à construção da própria identidade do indivíduo, concernem ao menos à esfera mais superficial dos comportamentos. Por exemplo, as exigências de autocontrole e de disciplina no mundo do trabalho talvez sejam permanências da cultura da honra, não se devem apenas a fenômenos históricos mais recentes, como o fordismo.

Mas intui-se aqui que mesmo em um nível individual, psicológico, essas duas noções talvez estejam presentes na vida do homem contemporâneo - que ora pode retirar algum amor próprio da noção de que, afinal, é um ser humano e merece consideração mínima como todos os outros; ora pode se defrontar com a dura realidade de seus limites, oriundos de sua posição no mundo.

Podemos, ainda, localizar algumas permanências da noção de honra – ou ao menos uma espécie de nostalgia em relação a ela - no campo do imaginário coletivo. Essa nostalgia em relação a um mundo há muito findo é incontavelmente expressa pelo cinema, pela literatura, por títulos de videogame, pelos quadrinhos e outras formas de expressão.

Mas além dessas permanências, como o próprio Berger lembra, existem as “constantes antropológicas”: o homem moderno “não é uma inovação total ou uma mutação da espécie. Por isso ele compartilha, com qualquer versão arcaica sua, tanto a sociabilidade intrínseca, quanto os processos recíprocos pelos quais suas várias identidades são formadas” (BERGER, 1983, pp. 177/178).

Feitas essas considerações acerca das continuidades entre uma e outra noção, há que se dizer que o mundo da honra começa a entrar em lento declínio no século XV, processo que se acelera a partir do século XVIII.

Há inúmeros fatores ‘materiais’ que acompanharam essa decadência e que, aliás, comumente são citados por estudiosos como explicadores gerais do fim das sociedades atomizadas pré-industriais no Ocidente: esvaziamento do campo, advento da “tecnologia e industrialização, crescimento da urbanização, crescimento populacional sem precedentes, aumento da burocracia, o vasto aumento nas comunicações entre vários grupos humanos, mobilidade social, pluralização dos mundos sociais”... (BERGER, 1983, p. 178).

Esse enfraquecimento da noção de honra, contudo, por certo que se deu em várias etapas, pelo que o declínio dos códigos medievais não levou diretamente à situação atual, em que a noção de honra, de acordo com Berger, é inexistente6 (ou quase marginal).

Houve, por exemplo, o período, em fins do século XVIII, de 'aburguesamento' da ideia de honra e depois, sim, o lento processo pelo qual ela foi saindo do centro do palco. Ou, alternativamente, o lento processo pelo qual o conceito de dignidade humana atribuiu “um status de nobre ao homem comum” (WALDRON apud WHITE, 2011, p. 8).

De todo modo, um personagem simbólico do declínio do mundo da honra, ainda no início desse processo, seria, segundo Berger, o Falstaff de Shakespeare (dramaturgo que, não por acaso, foi considerado o “inventor do humano” por Harold Bloom). O catecismo de Falstaff expressa a ideia de que a “honra é um mero brasão”. É a consciência moderna que desmascara, que “'desencanta' (…) até mostrar a honra como nada além de um artefato pintado”. Por trás da honra “há a face de um homem moderno – um homem sem a consolação de protótipos – o homem sozinho” (BERGER, 1983, p. 175).

Pode-se dizer que Hanna Arendt também alude a esse processo de ensimesmamento do homem ao falar da vitória do animal laborans na contemporaneidade: nela o homem foi “lançado à interioridade fechada da introspecção, na qual suas mais elevadas experiências são os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma” (ARENDT, 2000, p. 334).

De todo modo, é importante “entender que é precisamente esse self solitário que a consciência moderna percebe como dotado de dignidade humana” (BERGER, pp. 175/176). Ou seja, a desintegração da noção de honra deu-se concomitante à compreensão cada vez maior de que, sob o peso dos papéis e deveres sociais, há o homem e sua humanidade e sua solidão.

Foi saindo do mundo da honra que os homens foram capazes de atribuir dignidade a sua própria humanidade – e não apenas ao exercício de algum papel ou dever social. Talvez essa atribuição os tenha levado a acreditar na existência de certos direitos, cuja proteção preserva tal dignidade (provavelmente mais frágil e fugidia, pensa-se aqui, justamente porque despossuída daquela base social que fundamenta a honra).

Dessa forma, do que até agora visto, percebe-se que a honra (ou a noção tradicional de dignidade humana) possui fundamento social (está relacionada ao cumprimento de certos papéis sociais), implica o cumprimento de certos deveres e é relacional (pois eleva aquele que a possui em relação aos demais).

Já a noção de dignidade humana contemporânea não possui fundamento social (o homem é digno em virtude de sua própria humanidade); dá ao homem certas prerrogativas e é não relacional (todos os homens, afinal, possuem dignidade).

Luiz R. Cardoso de Oliveira afirma que...

... a honra do período anterior se transformou em dignidade na modernidade. Não estava mais ligada à vinculação do indivíduo a um determinado grupo ou classe, como ocorria, por exemplo, com os cavaleiros, os nobres e o clero na Idade Média, mas à atividade laboral do homem. A dignidade passou a compreender condições mínimas de existência, o que importa o acesso a bens e serviços e a possibilidade de ser proprietário pelo menos de sua força de trabalho, que é ‘livremente vendida’ no mercado. Dentro do contexto de formação do pensamento moderno e do capitalismo, no qual se insere também o desenvolvimento dos direitos humanos em geral e do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, necessário ainda tratar do papel das grandes revoluções ocorridas no século XVIII. (CARDOSO apud GOSDAL, Thereza Cristina, 2006 p. 65 - grifei)

Os primeiros documentos estabelecendo direitos humanos, no século XVIII7, foram influenciados pela doutrina jusnaturalista, segundo a qual os homens detêm prerrogativas anteriores ao surgimento do próprio Estado (liberdade, propriedade, direito de lutar contra a humilhação e a opressão, etc.).

Mas, como defende J. Habermas, tais documentos também já estavam moralmente carregados pela ideia (contemporânea) de dignidade humana. Assim escreve o filósofo alemão:

…  há um admirável deslocamento temporal entre a história dos direitos humanos, que remontam ao século dezessete, e ao uso relativamente recente do conceito de dignidade humana nas codificações nacionais e internacionais de Direito e na administração da justiça, na segunda metade do século passado.

…   Eu gostaria de defender a tese de que uma íntima, ainda que inicialmente apenas implícita, conexão conceitual já existia desde o início. Nossa intuição nos diz, de qualquer forma, que os direitos humanos sempre foram o produto da resistência ao despotismo, à opressão e à humilhação. Hoje, ninguém pode proferir esses veneráveis artigos – por exemplo, a proposição de que 'Ninguém será sujeito à tortura ou a punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante' (Artigo 5 da Declaração Universal) – sem ouvir os ecos do clamor de incontáveis criaturas humanas torturadas e assassinadas que ressoam neles. O apelo dos direitos humanos alimenta-se do insulto dos humilhados ante a violação de sua dignidade humana. Se é isso que forma o ponto inicial histórico, traços de uma conexão conceitual entre dignidade humana e direitos humanos deveriam ser evidentes desde o início do desenvolvimento da lei em si (HABERMAS, 2010, p. 466 - grifei)

Para Habermas, é importante a conexão entre a ideia de dignidade humana e de direitos humanos, pois, de outra forma, esses últimos poderiam ser entendidos por meio de concepções meramente políticas, que acabariam por retirar deles sua carga moral. Ou seja, sem a noção de dignidade humana, sem essa carga moral, os direitos humanos deixam de ser direitos “que cada pessoa deve possuir em função mesmo de sua natureza humana” (HABERMAS, 2010, p. 478).

A esse respeito, o filósofo alemão ainda escreve o seguinte:

O investimento da lei com uma carga moral é um legado das revoluções constitucionais do século dezoito. Neutralizar essas tensões seria abandonar o entendimento dinâmico que faz dos cidadãos, das nossas próprias e quase liberais sociedades, abertos a uma compreensão ainda mais exaustiva dos direitos existentes e do perigo sempre presente de sua erosão (HABERMAS, 2010, p. 479 - grifei).

Dessa maneira, como se viu, o declínio do mundo da honra (ou o enfraquecimento da noção tradicional de dignidade humana) trouxe-nos, em sua esteira, o entendimento, fixado de vez no universo jurídico e político após o fim da Segunda Guerra Mundial, de que todo homem tem um valor intrínseco e irredutível – valor que é também fundamento moral de certos direitos.

Não se acredita com isso, por óbvio, que os homens e as mulheres de três séculos atrás fossem incapazes de sentimentos de injustiça. Certamente sofriam quando uma grande humilhação se abatia sobre eles. Entretanto, é muito provável que não pensavam deter a prerrogativa de não serem humilhados em virtude de sua dignidade intrínseca – ideia que é tributária das revoluções liberais do século XVIII.

A desintegração do mundo da honra trouxe consigo um ganho fundamental, que foi o engendramento da noção de dignidade humana.

Mas é pertinente lembrar que também trouxe certas perdas. Sobre essa questão – e para finalizar a presente discussão - é interessante citar, mais uma vez, o sociólogo Peter Berger:

… Nós afirmaríamos aqui que as duas perspectivas – a liberação mítica da 'esquerda' e a nostalgia da 'direita' por um mundo intacto – não fazem jus às dimensões antropológicas e na verdade éticas do problema.

Parece-nos claro que o entusiasmo sem restrição pela liberação total da 'repressão' das instituições é falha, pois não leva em consideração certas necessidades fundamentais do homem, notavelmente aquelas relacionadas à ordem – aquela ordem institucional da sociedade sem a qual tanto as coletividades, quanto os indivíduos, podem decair a um caos desumanizador. Em outras palavras, o desaparecimento da honra deu-se com um alto custo a ser pago por qualquer que sejam as liberdades que o homem moderno tenha alcançado.

Por outro lado, a denúncia da constelação contemporânea de instituições e de identidades falha ao não perceber os vastos ganhos morais tornados possíveis exatamente pela existência dessa constelação – sobretudo a descoberta do indivíduo autônomo, cuja dignidade deriva de seu próprio ser e que está além e acima de qualquer identificação social. Qualquer um que denuncie o mundo moderno tout court deveria fazer uma pausa e questionar se quer incluir nessa denúncia as descobertas modernas da dignidade e dos direitos humanos.

A convicção de que até os membros mais fracos da sociedade têm direito inerente à proteção e dignidade; o banimento da escravidão em todas as suas formas e a proibição à opressão racial e étnica; a desconcertante descoberta da dignidade e dos direitos da criança; o surgimento de novas sensibilidades contra a crueldade, desde a repulsa à tortura até a codificação dos crimes de genocídio (…); o reconhecimento novo da responsabilidade do indivíduo por todos os seus atos, mesmo aqueles que lhe são exigidos em virtude de certos papéis institucionais – um reconhecimento que obteve a força da lei em Nuremberg; todos esses – e outros – são ganhos morais que seriam impensáveis sem as constelações peculiares do mundo moderno.

(...)

É permitido, contudo, especular se a redescoberta da honra, em um futuro desenvolvimento da sociedade moderna, é empiricamente plausível e moralmente desejável. Desnecessário dizer que dificilmente tal redescobrimento tomaria a forma de um regresso aos códigos tradicionais. Mas o humor contemporâneo anti-institucionalista dificilmente durará, como Anton Zijderveld afirma. A constituição fundamental do homem é tal que ele inevitavelmente construirá, novamente, instituições que possam lhe oferecer uma realidade ordenada. Um retorno às instituições será, ipso facto, um retorno à honra. (…). A questão ética, claro, é como serão essas instituições. Especificamente, o teste ético de quaisquer futuras instituições, e dos códigos de honra a elas vinculadas, consistirá no sucesso que elas terão em incorporar e estabilizar as descobertas da dignidade humana, uma das principais façanhas do homem moderno (BERGER, 1983, pp. 180/181).


3. A dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo

No tópico anterior viu-se como o engendramento da ideia de que todo homem tem valor em si (ou seja, valor em virtude apenas de sua própria humanidade e que fundamenta a exigência de certos direitos) implicou verdadeira revolução na história das mentalidades do Ocidente. Sobretudo porque, como bem assevera Habermas, o engendramento da noção de dignidade humana investiu a lei com uma carga moral sem precedentes na história do Direito ocidental e é algo que remonta ao surgimento dos chamados direitos humanos, na esteira das revoluções liberais do século XVIII8.

A despeito disso, a presença (explícita) da noção de de dignidade humana no mundo do Direito, como se viu, é relativamente recente. Apesar do artigo 139 da Constituição Alemã de março de 1849 e do artigo 151 da Constituição da República de Weimer de 1919, que fazem referências a esse conceito, é apenas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial que ele se fará presente nos diversos ordenamentos jurídicos ocidentais de maneira cada vez mais incisiva (e aí o peso da Segunda Guerra Mundial e seus traumas teve papel desencadeador / catalizador importante).

O uso judicial da noção de dignidade humana é também recente (no Brasil, alguns autores defendem que remonta aos anos de 1990) e se tornou mais comum na medida em que certas correntes teóricas e movimentos pós-positivistas, como o neoconstitucionalismo, se engendraram e se fortaleceram.

Aliás, pensa-se, aqui, que o neoconstitucionalismo, a despeito das nuances e das diversas teorias que abarca, é uma corrente que, no geral, tenta dar uma resposta jurídica ao surgimento (ou melhor, ao fortalecimento) da concepção de dignidade humana (em detrimento da velha concepção de honra), bem como ao desafio moral que essa nova concepção trouxe para o Direito.

Não por acaso, como bem explica Luís Roberto Barroso, o neoconstitucionalismo teve como marco histórico a formação do Estado Constitucional de Direito, “imediatamente após a 2ª Grande Guerra” e “especialmente na Alemanha e na Itália” (BARROSO, 2006, p. 3).

O novo Direito Constitucional estaria ainda relacionado à “superação histórica do jusnaturalismo” e ao “fracasso político do positivismo”, razão por que não despreza o direito posto, mas “procura empreender uma leitura moral do Direito”, sendo o “desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana”, um dos objetivos que “procuram abrigo neste paradigma em construção” (BARROSO, 2006, p. 6 - grifei).

Do ponto de vista teórico, o neoconstitucionalismo propugna ainda “o reconhecimento da força normativa da Constituição”; “a expansão da jurisdição constitucional” (com a criação de tribunais constitucionais e alguma forma de controle de constitucionalidade em países por ele atingidos) e “o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional”, que possui, dentre outros, os seguintes princípios: supremacia da Constituição, presunção de Constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, interpretação conforme a Constituição, etc. (BARROSO, 2006, pp. 6 e 10/11).

Em um país como os Estados Unidos, em que “a interpretação de todo o direito posto à luz da Constituiçpão é característica histórica”, o debate provocado pelo neoconstitucionalismo tangencia a legitimidade e limites “da atuação do Judiciário na aplicação de valores substantivos e no reconhecimento de direitos fundamentais que não se encontrem expressos na Constituição” (BARROSO, 2006, p. 19).

Em países de tradição romano-germânica como o Brasil, em que o precedente foi considerado fonte formal “imprópria” do Direito,, a inédita supremacia do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo é um desdobramento do neoconstitucionalismo que se afigura como mudança ainda mais radical. Embora seja dito que o Juiz não possa inovar a ordem jurídica, “criando comando até então inexistente” - estando autorizado apenas a “invalidar um ato do Legislativo” (BARROSO, 2006, p. 29) -, ele se torna “co-participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis” (BARROSO, 2006, p. 12).

Outra nota definidora do neoconstitucionalismo, talvez uma das mais importantes, é o reconhecimento da normatividade dos princípios. Esse reconhecimento deu-se em concomitância com um outro: o de que “a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo” (BARROSO, p. 12). Algumas vezes será necessário apoiar-se em princípios que...

… não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios. A definição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana , razoabilidade, solidariedade e eficiência também transfere para o intérprete uma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurídica de tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais incidem. Também aqui, portanto, impõe-se a atuação do inérprete na definição concreta de seu sentido e alcance. (BARROSO, p. 13 - grifei)

De fato, é difícil definir o “conteúdo” de um princípio como o da dignidade humana. Pode-se afirmar (como neste trabalho até agora se afirmou) que a dignidade humana é um valor inerente a qualquer ser humano, que desautoriza percebê-lo como um meio, que obriga a percebê-lo como um fim em si e que lhe autoriza a exigência de certos direitos. E é aí mesmo que reside seu problema: essa noção pode ser / foi invocada como fundamento de direitos diversos e, inclusive, contraditórios, por exemplo, em disputas relacionadas a aborto, união homoafetiva, pesquisas com células-tronco (direito à vida vs direito à saúde, etc.).

3.1. Críticas à noção de dignidade humana

O psicólogo evolutivo Steven Pinker já escreveu que a noção de dignidade humana é “frágil e subjetiva”, dificilmente “à altura das exigências morais pesadas que lhe são atribuídas” (PINKER, 2008).

Por vezes, essa noção parece mesmo não estar à altura das exigências que lhe são dirigidas, em especial quando ela é igualmente suscitada pelas partes em conflito em uma ação, para embasar / legitimar direitos contraditórios, ou quando sua invocação contraria a lei positiva. Seja, em alguns casos, sua aplicação, longe de parecer segura ou definitiva, parece mais apoiar-se em algum critério quase subjetivo. Ou, como escreve Paolo G. Carozza:

… podemos concordar com a existência de uma lacuna bastante grande entre a ideia universal de dignidade humana, no abstrato, e seu desenvolvimento na prática concreta da interpretação judicial... essa lacuna tem importantes implicações para a práticia jurídica em níveis nacionais e transnacionais (CAROZZA, 2008, p. 939 - grifei)

Um estudioso bastante mencionado na literatura sobre a questão da dignidade humana, Christopher McCrudden (citado por Paolo G. Carozza), ao analisar a aplicação prática do conceito na jurisprudência produzida nos Estados Unidos, África do Sul e Europa, relacionada a temas díspares como aborto, eutanásia, distribuição de benefícios sociais e pornografia, chegou à conclusão de que “'a aparência de comunhão [de universalidade] do conceito desaparece quando de sua aplicação e a dignidade humana

(e com ela os direitos humanos) é exposta como culturalmente relativa, profundamente contingente, dependente das políticas e valores locais, resultando em concepções significativamente divergentes, inclusive conflituosas'” (McCRUDDEN apud CAROZZA, 2008, p. 935)9.

Essas seriam, de maneira talvez muito resumida, as principais críticas à utilização judicial da noção de dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo: ela é vazia de conteúdo e seu caráter, a priori, universal, esbarra, quando de sua aplicação judicial, em políticas e valores locais (e até em valores pessoais, do próprio juiz).

Claro, essas críticas são aplicáveis a outros princípios também, como o da razoabilidade ou o da isonomia – princípios cujos conteúdos somente parecem ficar mais claros no momento mesmo de sua aplicação, quando da análise do caso concreto.

Mas deve-se perguntar se tais limitações/críticas sugerem, como aliás sugere Steven Pinker, que se deva simplesmente abrir mão do conceito de dignidade humana.

Não se pretende, aqui, negar que existam problemas quando da aplicação judicial do princípio da dignidade humana (como, aliás, de outros princípios) no contexto do neoconstitucionalismo.

Esses problemas (sobretudo o da ausência de um conteúdo fixo, a despeito da pretensão universal do princípio) são igualmente dramáticos no Brasil - mesmo que a noção, aqui, tenha sido alçada inclusive à condição de fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal).

Mas é de se perguntar, afinal, se é possível ou desejável abrir mão do princípio da dignidade humana, ou melhor, do uso judicial desse princípio - que, no extremo (não tão raro), pode ocasionar insegurança jurídica quando, por exemplo, é aplicado em detrimento de uma norma vigente considerada não compatível com a Constituição.

Para Steven Pinker (2008), a noção de “autonomia humana” é o bastante para resolver temas, diga-se, constrangidos por questões morais, sendo portanto desnecessária a invocação da ideia de dignidade humana (ele está tratando de bioética no artigo aqui citado, mas pode-se transpor suas ideias para o terreno jurídico).

Ele afirma que, na verdade, o...

consentimento informado serve como base da pesquisa e prática ética e claramente exclui os abusos que em primeiro lugar levaram ao nascimento da Bioética, como os pseudo-experimentos sádicos de Mengele na Alemanha nazista e a detenção de pacientes negros indigentes no infame estudo sobre a sífilis de Tuskegee. Uma vez que você reconheça o princípio da autonomia (…), a “dignidade” não adiciona nada. (PINKER, 2008 - grifei).

No âmbito jurídico, não apenas para os positivistas, mas para doutrinadores do realismo jurídico norte-americano, como o juiz Richard Posner, princípios como o da dignidade humana não teriam importância ou teriam importância quase marginal, mesmo na solução dos chamados “casos difíceis”.

Não se quer aqui dizer que Posner não acredite que exista algo como a dignidade humana, mas para ele essa noção não deve ser central no Direito contemporâneo. Ele inclusive sugere, como outros autores da análise econômica do Direito, que o ideal de maximização da riqueza é que deve lançar...

… bases não apenas para uma teoria dos direitos e dos remédios judiciais, mas para o próprio conceito de direito. A Lei frequentemente se define como uma ordem apoiada no poder coercitivo do Estado. Segundo essa definição, qualquer ordem vinda do poder soberano é direito. Mas isso distorce o sentido comum do termo. Portanto, já se sugeriu que a definição, para se manter fiel ao uso corrente do termo, deve incluir os seguintes elementos adicionais: (1) para se caracterizar como lei, uma ordem deve ser obedecida por aqueles a quem se destina; (2) deve tratar equitativamente aqueles que estejam na mesma posição em todos os aspectos importantes que a envolvam; (3) deve ser pública; (4) deve haver um procedimento de apuração da verdade quaisquer fatos necessários à aplicação da ordem, em conformidade com suas condições. Esses elementos fazem parte da teoria econômica do direito. Em uma perspectiva econômica ou de maximização da riqueza, a função básica do direito é a alteração de incentivos. Isso implica que a lei não impõe impossibilidades, pois uma ordem impossível de cumprir não alterará comportamentos” (POSNER, 2010, pp. 89/90 - grifei)

Observe-se, nesse trecho, a preocupção de Posner com a eficácia da lei e não somente com sua validade. Tal preocupção é, aliás, comum aos partidários da análise econômica do Direito - corrente teórica que supõe “'a aplicação da teoria econômica (seu método) para o exame da formação, estruturação e do impacto da aplicação das normas e instituições jurídicas (…), de modo a retirar 'as consequências do fenômeno jurídico da periferia, trazendo-as para o centro do debate'” (RIBERIO, apud, PAPP).

Ou seja, se no neoconstitucionalismo a ideia de justiça é prioritária e no juspositivismo a validade da norma é central, na análise econômica do Direito a eficácia e a ideia de eficiência são primordiais - sendo que, de acordo com Décio Zylbersztajn e Rachel Sztajn, “a eficiência está relacionada com a possibilidade de se atingir o melhor resultado com o mínimo de erro ou desperdício, ao passo que a eficácia diz respeito à capacidade [da norma] de produzir os efeitos desejados” (STAJN apud NIED, Paulo Sérgio).

Assim...

… a análise econômica do direito demonstra que tanto a eficiência quanto a eficácia devem ser constantemente perseguidas pelo Direito. Elementos de economia devem ser aplicados na formulação de políticas legislativas, na avaliação do impacto do direito sobre os indivíduos e, especialmente, na solução de problemas de alocação de recursos e de interpretação da lei. Nesse sentido, a análise econômica do direito deixaria de ser mero instrumento, passando a deter um papel importante no meio social como método de consecução da Justiça (FRANÇA, Phillip Gill apud NIED, p. 6)

Ademais, essa teoria tem como pressupostos básicos os seguintes: os indivíduos vivem em um mundo de recursos escassos e por isso devem fazer escolhas; os indivíduos tendem a ser maximadores racionais de suas satisfações; o Direito pode incentivar / desestimular comportamentos; o magistrado deve preocupar-se com a eficiência de suas decisões (que devem ter por parâmetros critérios como Ótimo de Pareto ou noção de eficiência de Kaldor - Hicks10); o magistrado deve preocupar-se com as consequências de seus julgados (PAPP, pp. 14-17).

De acordo com Posner, os juízes de seu país, na imensa maioria das vezes, julgariam constrangidos, não por conceitos como o da dignidade humana, mas pela preocupação com a eficiência e eficácia de suas decisões ou, ainda, com a preocupação de se maximizar riquezas11. Ao assim julgarem, sem se reportarem necessariamente a princípios como o já citado, não estão, contudo, agindo contrariamente à defesa de direitos, pois esses “são, na verdade, importantes corolários do princípio de maximização da riqueza” (POSNER, 2010, p. 87).

Ou seja (e nas palavras de Ronald Dworkin), na análise econômica do Direito não existe um “argumento moral independente em favor de se conceder ou não um determinado direito” - que é visto apenas como um resultado indireto da maximização de riqueza (DWORKIN, 1980, p. 207).

Ou, em outras palavras, para a análise econômica do Direito, de um modo geral, o importante é deixar o “bolo crescer”. A distribuição de riqueza e o atendimento de certos direitos é quase decorrência lógica desse crescimento. Dworkin faz algumas críticas interessantes a esse posicionamento, bem como ressalta os limites da ideia de que o juiz deve perseguir “a riqueza social como um 'alvo falso', no lugar de algum outro importante valor”. Mas também incorre em alguns argumentos talvez questionáveis, dentre os quais o de que a “maximização de riqueza não faz sentido como objetivo social, nem mesmo se considerada como um dentre outros objetivos” (DWORKIN, 1980, p. 220).

De todo modo, ao prescindir de valores como o da dignidade humana, a análise econômica do Direito não seria amoral, segundo Posner. Inclusive ele pretende lançar as bases de “um sistema moral fundado em princípios econômicos” que, “além de ser compatível com nossas intuições morais corriqueiras, pode estruturá-las” (POSNER, 2010, pp. 100/101).

Do que até agora dito, talvez não seja completamente equivocado concluir que Posner, como Steven Pinker, defendem uma espécie de substituição da noção de dignidade humana pela de autonomia humana, porquanto outro pressuposto importante da análise econômica do Direito é o de que...

… as pessoas agem como maximizadoras racionais de suas satisfações. Trata -se do 'traço comum à actuação da generalidade dos seres humanos: a tentativa de ter uma vida tão satisfatória quanto possível, dados os constrangimentos que se debatem. É nisso, afinal, que consiste o pressuposto da escolha racional' (RODRIGUES, 2007, p. 25). Em termos práticos, significa que, diante de diversas alternativas viáveis, as pessoas tendem a escolher aquela opção que melhor atenda a seus interesses pessoais (sejam eles quais forem). Ou seja, as pessoas buscam alcançar benefícios maiores com custos menores” (PAPP, P. 15)

Sobre essa 'substituição' da noção de dignidade pela de autonomia humana, ou melhor, sobre a exclusão do conceito de dignidade humana do universo jurídico, falar-se-á novamente adiante.

Por ora, há que se observar, ainda, quanto a Richard Posner, que ele não acredita, em relação aos “casos difíceis”, que a saída seja, por exemplo, a ponderação / aplicação de princípios como o da dignidade humana. Na verdade, ele pensa que o juiz, ao se defrontar com esses casos, julga, em última análise, “com base em algum forte sentimento moral ou mesmo crença religiosa”12 . Ou, pode-se acrescentar, com base em suas inclinações políticas, como tenta demonstrar artigo de Thomas Miles e Cass Sunstein, sobre a maior / menor incidência de votos “liberais” (ao menos acerca de temas polêmicos como aborto, discriminação de gênero, lei trabalhista...) e o maior / menor número de magistrados nomeados por presidentes democratas ou republicanos nas Cortes Federais dos Estados Unidos (MILES e SUSTEIN, 2007).

Obviamente essas colocações céticas de Posner causam polêmica, mas há que se perguntar se, no final das contas, não encerram alguma (incômoda) verdade.

Um caso inédito, para o qual não haja lei (ou precedente) aplicável, envolvendo direitos fundamentais contraditórios, pode ser resolvido de maneira racional? Ou a resolução seria inescapavelmente voluntariosa / emocional como afirma Richard Posner?

Essa pergunta é importante, pois de sua resposta depende em boa parte a legitimidade do uso judicial de princípios como o da dignidade humana. Se a conclusão é a de que esses casos, no fim das contas, são sempre resolvidos de forma subjetiva ou arbitrária, toda a reflexão em torno da aplicação de princípios constitucionais realizada nos últimos anos no Direito Ocidental mais ou menos afigura-se inócua – como também inócua afigura-se o próprio princípio da dignidade humana.

3.2. Críticas aos críticos da noção de dignidade humana

Não se pretende aqui, por óbvio, responder peremptoriamente às questões postas anteriormente.

O que se pretende fazer é apenas trazer à tona algumas críticas às críticas de Posner, pois nelas está embutido o entendimento (ou a crença?) de que é possível, mesmo nos casos difíceis, chegar-se a soluções racionais – ao invés de emocionais ou meramente voluntariosas.

Pois bem, há que se começar com Pinker e sua tese de que o mundo (pelo menos o da bioética) giraria melhor sem a ideia de dignidade humana (sendo suficiente a noção de autonomia): Habermas (2010) diagnostica uma tendência mais ou menos recente no sentido de se desvincular os direitos humanos da noção de dignidade humana. Assim ele escreve:

… Já que não é mais realista seguir Carl Schmitt e rejeitar inteiramente o programa dos direitos humanos, cuja força subversiva tem permeado todas as regiões ao redor do mundo, hoje o “realismo” assume uma forma diferente. A crítica 'desmascaradora' e direta está sendo substituída por uma crítica branda e deflacionária. Esse minimalismo novo afrouxa a reivindicação dos direitos humanos ao separá-los de seu impulso moral essencial, notadamente, a proteção da igual dignidade de cada ser humano.

Seguindo John Rawls, Keneth Baynes caracteriza essa abordagem como uma concepção 'política' (Baynes, 2009a) dos direitos humanos, em contraste com noções jusnaturalistas de direitos “inerentes” que cada pessoa supostamente possui em razão mesmo de sua natureza humana (HABERMAS, 2010, p. 478)

Um possível desdobramento das ideias de Pinker seria justamente essa desvinculação. Ele afirma que “todos os seres humanos possuem a mesma capacidade mínima de sofrer, prosperar, pensar e escolher” e por isso “ninguém tem o direito de constranger a liberdade, o corpo, a vida” de outrem (PINKER, 2008). No entanto, ele conclui, repita-se, que uma vez reconhecido “o princípio da autonomia (…) a 'dignidade' não adiciona nada”.

Ora, mas essas capacidades elencadas por Pinker é que historicamente fundamentam (e fundamentaram, como se viu em item anterior) a noção de dignidade humana que, por sua vez, dá legitimidade aos direitos humanos. Se “pensar e escolher” têm a ver com autonomia humana, no mínimo também têm a ver com dignidade – e inclusive foram capacidades suscitadas por diversos filósofos ao longo da história para salientar a diferença basilar que existe entre seres humanos e outros animais. Assim, a o retirar a dignidade da “capacidade mínima” de “escolher” ou “de pensar” que possui todo ser humano, retira-se dele justamente aquele valor que lhe permite a exigência de certos direitos – e esses ficam, portanto, separados “de seu impulso moral essencial”.

Mas esse desprezo de Steven Pinker pela noção de dignidade humana provavelmente encontra raízes na própria psicologia evolutiva.

É verdade que, desde Darwin, ganhou bastante força a concepção de que os homens não têm uma dignidade diferenciada, pois não são muito mais que “membros de uma espécie evoluída que se relaciona, por ancestralidade comum, a qualquer outra espécie na Terra”. Ou seja, a teoria evolutiva tende a enfraquecer certos entendimentos “éticos que se embasam em suposições de uma criação especial” do homem, de uma criação “à imagem de Deus”, etc13. Isso porque “não haveria separação biológica entre o homo sapiens e o restante do mundo vivente”, mas antes um “continuum através da história evolucionária, sem espécies criadas separadamente (…) ou dotadas de almas especiais”14 (FITZPATRICK, 2012).

Contudo, nas palavras de William FitzPatrick, nada disso...

… demonstra que a visão comum, de uma dignidade humana especial, seja falsa ou mesmo injustificada. Deve haver outras formas de se apoiar essa visão, que não dependam de suposições criacionistas. Muitos concordariam, por exemplo, que ainda que sejamos aparentados a outros animais, nós somos muito diferentes mesmo dos nossos parentes primatas mais próximos, como uma viagem ao zoológico, seguida por uma visita à Biblioteca do Congresso ou ao Metropolitan Museum of Art poderiam confirmar. A vastidão das diferenças entre humanos e outras formas de vida na Terra não é apagada ao se ressaltar que os seres humanos são como são devido a processos evolucionários contingentes... São essas diferenças reais – não importa como se originaram – que plausivelmente fundamenta as diferenças entre os status moral dos seres humanos e de outros animais. (FITZPATRICK, 2012 - grifei)

Ademais, a própria Biologia Evolutiva e a Genética Comparada podem, segundo o autor, “desempenhar um papel corretivo no que tange à ética normativa” ao, por exemplo, serem “usadas para minar falsas alegações acerca de raça, que embasam afirmações racistas”. Já a Psicologia Experimental pode ser usada para, de maneira geral, expor “típicas armadilhas no que tange a julgamentos morais e comportamento – tendências em direção à crueldade em condições de desigualdade de poder, ou em direção a uma condenação moral exagerada quando se experiencia descontentamento ou stress” (FITZPATRICK, 2012).

Finalmente, há de se esclarecer que S. Pinker, no artigo mencionado, basicamente reclama da criação, em 2001, de um “Conselho do Presidente sobre Bioética” (President's Council on Bioethics) que teria a função de opinar quanto a “questões de política relacionadas à ética no que tange à inovação biomédica”. Também critica uma publicação desse Conselho, na qual se tentou “colocar a dignidade em base conceitual mais firme”, dizendo, em resumo, que nenhum dos conselheiros é cientista e que o órgão na verdade possui uma “agenda política radical, alimentada por impulsos religiosos fervorosos contra a biomedicina americana”.

Talvez, então, parte da diatribe de Pinker seja na verdade direcionada ao posicionamento religioso radical de alguns membros do citado conselho - e não à noção de dignidade humana em si. Ou, talvez, o que é mais provável, a acusação de posicionamento religioso radical seja, ao menos em boa parte, explicada pela defesa da noção de dignidade humana a que se propuseram aqueles membros.

Em todo caso, o importante é observar que mesmo Habermas não nega que existem, por vezes, contradições entre a “difusão retórica dos direitos humanos” e o seu “emprego incorreto” para legitimar “jogos políticos” usuais em diversas áreas. Contudo, o programa dos direitos humanos, embasado na ideia de dignidade humana, constitui “uma utopia realista”, pois não pinta “imagens enganosas de uma utopia social que garanta felicidade coletiva, mas ancora o ideal de uma sociedade justa nas instituições de Estados constitucionais” (HABERMAS, 2010, p. 476).

Mas é verdade que Pinker não deve concordar com Habermas nesse ponto. Quanto a Posner, por óbvio muitas críticas que ele faz ao “formalismo jurídico” e em defesa do realismo são proveitosas (mesmo em países de tradição civilista). Especialmente interessantes são algumas de suas assertivas honestas quanto às atividades do juiz e à postura humilde que esse deve adotar, pois, segundo o autor, é antes de tudo uma espécie de trabalhador do Poder Judiciário (POSNER, 2008).

Contudo, o problema de Posner (embora muitos não considerem esse seu ceticismo extremado um problema) é evitar enfrentar a dimensão moral que, sem dúvida, desafia o Direito, sobretudo, como já se disse aqui, após o advento da noção contemporânea de dignidade humana.

Repita-se que, para ele, os chamados “casos difíceis” - e os desafios morais que esses casos por vezes impõem ao julgador – são resolvidos com base “em algum forte sentimento moral ou mesmo crença religiosa” do julgador. Não se está negando a existência de sentimentos morais, mas Posner, de fato, não acredita em uma resolução racional para essas questões.

Já o neoconstitucionalismo, de uma maneira geral, tenta uma resposta para esse estado de coisas:

Quando duas normas de igual hierarquia colidem em abstrato, é intuitivo que não possam fornecer, pelo seu relato, a solução do problema. Nestes casos, a atuação do intérprete criará o Direito aplicável ao caso concreto.

A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de ponderação. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por não ser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas. Tampouco podem ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico, cronológico e da especialização – quando a colisão se dá entre disposições da Constituição originária. Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores (…) é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. O conceito chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade” (BARROSO, p. 14).

Pode-se argumentar que a ponderação é uma resposta às vezes um tanto frágil,pois ainda implica um bom grau de subjetividade, até porque, o próprio princípio da razoabilidade (como o da dignidade humana) não possui um conteúdo fixo.

Mas esses argumentos não impediram (ou impedem) teóricos os mais diversos de tentarem construir um “modelo racional do processo de ponderação” (OLIVEIRA, 2013), desde os expoentes da “teoria do discurso” (Jürgen Habermas, Robert Alexy e Klaus Günther) até Ronald Dworkin.

Dworkin, aliás, foi talvez quem melhor debateu as ideias não apenas de Posner, mas as de H. L. A. Hart (sobretudo ao defender que o juiz, nos casos difíceis, não tem “o 'poder discricionário' para decidir o caso de uma maneira ou de outra”, mas na verdade decide com base em “padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões” - DWORKIN, 2002, pp. 36 e 127).

De todo modo, como bem afirma Cláudio L. De Oliveira, Dworkin, em seu ataque ao positivismo jurídico, afirma que...

… na argumentação jurídica são encontrados “padrões” (standards) de distintas espécies, entre eles aqueles que funcionam como “regras” (rules), os que funcionam como “princípios” (principles) ou ainda como “políticas” (politics).5 Entre princípios e políticas, ainda que o próprio Dworkin afirme usar tais termos de modo muitas vezes intercambiável, há uma importante distinção. Política é definida como um tipo de padrão que estabelece um objetivo social a ser alcançado, como por exemplo a promoção do crescimento econômico, a redução do desemprego e a redução dos acidentes de trabalho. Por sua vez, princípios são definidos como o tipo de padrão que formula uma “exigência da justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade” e que deve ser observada em virtude de seus próprios termos e não porque é capaz de promover algum estado de coisas visto como socialmente desejável. No exemplo do próprio Dworkin, o padrão segundo o qual “ninguém deve beneficiar-se de sua própria torpeza” é um princípio, ao passo que o padrão que estabelece que acidentes automobilísticos devem ser reduzidos é uma política. (OLIVEIRA, 2013, p. 04 - grifei)

Quanto à distinção entre regras e princípios, que, como lembra Oliveira, Dworkin considera que tem “natureza lógica”, ele assim escreve:

Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira tudo -ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida (…) ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, 2002, p. 39)

Já os princípios, mesmo aqueles que...

mais se assemelham a regras não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas. Dizemos que o nosso direito respeita o princípio segundo o qual nenhum homem pode beneficiar-se dos erros que comete. Na verdade, é comum que as pessoas obtenham vantagens, de modo perfeitamente legal, dos atos jurídicos ilícitos que praticam. O caso mais notório é o usucapião (…). Há muitos exemplos menos dramáticos. (…) Se um homem foge quando está sob fiança e cruza a fronteira estadual para fazer um investimento brilhante em outro estado, ele poderá ser remetido de volta à prisão, mas ele manterá os lucros.

(…)

Um princípio como “Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos” não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária . Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas (ainda assim) necessita de uma decisão particular.

Se um homem recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa como resultado direto de um ato ilícito que tenha praticado para obtê-la, então essa é uma razão que o direito levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la. Pode haver outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra direção – por exemplo, uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que limite a punição ao que foi estimulado pelo Poder Legislativo. Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como uma razão que inclina numa ou outra direção. (DWORKIN, 2002, pp. 41/42 - grifei)

A importância que Dworkin dá à distinção entre regras e princípios, pode-se dizer, talvez esteja relacionada a sua ambição de legitimar o princípio como “uma razão que inclina numa ou outra direção”. Observe-se que Dworkin não parece negar a existência de uma subjetividade do julgador, mas afirma peremptoriamente que o princípio (que “enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção”) “deve ser levado em conta pelas autoridades públicas”.

Ou seja, ele acredita que princípios podem efetivamente constranger decisões judiciais “numa ou outra direção” e, nesse sentido, possui visão bastante parecida com grande parte da doutrina brasileira sobre a questão, inclusive, por exemplo, com a visão de Arnaldo Süssekind, para quem “Princípios são enunciados genéricos, explicitados ou deduzidos do ordenamento jurídico pertinente, destinados a iluminar tanto o legislador, ao elaborar as leis dos respectivos sistemas, como o intérprete, ao aplicar as normas ou sanar omissões” (SUSSEKIND, 1999, p. 56 – grifei).

Para Dworkin, portanto, o juiz não tem (ou não deveria ter) o “'poder discricionário' para decidir o caso de uma maneira ou de outra” (DWORKIN, 2002, p. 127). Para ele a decisão em um caso difícil “é uma decisão sobre que direitos as partes efetivamente têm”(DWORKIN, 2002, p. 164 - grifei). Sendo assim, “as razões que a autoridade oferece para seu juízo devem ser do tipo que justifica o reconhecimento ou a negação de um direito” (DWORKIN, 2002, p. 163).

E observe-se, ainda, que ele sequer descarta o caráter generalizante, algo vazio de conteúdo, do princípio: “Um princípio (...) não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária”. No entanto, tal “padrão” “deve ser levado em conta”.

Essa (a normatização dos princípios) é uma das respostas do neoconstitucionalismo ao constrangimento moral cada vez maior que vem sofrendo o Direito, desde que se fortaleceu a ideia de dignidade humana e de direitos humanos. O que ocasionou, como observa Habermas, uma “tensão entre direitos humanos universais e direitos civis particulares” (HABERMAS, 2010, p. 478) e mesmo colisões de direitos humanos entre si (até porque “as Constituições modernas são documentos dialéticos, que consagram bens jurídicos que se contrapõem” - BARROSO, p. 14).

Claro que algumas conclusões que se pode retirar de escritos de Richard Posner e outros, no sentido de que a utilização de princípios, como o da dignidade humana é muitas vezes incapaz de neutralizar o alto grau de subjetivismo de certas decisões judiciais, causam perplexidade. Mas é de se perguntar se essa perplexidade deve ocasionar a desistência da “busca pela integridade” na forma de “raciocínio jurídico” (DWORKIN apud MILES e SUSTEIN, 2007).

Paolo Carozza, neste trabalho já mencionado, embora não negando a desconfortável ausência de um conteúdo fixo para o princípio da dignidade humana, afirma que detectou, quando da aplicação da referida noção, uma “incoerência judicial bem menos aparente em casos envolvendo pena de morte, por exemplo”, em contraposição ao estudo de McCrudden, aqui também já citado. Ademais, diz ele, “não é óbvio que a existência de uma intensa controvérsia nas bordas de uma discussão legal necessariamente prejudique a afirmação do valor e do status de princípios básicos como o da dignidade humana” (CAROZZO, p. 938).

Aliás, o próprio McCrudden (um dos críticos mais incisivos da noção) afirma que a ideia de dignidade humana não é insignificante. Apesar de seu “'alto grau de generalidade e incompletude'”, ela serviu para “'catalisar a ação política em defesa dos direitos humanos e seu reconhecimento na lei positivada'”. Esses direitos, por sua vez, são “'vastamente aceitos e empregados por juízes na interpretação da lei'” e são “'suficientemente robustos em substância para desafiar a legitimidade de um vasto contingente de sistemas políticos e econômicos que, em tempos diversos, governaram de maneira sistematicamente contrária ao bem da pessoa humana'” (McCRUDDEN apud CAROZZA, 2008, p. 935).

Por fim, vale mencionar o que Dworkin escreve sobre a dignidade humana:

Quem quer que professe levar os direitos a sério (…) deve aceitar, no mínimo, uma ou duas ideias importantes. A primeira é a ideia vaga, mas poderosa, da dignidade humana. Essa ideia, associada a Kant, mas defendida por filósofos de diferentes escolas, pressupõe que existem maneiras de tratar um homem que são incompatíveis com seu reconhecimento como um membro pleno da comunidade humana, e sustenta que tal tratamento é profundamente injusto.

A segunda é a ideia, mais familiar, da igualdade política. Esta pressupõe que os membros mais frágeis da comunidade política têm direito à mesma consideração e ao mesmo respeito que o governo concede a seus membros mais poderosos...

Faz sentido dizer que um homem tem um direito fundamental contra o governo, no sentido forte, como a liberdade de expressão, se esse direito for necessário para proteger sua dignidade ou sua posição enquanto detentor da mesma consideração e do mesmo respeito, ou de qualquer outro valor pessoal da mesma importância. É somente nesses termos que essa afirmação tem sentido. (DWORKIN, 2002, pp. 304/305 - grifei)

Aqui vemos, novamente, a ideia de que a noção de dignidade humana dá sentido a direitos humanos, como o da liberdade de expressão. Aliás, nesse mesmo sentido consigna Alexandre de Moraes, segundo o qual a dignidade da pessoa humana...

concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta sigularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida... (MORAES, 2006, p. 16).

Mas é verdade que, a despeito desses argumentos, realistas, positivistas e outros ainda julgam que uma “leitura moral do Direito” (pelo menos aquela que implique entender-se a dignidade humana como um princípio normativo) simplesmente não é fundamental.

De fato, a relação entre moralidade e Direito parece uma dessas questões longe de um termo que satisfaça realistas e moralistas, que satisfaça desde os que desprezam a noção de dignidade humana até os que a entendem como fundamental. Se é que uma conclusão qualquer sobre a matéria será realmente possível um dia.

De todo modo, pensa-se, aqui, que os desconfortos da aplicação judicial do conceito de dignidade humana são, na maior parte das vezes, suportáveis - se comparados ao custo humano de se prescindir, totalmente, dessa noção (e da “carga moral” que ela trouxe para o Direito).


4. Dignidade, embriaguez habitual e trabalho nas recentes decisões do TST

Viu-se um pouco da discussão em torno do uso judicial do princípio da dignidade humana, bem como uma parte da problemática que esse uso encerra, sendo pertinente passar-se, então, à análise da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho sobre a questão da embriaguez e trabalho - tentando-se desvelar se e como o princípio da dignidade humana é utilizado nesses casos.

Já se disse, neste trabalho, que o art. 482, “f”, da Consolidação das Leis do Trabalho pode ser entendido como parte de um esforço estatal para se conter o alcoolismo em massa, surgido na esteira do crescimento industrial. Arnaldo Süssekind, por exemplo, afirma que “em 1943, quando foi aprovada a CLT, os autores do seu projeto tiveram em mira o alcoolismo” (SÜSSEKIND, 2010, p. 353 - grifei).

A guerra contra o alcoolismo, por sua vez (como já se aventou aqui), pode ser entendida como um esforço de se disciplinar e adequar comportamentos e hábitos dos trabalhadores ao mundo do trabalho industrial então nascente; pode ser entendido, enfim, como resultado do processo que teve como desdobramento a centralidade do trabalho na vida dos homens ocidentais desde, pelo menos, o século XVIII.

Também afirmou-se, ao longo deste trabalho, que a noção de dignidade humana, tal como a concebemos hoje, engendrou-se em detrimento da noção de honra. Assim, se a honra é um valor que se funda no desempenho de certos papéis e no atendimento de certos deveres (inclusive de autoaperfeiçoamento), sendo relacional (na medida em que eleva quem a detém acima dos demais) e passível de ser perdida; a dignidade é um valor inerente a todos os seres humanos (prescindindo, portanto, do exercício de qualquer dever / papel social), coloca todos os homens em pé de igualdade e é fundamento de certos direitos, ao invés de deveres.

Salientou-se ainda, neste trabalho, que embora a noção de dignidade humana prepondere sobre a de honra nos dias de hoje, isso não quer dizer que a noção de honra tenha desaparecido por completo. Pelo contrário, as exigências de autocontrole e de disciplina no mundo do trabalho talvez sejam permanências da cultura da honra - não se devem apenas a fenômenos históricos mais recentes como o fordismo.

Pois bem, o artigo 482, “f”, da Consolidação das Leis do Trabalho, ao afirmar que a embriaguez habitual ou em serviço é falta grave, traz em seu bojo a noção tradicional de dignidade humana (honra) e não a noção contemporânea de dignidade. O homem / trabalhador aí é visto (não se está aqui dizendo que a visão seja errada ou correta) como alguém que não pode abandonar-se a excessos (embriaguez habitual), pois corre o risco de perder seu emprego. Ou seja, do empregado é exigida “a observância de certos princípios socialmente estipulados”, no caso, o dever de não se entregar a “prazeres sensuais que não fazem jus à dignidade do homem” (SENSEN, 2010, p. 76).

Nesse sentido (pensa-se aqui), deve-se entender o que Délio Maranhão escreve a respeito do citado dispositivo:

Embriaguez habitual ou em serviço. Trata-se aqui, a rigor, de duas faltas. Uma importando violação da obrigação geral de conduta do empregado, refletindo-se no contrato de trabalho (embriaguez habitual); outra, violação da obrigação específica de execução do contrato (embriaguez em serviço).

(…)

… a embriaguez habitual, fora do serviço, nada mais constitui que uma forma especial de incontinência de conduta. A habitualidade revela o vício, o desregramento. Embora o empregado nenhuma falta haja cometido no trabalho, embora aí compareça, sempre, sem o menor sinal de intoxicação, aquele vício, a que se entrega fora do trabalho, fá-lo perder a confiança do empregador. Não é, portanto, uma 'farra' esporádica, ou o simples hábito de beber, moderadamente, sem perder a compostura, que caracterizam a violação à obrigação geral de conduta do empregado.” (MARANHÃO, 2005, p. 585 - grifei)

O entendimento de Délio Maranhão, exprime, como o próprio dispositivo Consolidado, o entendimento de que o empregado deve ser capaz de atender certos deveres de autocontrole e de que possui autonomia para entregar-se ou não ao vício. Ou seja, tanto o mencionado dispositivo Consolidado quanto as palavras do doutrinador encerram em si não apenas a noção de honra, como a ideia de autonomia humana em detrimento da noção contemporânea de dignidade.

De todo modo, a jurisprudência do TST já foi no sentido de se aplicar o art. 482, “f”, da CLT quando configurada a embriaguez habitual (ainda que configurada, também, a dependência química). In verbis15:

RECURSO             DE             REVISTA            DA            RECLAMADA.JUSTA CAUSA - EMBRIAGUEZ. O alcoolismo, apesar de ser atualmente considerado doença, não pode ser desconsiderado como fator de dispensa por justa causa, visto que tal conduta está tipificada expressamente no art. 482, letra "f", da CLT, como ensejadora de falta grave. Revista conhecida parcialmente e provida para julgar improcedente a Reclamatória. (RR - 326795 -41.1996.5.06.5555 Data de Julgamento: 12/08/1999, Relator Juiz Convocado: Levi Ceregato, 5ª Turma, Data de Publicação: DJ 03/09/1999 - grifei).

JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. O alcoolismo é uma figura típica de falta grave do empregado, ensejadora da justa causa para a rescisão do contrato de trabalho. Mesmo sendo uma doença de conseqüência muito grave para a sociedade é motivo de rescisão contratual porque a lei assim determina. O alcoolismo é um problema da alçada do Estado que deve assumir o cidadão doente, e não do empregador que não é obrigado a tolerar o empregado alcoólatra que, pela sua condição, pode estar vulnerável a acidentes de trabalho, problemas de convívio e insatisfatório desempenho de suas funções. Revista conhecida e desprovida. (RR - 524378-14.1998.5.15.5555 Data de Julgamento: 18/08/1999, Relator Juiz Convocado: Lucas Kontoyanis, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 17/09/1999 - grifei).

Há ainda acórdãos, nesse sentido, publicados em 2003, 2004 e 2005:

RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA. EMBRIAGUEZ. Mesmo revelando a decisão atacada profunda preocupação social, pois caracterizada dependência alcóolica, não cabe ao empregador, contra vontade do empregado, encaminhá-lo à previdência social , além do quê, embora necessária revisão do dispositivo legal, artigo 482, alínea f da CLT, tal hipótese continua gerar a despedida motivada, hipótese caracterizada nos autos. Recurso de revista conhecido por divergência jurisprudencial e por violação legal e provido. (ED-E -RR - 586320-51.1999.5.10.5555 Data de Julgamento: 18/12/2002, Relator Juiz Convocado: João Ghisleni Filho, 5ª Turma, Data de Publicação: DJ 14/03/2003 - grifei).

JUSTA CAUSA - EMBRIAGUEZ NO LOCAL DE TRABALHO - O alcoolismo, apesar de ser atualmente considerado doença , está tipificado na CLT como ensejador de falta grave, acarretando a justa causa (ex vi do artigo 482, alínea "f", da CLT). Recurso de Revista conhecido e provido para julgar improcedente a Reclamação, invertidos os ônus da sucumbência, isento. (RR - 572919-12.1999.5.09.5555 Data de Julgamento: 06/04/2004, Relator Ministro: Carlos Alberto Reis de Paula, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 07/05/2004 - grifei).

RECURSO DE REVISTA. 1. EMBRIAGUEZ HABITUAL E NO SERVIÇO. JUSTA CAUSA. O regional condenou a reclamada à readmissão do reclamante por entender que a embriaguez é doença que deve ser tratada, não a considerando como motivo para dispensa por justa causa. Revista conhecida por aparente violação legal e divergência jurisprudencial. No mérito, não obstante os judiciosos argumentos expendidos nas instâncias ordinárias, entendo que a moléstia que acometeu o reclamante, não obstante possa ser reconhecida como tal , é causa de dispensa do empregado por justa causa, a teor do entendimento contido no art. 482, “f”, da CLT. Impende ressaltar que não se pode impingir ao empregador a obrigação de manter em seu quadro empregado que nitidamente não tem condições de exercer suas atividades, colocando em risco não só a sua vida mas também a de seus companheiros de trabalho e da população em geral. A justificativa para manutenção do vínculo, malgrado louvável, não encontra eco na legislação trabalhista, que prevê, no caso, a possibilidade de rompimento brusco do liame empregatício. Recurso de revista conhecido e provido.

(E-RR - 638368-44.2000.5.21.5555 Data de Julgamento: 20/04/2005, Relator Juiz Convocado: Luiz Ronan Neves Koury, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 13/05/2005 - grifei).

Em primeiro lugar, insta salientar que esse posicionamento “legalista” visto acima, mais comum no final dos anos de 1990 ou mesmo nos primeiros anos da década de 2000, parece corroborar as críticas de alguns partidários da abordagem econômica do Direito no Brasil, que afirmam que o uso da noção de dignidade humana e a decorrente flexibilização da lei não é resultado direto da edição da Constituição de 1988. Segundo esses críticos, o constituinte não pretendeu que o Direito brasileiro deixasse suas origens romano-germânicas ou que o juiz flexibilizasse a aplicação de leis ou pusesse em cheque o princípio da separação entre poderes. O uso de princípios como o da dignidade humana, por exemplo, nas decisões do STF, remonta a no máximo 1998, de modo que a “postura neoconstitucionalista é resultado de um vácuo de poder, originado da fraqueza do Congresso” (GICO JÚNIOR, 2010).

Outros teóricos, como Luís Roberto Barroso, afirmam que o marco histórico “da postura neoconstitucionalista” no Brasil é, de fato, a Constituição de 1988 “e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar” (BARROSO, 2006, p. 3). Pode-se dizer que Barroso talvez esteja correto em sua assertiva, afirmando-se que a fraqueza do Poder Legislativo, no Brasil como em outros países, não originou a postura neoconstitucional, nem a preponderância do Poder Judiciário. Talvez a fraqueza do Legislativo é que tenha sido originada com o fortalecimento do neoconstitucionalismo e sua pretensão de criar um “Estado Constitucional”.

Há que se ressaltar que Nicola Matteucci percebe fenômeno parecido (enfraquecimento do Legislativo) quando do surgimento do próprio Constitucionalismo, durante os séculos XVII - XVIII:

“O princípio da primazia da lei, a afirmação de que todo poder político tem de ser legalmente limitado, é a maior contribuição da Idade Média para a história do Constitucionalismo. Contudo, na Idade Média, ele foi um simples princípio, muitas vezes pouco eficaz, porque faltava um instituto legítimo que controlasse, baseando-se no direito, o exercício do poder político (…). A descoberta e aplicação concreta desses meios é própria, pelo contrário, do Constitucionalismo moderno: deve-se particularmente aos ingleses, em um século de transição como foi o século XVII, quando as Cortes judiciárias proclamaram a superioridade das leis fundamentais sobre as do Parlamento, e aos americanos, em fins do século XVIII, quando inciaram a codificação do direito constitucional (…).

(…)

Convém ainda determo-nos um pouco em uma nova definição do Constitucionalismo, não muito frequente na nossa literatura política, que se baseia na oposição entre direito e poder, racionalidade e força. Parte de uma clara distinção entre Constituição e Governo. A Constituição, por ser anterior e superior ao Governo, pode limitar seu poder; quando violada, o Governo se torna anticonstitucional, arbitrário e ilegítimo.

(…)

Assim, em um sistema político representativo, que realize o princípio do Governo limitado, a função judiciária acabará por adquirir um peso bastante maior no equilíbrio constitucional do que em um sistema baseado na mera separação dos poderes. Voltamos assim ao outro grande tema de Montesquieu, que acompanha o da divisão do poder político entre os Estados do reino: o da independência da magistratura. Esta só poderá ser verdadeiramente efetiva em um Governo limitado; isso porque o primado do direito ou da jurisdictio sobre o poder exige o robustecimento da função que visa justamente à defesa do mesmo direito.

Esta transposição do equilíbrio constitucional do legislativo para o juidiciário, esta nova relação entre o poder e o direito indicam certamente uma ruptura com a nossa tradição política, uma ruptura que não é ainda plenamente clara para a nossa cultura política...” (MATEUCCI, 2000, pp. 255/256)

Ou seja, o fortalecimento do Judiciário havido nos Estados modernos e hoje, nos Estados contemporâneos, causa perplexidade, mas parece resultar do próprio processo de constitucionalização (e neoconstitucionalização) dos mesmos, bem como do “primado do direito”.

Em segundo lugar, repita-se, nos arestos acima colacionados as decisões emanadas pelo TST foram em estrita consonância com a lei positivada: configurada a embriaguez habitual, em todas se concluiu pela dispensa motivada do empregado, com aplicação do art. 482, “f”, da CLT.

Interessante notar que também em todas já estava evidente o entendimento do alcoolismo como doença, assim reconhecida pela OMS. No entanto, isso não se afigurou motivo suficiente, ao menos para aqueles julgadores, para deixar de se aplicar o citado dispositivo legal. Nesse sentido é que se pensa, aqui, que a mudança de parâmetros no julgamento dessa questão no âmbito do TST, desde 2001, mas de forma reiterada apenas a partir de 2006, não se deveu apenas ao reconhecimento do alcoolismo como moléstia (embora as decisões sempre se reportem a esse fato), mas também à própria preponderância da ideia de dignidade humana – mesmo que o princípio muitas vezes só tranpareça nos recentes julgados de forma implícita.

Cabe observar que o entendimento de que um empregado considerado doente não deve ser meramente 'descartado' (dispensado), mas receber apoio / tratamento apropriado, inclusive a despeito de dispositivo legal que preceitue que poderia ser dispensado por justa causa, só pode ter como fundamento implícito a noção de dignidade humana.

Aliás, poder-se-ia mesmo dizer que o entendimento do alcoolismo como doença – e não como mera “falha de caráter” - está bastante relacionado ao surgimento da noção contemporânea de dignidade humana em detrimento da noção de honra (sem se descartar, por óbvio, os fundamentos físicos/biológicos envolvidos no desencadeamento dessa síndrome de dependência, que levaram a OMS a assim considerá-la).

De todo modo, cabe afirmar que Arnaldo Süssekind já afirmou, quanto ao art. 482, “f”, Consolidado, que...

É certo que o trabalhador viciado no álcool ou na droga deve ser considerado um doente. O ideal é que a lei facultasse, na primeira constatação da falta, a suspensão de contrato de trabalho, com a obrigação do empregado submeter-se a devido tratamento, só autorizando a sua rescisão se persistisse no vício. Mas o que não se pode impor é a presença e serviço de um empregado com redução do seu “estado de consciência, lucidez, alerta ou vigilância”, sobretudo nos transportes e na indústria, capazes de causar acidentes e, em qualquer estabelecimento, de tratar colegas e fregueses de maneira imprópria. (SÜSSEKIND, 2010, p. 354)

Seguindo esse tipo de entendimento (que sem dúvida insculpe a noção contemporânea de dignidade humana), começam a surgir decisões do TST, a partir de 200116, no sentido de não se aplicar o artigo 482, “f”, da CLT àqueles casos em que delineado quadro fático segundo o qual o empregado é alcoolista. In verbis:

ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. Não se pode convalidar como inteiramente justa a despedida do empregado que havia trabalhado anos na empresa sem cometer a menor falta, só pelo fato de ele ter sido acometido pela doença do alcoolismo, ainda mais quando da leitura da decisão regional não se extrai que o autor tenha alguma vez comparecido embriagado no serviço. A matéria deveria ser tratada com maior cuidado científico, de modo que as empresas não demitissem o empregado doente, mas sim tentasse recuperá-lo, tendo em vista que para uma doença é necessário tratamento adequado e não punição. (…) Revista parcialmente conhecida e parcialmente provida. Processo: RR - 383922-16.1997.5.09.5555 Data de Julgamento: 04/04/2001, Relator Ministro: Vantuil Abdala, 2ª Turma, Data de Publicação: DJ 14/05/2001.

Ora, embora não haja uma invocação explícita da noção de dignidade humana, por certo nessa ementa faz-se presente a ideia de que o empregado, por “ter sido acometido pela doença do alcoolismo”, não pode ser meramente dispensado. Esse deve, em resumo, ser recuperado, deve ser tratado como fim em si, não como meio.

Transparece, aqui, sem dúvida a defesa da noção (contemporânea) de dignidade humana, seja, aquela que não é perdida mesmo por quem, infelizmente, sucumbe a uma doença como o alcoolismo (contrariamente à noção tradicional de dignidade ou honra, vista no excerto de Délio Maranhão).

No mesmo sentido, o seguinte julgado, de 2003:

JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO CRÔNICO. ART. 482, 'F', DA CLT. APLICABILIDADE. 1. O alcoolismo crônico é formalmente reconhecido como doença pelo Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde - OMS, que o classifica sob o título de "síndrome de dependência do álcool" (referência F- 10.2), o que afasta a aplicação do art. 482, "f", da CLT. 2. O alcoolismo crônico gera compulsão que impele o alcoolista a consumir descontroladamente a substância psicoativa e retira-lhe a capacidade de discernimento sobre seus atos. 3. Por conseguinte, ao invés de motivar a dispensa por justa causa, deve inspirar no Empregador, até por motivos humanitários e porque lhe incumbe responsabilidade social, atitude dirigida ao encaminhamento do Empregado a instituição médica ou ao INSS, a fim de que se adote solução de natureza previdenciária para o caso. 4. Recurso de revista de que não se conhece. (ED-RR - 561040-40.1999.5.15.5555 Data de Julgamento: 18/06/2003, Redator Ministro: João Oreste Dalazen, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 29/08/2003).

Do voto mencionado, retira-se o seguinte:

É certo que o artigo 482, alínea “f”, da CLT, como se sabe, estabelece como falta passível de configurar justa causa para dispensa a embriaguez habitual ou em serviço:

(…)

Sucede que, a meu juízo, a hipótese que se delineia nos presentes autos não se amolda à situação descrita pelo aludido dispositivo legal, o que se depreende do quanto assentado pelo Eg. Regional.

Infere do v. acórdão recorrido, ao indicar expressamente que a situação era de “típico caso de alcoólatra crônico” (fl. 107), trata-se aqui de “alcoolismo crônico”, catalogado como doença pela Organização Mundial de Saúde – OMS...

(…)

O alcoolismo constitui, portanto, grave e angustiante problema social. É uma chaga social que aflige todos os segmentos da sociedade, todas as classes sociais, drama familiar penoso para todos quantos o vivenciam e situação, portanto, em que a parte merece compreensão e tolerância da sociedade e, em particular, do Empregador, que deveria encaminhá-lo para tratamento médico. A despedida sumária do obreiro, longe de representar solução, acaba por agravar a situação já aflitiva do alcoolista.

Por se tratar de enfermidade, cumpria ao Empregador encaminhar para tratamento médico junto ao INSS, provocando o afastamento desse empregado do serviço e, por conseguinte, a suspensão do contrato de trabalho, e não o rigor excessivo com que se houve, tomando a decisão de dispensar o Empregado por justa causa. Penso que há aí certa incompreensão, ou, quando menos, falta de caridade, de magnanimidade para com situação grave, séria e dolorosa, do ponto de vista pessoal e social. Convém recordar, no particular, que as empresas têm também responsabilidade social decorrente de mandamento constitucional.

Cuidando-se, na presente hipótese, de alcoolismo crônico, entendo, em conclusão, que se o Empregador optasse por se desvencilhar do Empregado alcoolista – embora se me afigure uma opção pouco caritativa –, o máximo que poderia fazer seria uma despedida sem justa causa. O reconhecimento da despedida por justa causa, nesta circunstância, em um quadro de um empregado com seis anos de serviço, cuja página funcional se tem por imaculada, parece-me de rigor draconiano, inconcebível e inaceitável, do ponto de vista da justiça social.

Reputo, assim, incólume o artigo 482, alínea “f”, da CLT.

Neste caso, o Exmo. Ministro João Oreste Dalazen concluiu que a aplicação do art. 482, “f”, da CLT não seria possível, pois haveria dissonância entre o fato narrado e o conceito contido no citado dispositivo. Essa é uma outra maneira de se dizer que a “embriaguez habitual”, no caso, não é violação da obrigação geral de conduta, mas doença (síndrome de dependência alcoólica).

De todo modo, como a embriaguez habitual em si certamente se fez presente no caso concreto, pensa-se que a decisão ainda poderia também ser no sentido de se aplicar o dispositivo. Não o foi porque, além do magistrado ter concluído que “a hipótese (...) não se amolda à situação descrita pelo aludido dispositivo legal”, também amparou-se na ideia de que o alcoolista “merece compreensão e tolerância da sociedade e, em particular, do Empregador, que deveria encaminhá-lo para tratamento médico”.

Ou seja, novamente percebe-se a noção de que o empregado, doente, não pode ser simplesmente dispensado, mas deve receber tratamento – o que é outra maneira de dizer que possui dignidade humana.

Pode-se afirmar que nos arestos abaixo colacionados o mesmo posicionamento é em geral adotado (não aplicação do art. 482, “f”, da CLT), ainda que no acórdão relativo ao AIRR-140240-74.1999.5.04.0022 alerte-se para o direito potestativo do empregador de dispensar, sem justa causa, o empregado alcoolista (cabe referir que na decisão do RR-529000-74.2007.5.12.0004 foi reconhecido o direito de empregado alcoolista da ECT, dispensado por justa causa, à reintegração; o mesmo concluindo-se quanto a empregado da Fundação da Universidade Federal do Paraná - RR-130400-51.2007.5.09.0012).

Cabe ainda notar que no acórdão relativo ao RR-1957740-59.2003.5.09.0011, já mencionado, foi deferida indenização por dano moral a família de empregado alcoolista que se suicidou após ter sido dispensado com base no art. 482, “f”, da CLT.

Em outros julgados (p. ex., AIRR-2412-13.2010.5.15.0000, publicado em 19/11/2010), admitiu-se a possibilidade de aplicação do art. 482, “f”, da CLT, desde que o empregado tivesse sido submetido a punições mais brandas antes. No E-RR–638368-44.2000.5.21.5555, julgado pela SBDI-1 e publicado em 14/11/2006, admitiu-se a justa causa após ter havido “tratamento contra a moléstia, que não obteve sucesso”.

Vale também mencionar o acórdão relativo ao RR-38840-68.2006.5.17.0132, em que o TST negou indenização por dano moral a família de empregado alcoolista que faleceu em decorrência da doença (em virtude de cirrose, insuficiência hepática aguda, insuficiências renal e insuficiência respiratória), porquanto não configurada a culpa da empregadora que, aliás, “encaminhou o ex-empregado a tratamento específico e à entrevista no serviço social” (observe-se que no voto do Ministro Walmir Oliveira da Costa, no RR-1957740-59.2003.5.09.0011, a morte do empregado, por meio de suicídio, decorreu diretamente da dispensa com justa causa – quadro fático totalmente diverso).

De todo modo, feitos os remarques acima, transcreve-se, aqui, as principais decisões acerca da questão, prolatadas nos últimos anos pelo TST:

(…) 2. EMBRIAGUEZ - JUSTA CAUSA - VIOLAÇÃO. ALCOOLISMO CRÔNICO. O regional, com base no conjunto probatório, interpretou de forma razoável o art. 482, "f", da CLT, admitindo que em casos como o dos autos em que comprovadamente há dependência do álcool, considerado como doença pela Organização Mundial de Saúde, a dispensa do empregado, embora seja um direito do empregador, não pode ser motivada. Agravo de instrumento desprovido. (AIRR - 140240-74.1999.5.04.0022 Data de Julgamento: 10/05/2006, Relator Juiz Convocado: Luiz Ronan Neves Koury, 3ª Turma, Data de Publicação: DJ 02/06/2006).

RECURSO DE REVISTA PATRONAL. ALCOOLISMO. Diante do posicionamento da OMS, que catalogou o alcoolismo como doença no Código Internacional de Doenças (CID), sob o título de síndrome de dependência do álcool (referência F-10.2), impõe-se a revisão do disciplinamento contido no art. 482, letra "f", da CLT, de modo a impedir a dispensa por justa causa do Trabalhador alcoólatra (embriaguez habitual), mas, tão-somente, levar à suspensão de seu contrato de trabalho, para que possa ser submetido a tratamento médico ou mesmo a sua aposentadoria, por invalidez. Recurso de Revista conhecido em parte e desprovido. (AIRR e RR - 813281-96.2001.5.02.5555 Data de Julgamento:23/08/2006, Relator Ministro: José Luciano de Castilho Pereira, 2ª Turma, Data de Publicação: DJ 22/09/2006).

JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. SÚMULA Nº 296, I, DO C. TST. ARESTOS PARADIGMAS INESPECÍFICOS. Os julgados paradigmas apresentados no recurso de embargos não refletem com fidelidade tese oposta àquela revelada na v. decisão embargada que, ao analisar o mérito do recurso de revista, esclareceu que a justa causa por embriaguez somente foi levada a cabo após tratamento contra a moléstia, que não obteve sucesso. Incidência da Súmula nº 296, I, do C. TST. Embargos não conhecidos. Processo: E-RR - 638368-44.2000.5.21.5555 Data de Julgamento: 14/11/2006, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DJ 01/12/2006.

RECURSO DE REVISTA. INQUÉRITO PARA APURAÇÃO DE FALTA GRAVE. ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. O alcoolismo crônico, nos dias atuais, é formalmente reconhecido como doença pela Organização Mundial de Saúde - OMS, que o classifica sob o título de "síndrome de dependência do álcool", cuja patologia gera compulsão, impele o alcoolista a consumir descontroladamente a substância psicoativa e retira-lhe a capacidade de discernimento sobre seus atos. Assim é que se faz necessário, antes de qualquer ato de punição por parte do empregador, que o empregado seja encaminhado ao INSS para tratamento, sendo imperativa, naqueles casos em que o órgão previdenciário detectar a irreversibilidade da situação, a adoção das providências necessárias à sua aposentadoria. No caso dos autos, resta incontroversa a condição do obreiro de dependente químico. Por conseguinte, reconhecido o alcoolismo pela Organização Mundial de Saúde como doença, não há como imputar ao empregado a justa causa como motivo ensejador da ruptura do liame empregatício. Recurso de revista conhecido e provido. (RR - 186400- 95.2004.5.03.0092 Data de Julgamento: 13/02/2008, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 28/03/2008).

RECURSO DE REVISTA. EMBRIAGUEZ. A embriaguez habitual ou em serviço só constitui justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador quando o empregado não é portador de doença do alcoolismo, também chamada de síndrome de dependência do álcool. Recurso de revista conhecido e desprovido. (RR - 200040-97.2004.5.19.0003 Data de Julgamento: 02/04/2008, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 18/04/2008).

ALCOOLISMO. NÃO-CARACTERIZAÇÃO DA JUSTA CAUSA. REINTEGRAÇÃO. Revela-se em consonância com a jurisprudência desta Casa a tese regional no sentido de que o alcoolismo crônico, catalogado no Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde OMS, sob o título de síndrome de dependência do álcool, é doença, e não desvio de conduta justificador da rescisão do contrato de trabalho. Registrado no acórdão regional que "restou comprovado nos autos o estado patológico do autor", que o levou, inclusive, "a suportar tratamento em clínica especializada", não há falar em configuração da hipótese de embriaguez habitual, prevista no art. 482, "f", da CLT, porquanto essa exige a conduta dolosa do reclamante, o que não se verifica na hipótese. Recurso de revista não-conhecido, integralmente. Processo: RR - 153000-73.2004.5.15.0022 Data de Julgamento: 21/10/2009, Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 06/11/2009.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ALCOOLISMO CRÔNICO. JUSTA CAUSA. DA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 482, F, DA CLT. A decisão do Regional, quanto ao afastamento da justa causa, não merece reparos, porquanto está em consonância com o entendimento desta Corte Superior, inclusive da SBDI-1, no sentido de que o alcoolismo crônico é visto, atualmente, como uma doença, o que requer tratamento e não punição. Incólume o artigo 482, alínea "f", da CLT. Agravo de instrumento conhecido e não provido. Processo: AIRR - 34040-08.2008.5.10.0007 Data de Julgamento: 14/04/2010, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 16/04/2010.

CONVERSÃO DA JUSTA CAUSA EM DESPEDIDA IMOTIVADA. MATÉRIA FÁTICA. NÃO PROVIMENTO. 1. O simples fato de ser portador de síndrome de dependência de álcool não configura, por si só, justa causa para a dispensa do empregado. Caso concreto que não se amolda à hipótese das alíneas "e", "f" e "h" no artigo 482 da CLT. 2. Assim, para decidir de forma diversa, seria imprescindível a reapreciação do suporte fático, o que é defeso nesta fase processual, ante o que dispõe a Súmula nº 126. 3. Agravo de instrumento a que se nega provimento. Processo: AIRR - 27540-60.2005.5.04.0018 Data de Julgamento: 10/08/2010, Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/08/2010.

RECURSO DE REVISTA. DECISÃO REGIONAL QUE AFASTOU JUSTA CAUSA PARA A DESPEDIDA DO EMPREGADO, ADOTANDO TESE JURÍDICA ALICERÇADA NO RECONHECIMENTO CIENTÍFICO DE QUE O ALCOOLISMO CRÔNICO, DE QUE PADECE O RECLAMANTE, NO CASO DOS AUTOS, É DOENÇA QUE RECLAMA TRATAMENTO, NÃO SE CONFUNDINDO COM O DESVIO DE CONDUTA DE QUE TRATA A HIPÓTESE DO ART. 482, LETRA -F-, DA CLT. RECURSO DE REVISTA FUNDADO APENAS EM DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL, QUE NÃO ESTÁ DEVIDAMENTE CARACTERIZADA, TORNANDO-SE INVIÁVEL SEU CONHECIMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 296, I, DO TST. Verifica-se que as decisões colacionadas em razões de recurso de revista não se prestam ao conflito de teses, pois inespecíficas, à luz da Súmula n.º 296, I, do TST. Com efeito, nenhum dos paradigmas transcritos pela reclamada (fl. 201) refere-se à hipótese de embriaguez contumaz, em que o obreiro padece de alcoolismo crônico, aspecto fático expressamente consignado no acórdão regional. Logo, considerando que o apelo patronal veio calcado apenas em divergência jurisprudencial, mostra-se inviável o processamento do apelo, nos termos do que dispõe aludido verbete. Recurso de revista não conhecido. Processo: RR - 132900-69.2005.5.15.0020 Data de Julgamento: 18/08/2010, Relator Juiz Convocado: Flavio Portinho Sirangelo, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/08/2010.

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA. A análise do conjunto probatório feita pelo Regional leva à conclusão de que a reclamada agiu acertadamente na aplicação da penalidade máxima imposta ao reclamante, provando inclusive a aplicação das punições mais brandas antes de promover o desligamento do obreiro. Assim, decidir de forma diversa implicaria o reexame de fatos e provas por parte deste Tribunal, o que é vedado nos termos da Súmula nº 126/TST. Agravo de instrumento conhecido e não provido. Processo: AIRR - 2412-13.2010.5.15.0000 Data de Julgamento: 17/11/2010, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/11/2010.

RECURSO DE REVISTA. DOENÇA GRAVE. ALCOOLISMO. DISPENSA ARBITRÁRIA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. 1. Trata-se de hipótese de empregado portador de síndrome de dependência do álcool, catalogada pela Organização Mundial de Saúde como doença grave, que impele o portador à compulsão pelo consumo da substância psicoativa, tornado-a prioritária em sua vida em detrimento da capacidade de discernimento em relação aos atos cotidianos a partir de então praticados, cabendo tratamento médico. 2. Nesse contexto, a rescisão do contrato de trabalho por iniciativa da empresa, ainda que sem justa causa, contribuiu para agravar o estado psicológico do adicto, culminando em morte por suicídio. 3. A dispensa imotivada, nessas condições, configura o abuso de direito do empregador que, em situação de debilidade do empregado acometido de doença grave, deveria tê-lo submetido a tratamento médico, suspendendo o contrato de emprego. 4. Desse modo, resta comprovado o evento danoso, ensejando, assim, o pagamento de compensação a título de dano extrapatrimonial ou moral. 5. O dano moral em si não é suscetível de prova, em face da impossibilidade de fazer demonstração, em juízo, da dor, do abalo moral e da angústia sofridos. O dano ocorre in re ipsa, ou seja, o dano moral é consequência do próprio fato ofensivo, de modo que, comprovado o evento lesivo, tem-se, como consequência lógica, a configuração de dano moral, exsurgindo a obrigação de pagar indenização, nos termos do art. 5º, X, da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido. Processo: RR - 1957740-59.2003.5.09.0011 Data de Julgamento: 15/12/2010, Relator Ministro: Walmir Oliveira da Costa, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/02/2011.

RECURSO DE REVISTA. DOENÇA OCUPACIONAL. ALCOOLISMO. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO. R$50.000,00. O Tribunal Regional deu provimento ao recurso ordinário interposto pelos Reclamantes, a fim de condenar a Reclamada ao pagamento de indenização por danos morais, decorrente de acidente de trabalho, no valor de R$ 50.000,00. Entendeu que a omissão da Reclamada ao não encaminhar o ex-empregado a tratamento específico para sua doença ocupacional - alcoolismo - caracteriza a culpa pelo evento danoso, o falecimento do ex-empregado. Os fatos consignados no acórdão recorrido demonstram a ausência de culpa do empregador. O infortúnio decorreu de -insuficiência respiratória, insuficiência renal, insuficiência hepática aguda e cirrose hepática, conforme certidão de óbito de fls. 21-, e não da conduta do empregador. Não consta do julgado nenhum indício de que a Reclamada agiu com a intenção de provocar o evento que vitimou o de cujus ou de que descumpriu as obrigações legais relativas à saúde ocupacional, nem de que se absteve do dever geral de cautela. Ao contrário, consta que a Reclamada encaminhou o ex-empregado a tratamento específico e à entrevista no serviço social, descaracterizando a omissão. Recurso de revista conhecido e provido, para afastar a condenação da Reclamada ao pagamento de indenização por danos morais e julgar improcedentes os pedidos formulados pelos Autores. Processo: RR - 38840-68.2006.5.17.0132 Data de Julgamento: 15/12/2010, Relator Ministro: Fernando Eizo Ono, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/02/2011.

RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO CRÔNICO. REINTEGRAÇÃO. A OMS formalmente reconhece o alcoolismo crônico como doença no Código Internacional de Doenças (CID). Diante de tal premissa, a jurisprudência desta C. Corte firmou-se no sentido de admitir o alcoolismo como patologia, fazendo-se necessário, antes de qualquer ato de punição por parte do empregador, que o empregado seja encaminhado para tratamento médico, de modo a reabilitá-lo. A própria Constituição da República prima pela proteção à saúde, além de adotar, como fundamentos, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (arts. 6º e 1º, incisos III e IV). Repudia-se ato do empregador que adota a dispensa por justa causa como punição sumária ao trabalhador. Precedentes. Recurso de revista não conhecido. (…). INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ACIDENTE DE TRABALHO. INTOXICAÇÃO AGUDA. A v. decisão foi proferida com base no conjunto fático-probatório e na legislação pertinente à matéria, no sentido de deferir o pagamento de indenização por danos morais, porque comprovados o nexo causal, o dano e a culpa do empregador. Qualquer posicionamento diverso levaria ao reexame de matéria fática, incabível na atual fase processual, a teor do disposto na Súmula nº 126 do C. TST. Recurso de revista não conhecido. Processo: RR - 130400-51.2007.5.09.0012 Data de Julgamento: 16/02/2011, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 25/02/2011.

ECT. DISPENSA. MOTIVAÇÃO. ESTABILIDADE. ALCOOLISMO. REINTEGRAÇÃO. 1. -A validade do ato de despedida de empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro, prazos e custas processuais- (OJ 247, II, da SDI-I do TST). 2. O alcoolismo crônico, catalogado no Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde OMS, sob o título de síndrome de dependência do álcool, é doença, e não desvio de conduta justificador da rescisão do contrato de trabalho. 3. Ainda que o alcoolismo, no caso em apreço, não decorra necessariamente do contrato de trabalho, não se vislumbra contrariedade à Súmula 378, II, do TST, porquanto não afastada a ilegalidade da dispensa do reclamante. Incólumes os arts. 1º, III, e 37, caput, da Constituição da República. Recurso de revista integralmente não conhecido. (RR - 72700-92.2007.5.17.0013 Data de Julgamento: 23/03/2011, Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 01/04/2011).

RECURSO DE REVISTA. FALTA GRAVE. ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. 1. O alcoolismo crônico, nos dias atuais, é formalmente reconhecido como doença pela Organização Mundial de Saúde - OMS, que o classifica sob o título de -síndrome de dependência do álcool-, cuja patologia gera compulsão, impele o alcoolista a consumir descontroladamente a substância psicoativa e retira-lhe a capacidade de discernimento sobre seus atos. 2. Assim é que se faz necessário, antes de qualquer ato de punição por parte do empregador, que o empregado seja encaminhado ao INSS para tratamento, sendo imperativa, naqueles casos em que o órgão previdenciário detectar a irreversibilidade da situação, a adoção das providências necessárias à sua aposentadoria. 3. No caso dos autos, resta incontroversa a condição da dependência da bebida alcoólica pelo reclamante.

Nesse contexto, considerado o alcoolismo, pela Organização Mundial de Saúde, uma doença, e adotando a Constituição da República como princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, além de objetivar o bem de todos, primando pela proteção à saúde (artigos 1º, III e IV, 170, 3º, IV, 6º), não há imputar ao empregado a justa causa como motivo ensejador da ruptura do liame empregatício. 4. Recurso de revista não conhecido. (RR - 152900-21.2004.5.15.0022 Data de Julgamento: 11/05/2011, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 20/05/2011).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. 1. PRESCRIÇÃO. O Regional não examinou a questão pelo enfoque da data em que configurada a incapacidade do reclamante, mas por incidência da Súmula nº 422 do TST, motivo pelo qual a pretensão encontra óbice na Súmula nº 297 do TST. 2. NULIDADE. JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. A decisão do Regional, quanto ao afastamento da justa causa, não merece reparos, porquanto está em consonância com o entendimento desta Corte Superior, inclusive da SBDI -1, no sentido de que o alcoolismo crônico é visto, atualmente, como uma doença, o que requer tratamento, e não punição. Incólume a Súmula nº 32 do TST. 3. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. Presentes os requisitos para a configuração do dano moral, o dever de indenizar não está atrelado necessariamente à comprovação do abalo moral sofrido, pois trata-se de dano in re ipsa, ou seja, pela mera ocorrência do evento descrito. 4. VALOR ARBITRADO À CONDENAÇÃO. O fato de o reclamante ficar impossibilitado de auferir salários, receber tratamento médico e demais vantagens advindas do contrato de trabalho, sopesado à prevenção de futura negligência do empregador, sem que isso viesse a representar enriquecimento sem causa do reclamante, demonstra a utilização de parâmetros razoáveis e proporcionais na fixação do valor da condenação. Ileso o art. 944, parágrafo único, do CC. Agravo de instrumento conhecido e não provido. (AIRR - 3082-89.2010.5.10.0000 Data de Julgamento: 08/06/2011, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 10/06/2011).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO CRÔNICO. CLASSIFICAÇÃO COMO DOENÇA DENOMINADA SÍNDROME DE DEPENDÊNCIA DO ÁLCOOL PELA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE - OMS (CID-10, REFERÊNCIA F-10.2). ART. 482, F, DA CLT. REINTEGRAÇÃO. Confirmada a ordem de obstaculização do recurso de revista, na medida em que não demonstrada a satisfação dos requisitos de admissibilidade, insculpidos no artigo 896 da CLT. Agravo de instrumento não provido. Processo: AIRR - 397-79.2010.5.10.0010 Data de Julgamento: 14/11/2012, Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/11/2012.

RECURSO DE REVISTA. ALCOOLISMO. DOENÇA CRÔNICA. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. De acordo com o Tribunal Regional, o reclamante é dependente químico, apresentando quadro que associa alcoolismo crônico com o uso de maconha e crack. A jurisprudência desta Corte tem se orientado no sentido de que o alcoolismo crônico, catalogado no Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde OMS, sob o título de síndrome de dependência do álcool, é doença que compromete as funções cognitivas do indivíduo, e não desvio de conduta justificador da rescisão do contrato de trabalho. Assim, tem-se como injustificada a dispensa do reclamante, porquanto acometido de doença grave. Recurso de revista conhecido e provido. Processo: RR - 529000-74.2007.5.12.0004 Data de Julgamento: 05/06/2013, Relatora Ministra: Delaíde Miranda Arantes, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/06/2013.

Importante observar, novamente, que o entendimento de que um empregado considerado doente não deve ser meramente 'descartado', mas receber apoio / tratamento apropriado, tem como fundamento implícito (e por vezes explícito, como se viu acima) o princípio da dignidade humana.

Cabe referir, mais uma vez, que esse entendimento do TST colide com o contido no art. 482, “f”, da CLT, segundo o qual:

Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

(…)

f) embriaguez habitual ou em serviço;

Luís Roberto Barroso afirma que uma das características do neoconstitucionalismo é a “interpretação conforme a Constituição”, que pode envolver “(i) uma singela determinação de sentido da norma, (ii) sua não incidência a uma determinada situação de fato ou (iii) a exclusão, por inconstitucional, de uma das normas que podem ser extraídas do texto”. Em qualquer dos casos, “não há declaração de inconstitucionalidade do enunciado normativo, permanecendo a norma no ordenamento”, reconciliando-se, assim, “o princípio da supremacia da Constituição e o princípio da presunção de constitucionalidade” (BARROSO, 2006, p. 30).

Nos arestos produzidos pelo TST, pode-se dizer que houve interpretação, conforme a Constituição, do art. 482, “f”, da CLT, que culminou em sua não incidência a uma determinada situação de fato. Pode-se dizer, ainda, que essa interpretação foi ensejada, sem dúvida, pelo entendimento de que o alcoolismo é uma doença, mas também inspirada nos princípios da dignidade humana, valor social do trabalho, proteção à saúde, etc.(repita-se que o TST também já produziu decisões no sentido de se aplicar o dispositivo Consolidado, mesmo partindo-se da constatação de que o alcoolismo é uma doença, pelo que a mudança de posicionamento de sua jurisprudência, acredita-se aqui, deve-se mais ao fortalecimento do neoconstitucionalismo e da própria ideia de dignidade humana no Direito brasileiro).

De todo modo, esse tipo de interpretação é criticada por partidários da análise econômica do direito, segundo os quais a postura neoconstitucionalista ocasiona “a flexibilização da lei e sua compatibilização com princípios de conteúdo indeterminado” (GICO JR apud PAPP, p. 10).

Já se discutiu, neste pequeno trabalho, a problemática da aplicação de princípios como o da dignidade humana, quanto mais em detrimento de textos legais vigentes. Já se debateu a possibilidade de que o uso de noções vagas como a de dignidade humana podem tanto ser fruto de uma inclinação pessoal / emotiva do julgador, como pode estar relacionada a uma tentativa de solução racional para casos desafiados por questões morais – como é o caso da dispensa com justa causa de empregado que desenvolve o alcoolismo e, portanto, encontra-se enfermo.

De fato, desde que a embriaguez habitual perdeu o status de mero desvio de conduta, sendo considerada uma doença, a aplicação do art. 482, “f”, da CLT só poderia dar-se mediante ofensa ao princípio da dignidade nos casos em que a doença resta configurada. Talvez essa conclusão não seja de todo 'voluntariosa': a inspiração em princípios como o da dignidade está, afinal, prevista em nosso ordenamento jurídico (art. 4º da LIDB). Ademais, o princípio, repita-se, definido como o tipo de padrão que formula uma “exigência da justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”, que “enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção”, “deve ser levado em conta pelas autoridades públicas” (DWORKIN, 2002) em um Estado Constitucional.

E, ao menos quanto ao tema do alcoolismo e trabalho aqui analisado, o princípio, em detrimento da norma, vem sendo aplicado com propriedade pelo TST, já que não implicou a criação de um novo direito, mas apenas invalidou a incidência do art. 482, “f”, da CLT a uma situação de fato (configuração do alcoolismo), sob o risco de ofensa à Constituição.

Observe-se que exageros do tipo condenar o empregador a pagar indenização por dano moral à família do empregado alcoolista em razão de sua morte, relacionada às complicações da doença, ainda mais quando caracterizado o comportamento benigno da empresa para com o empregado, não foram cometidos.

Ademais, poder-se-ia até afirmar que o posicionamento do TST está inclusive de acordo com a noção de eficiência de Kaldor – Hicks, ao menos em alguns casos, como o do RR-383922-16.1997.5.09.555, em que a empresa não pôde dispensar empregado que, afinal, havia trabalhado para ela por anos “sem cometer a menor falta”. Ressalte-se que segundo o critério de Kaldor – Hicks, o “ganhador deve ganhar mais do que o perdedor perde”, de modo a, teoricamente, compensar o último (MICELI, 2009); ou melhor, “o bem-estar dos ganhadores” deve crescer “em um montante tal que seja possível, ao menos em tese, a compensação da redução do bem-estar dos perdedores” (NIED, Paulo Sérgio).

Embora a empresa 'perca' na medida em que fica obrigada a manter o contrato, este ao menos fica suspenso, as obrigações mútuas tornam-se inexigíveis, não se produzindo recolhimentos vinculados a ele. O alcoolista, por sua vez, ganha a manutenção do emprego, encaminhamento ao INSS, percepção de auxílio-doença e possibilidade de se tratar e recuperar-se (ou aposentar-se). Nos casos em que se recupera e retorna ao serviço (sobretudo se é o tipo do funcionário exemplar ou altamente qualificado), a compensação para a empresa deixa de ser teórica, pois há quem afirme que a recuperação de um empregado alcoolista pode ser menos custosa do que a sua dispensa seguida da contratação e treinamento de um substituto. Ademais, o empregado que teve o apoio da empresa no enfrentamento da doença provavelmente será leal a ela17.

De todo modo, é certo que nem sempre as decisões do Judiciário Trabalhista acerca do binômio alcoolismo e trabalho serão (ou deveriam ser) compatíveis com algum critério de eficiência como o de Kaldor – Hicks. Essa é uma das razões pela qual esse tipo de decisão sempre gerará algum tipo de desconforto, como já se disse aqui. Desconforto que parece ser comum desde que o Direito passou a ser desafiado moralmente pela noção contemporânea de dignidade humana.


Considerações Finais

Durante a elaboração deste trabalho verificou-se que a noção contemporânea de dignidade humana, segundo a qual todo homem possui valor intrínseco que é fundamento de certos direitos, nem sempre existiu. Ela se engendrou em detrimento da noção de honra (ou noção tradicional de dignidade), segundo a qual o valor de um homem está no cumprimento de certas obrigações e/ou papéis socialmente estabelecidos (sendo a honra, portanto, fundamento não de direitos, mas de deveres de autoaperfeiçoamento).

Concluiu-se, ainda, que a noção contemporânea de dignidade (a ideia de que todo homem possui valor em virtude de sua própria humanidade, valor que prescinde do desempenho de qualquer papel social), colocou os homens em pé de igualdade e configurou-se, desde o século XVIII, em um elemento que desafia moralmente o Direito, dando também aos direitos humanos sua “carga moral”.

No entanto, ou por isso mesmo, o uso judicial da noção de dignidade humana não é pacífico e mesmo fácil. A despeito do seu caráter universal em abstrato, essa concepção, por ser vazia de conteúdo, gera desconfortos quando de sua aplicação judicial ao caso concreto – situação em que ela pode ser invocada pelas partes para fundamentar a defesa de direitos inclusive contraditórios. Dessa maneira, sua aplicação, por vezes, parece mais apoiar-se em algum critério de justiça quase subjetivo do julgador.

Alguns doutrinadores, como Richard Posner, vêm princípios como o da dignidade humana com ceticismo e não acreditam que seu emprego judicial possa se dar de maneira racional. O julgador, quando o utiliza, quase sempre está, na verdade, sendo guiado por certos sentimentos ou até mesmo inconscientes crenças religiosas.

Outros estudiosos, da corrente neoconstitucionalista (e neste trabalho entendeu-se o Neoconstitucionalismo também como uma tentativa de resposta do Direito ao desafio moral trazido pela noção contemporânea de dignidade humana), acreditam que é possível a resolução racional de casos difíceis, justamente com o emprego / ponderação de princípios como o da dignidade humana. Ronald Dworkin afirma mesmo que o juiz não tem (ou não deveria ter) o 'poder discricionário' para decidir o caso de uma maneira ou de outra - ele é (ou deve ser) constrangido, se não pelas regras, pelo princípio, que é “uma razão” que o “inclina numa ou outra direção”.

Quanto ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a cessação do contrato de trabalho, viu-se que, desde que a OMS entendeu que o alcoolismo é uma doença (síndrome de dependência do álcool), o tema tornou-se uma espécie de “caso difícil”, pois a embriaguez habitual, ao menos quando configurada a dependência, deixou de ser mera violação da obrigação geral de conduta do empregado e passou a ser doença – ficando, portanto, questionável a aplicação do art. 482, “f”, da CLT.

Não obstante, verificou-se que inúmeros julgados anteriores e mesmo posteriores a 2001 continuaram aplicando o citado dispositivo Consolidado, ainda que fazendo referência à decisão da OMS, pelo que o fortalecimento da jurisprudência no sentido de não aplicá-lo, a partir de 2001 e, mais consistentemente, a partir de 2006, talvez encontre resposta em um fortalecimento do neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade humana no Direito brasileiro na última década.

De todo modo, a decisão do TST, no sentido de não aplicar o art. 482, “f”, da CLT, encerra em si a noção contemporânea de dignidade humana (em contraposição à noção tradicional de dignidade humana, expressada no referido dispositivo e nas palavras de doutrinadores como Délio Maranhão); é uma tentativa de resposta para um caso que envolve uma questão eminentemente moral (a validade da dispensa por justa causa de empregado que passou a ser considerado enfermo é uma questão moral); envolveu a flexibilização da lei, mas mediante a interpretação, conforme a Constituição, do art. 482, “f”, da CLT (que culminou em sua não incidência a uma determinada situação de fato).

Poder-se-ia afirmar que além de estar conforme a Constituição, o posicionamento do TST pode estar de acordo também, ao menos em algumas decisões, com o critério de eficiência de Kaldor – Hicks, segundo o qual o “ganhador deve ganhar mais do que o perdedor perde”, de modo a, teoricamente, compensar o último (MICELI, 2009). É que embora a empresa 'perca', na medida em que fica obrigada a manter o contrato, o empregado, por sua vez, ganha a manutenção do emprego, encaminhamento ao INSS, percepção de auxílio-doença e possibilidade de se tratar e recuperar-se (ou aposentar-se). Nos casos em que se recupera e retorna ao serviço (sobretudo se é o tipo do funcionário exemplar ou altamente qualificado), a compensação para a empresa deixa de ser teórica, pois há quem afirme que a recuperação de um empregado alcoolista pode ser menos custosa do que a sua dispensa seguida da contratação e treinamento de um substituto. Ademais, o empregado que teve o apoio da empresa no enfrentamento da doença provavelmente será leal a ela.

De todo modo, embora gere algum desconforto o uso judicial de um princípio como o da dignidade humana (ainda mais em detrimento da lei positiva), observou-se que esse foi aplicado com propriedade pelo TST, já que não implicou a criação de um novo direito, mas apenas invalidou a incidência do art. 482, “f”, da CLT a uma situação de fato (configuração do alcoolismo).

Assim, o posicionamento do TST quanto à não incidência do art. 482, “f”, da CLT no caso de empregado alcoólatra (embora vá ser sempre passível de críticas, sobretudo para quem vê com ceticismo tanto a noção de dignidade humana, quanto a pretensão de se fazer uma “leitura moral” do Direito) acabou por expressar, como diria Habermas, a “fusão explosiva entre conteúdos morais e a lei, como um meio no qual a construção de ordens políticas justas deve ser realizada” (HABERMAS, 2010, p. 479).


Referências Bibliográficas:

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Notas

1.Cf. HABERMAS (2010), SENSEN (2011) e WHITE (2011)

2.As referências bibliográficas em inglês serão traduzidas pela autora.

3 Segundo Zéu Palmeira Sobrinho (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, pp. 168/169), o termo alcóolatra tem “conotação pejorativa”. Assim, a “terminologia corrente na ciência médica recomenda que o doente seja tratado como alcoolista, termo este que confere destaque apenas à prática reiterada do consumo, sem o escopo de estigmatização ou zombaria. Alcoolista é termo mais abrangente para designar não apenas o dependente, mas quem, ao abusar do álcool, situa-se em estágio de iminente dependência, razão pela qual se justifica separar as diferentes espécies de bebedores, isto é, o moderado, o exorbitante e o dependente”.

4       Como bem salienta Palmeira Sobrinho (2012, pp. 182/183), a Primeira Turma do TST, em dezembro de 2010, condenou uma empresa ao pagamento de indenização por danos morais a dependentes de empregado alcoolista que foi dispensado e, em seguida, cometeu suicídio. Trata-se de acórdão relativo ao RR-1957740-59.2003.5.09.0011, da lavra do Exmº Ministro Walmir Oliveira da Costa.

5. Os direitos humanos nascem, no século XVIII, influenciados pela noção jusnaturalista de que os homens possuem direitos anteriores ao Estado. Sendo assim, os direitos humanos limitam a soberania do Estado que, por sua vez, tem como principal função garanti-los e protegê-los. Outro entendimento da época sobre tais direitos (menos 'radical' que o jusnaturalista) é o de que esses direitos nascem de um contrato, “expresso pela Constituição, entre as diversas forças políticas e sociais” (constitucionalismo). Outro entendimento é o de que o Estado é que concede ao indivíduo tais direitos, com base em sua “autônoma soberania” (cf. MENGOZZI, 2000, pp. 353-361). De todo modo, muitos entendem que os direitos humanos, tal como expressos nas Bills of Rights de 1776 e na Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, de 1789, são muito anteriores à ideia contemporânea de dignidade humana, possuindo existência independente dela. Autores como J. Habermas, como se verá, defendem entendimento bem diverso: a noção de dignidade humana, desde o nascimento dos direitos humanos no século XVIII, deu a eles sua validade, seu fundamento moral e sua força (cf. HABERMAS, 2010).

6. Há que se lembrar, aqui, que Peter Berger é um autor austríaco radicado nos Estados Unidos. Quando escreve que as sociedades contemporâneas liquidaram “qualquer concepção de honra” (BERGER, 1986, p. 175), deve-se ter em mente que não está pensando em um país latino como o Brasil, em que essa noção certamente existe com alguma força. Ademais, pode-se criticar o texto de Berger justamente por defender a ideia de que a noção de honra foi completamente aniquilada, o que é discutível mesmo em países ultra desenvolvidos como os nórdicos.

7. A Declaração dos direitos do homem e do cidadão, produzida pela Revolução Francesa de 1789, e os Bills of Rights das colônias norte-americanas que se rebelaram contra a Inglaterra em 1776 são os mais famosos.

8       Importante mencionar que Habermas, se por um lado acha que não se deve abrir mão desse “investimento da lei com uma carga moral” (HABERMAS, 2010), por outro teme que uma hipermoralização do Direito poderia, em última análise, comprometer sua eficácia (cf. LUDWIG, Roberto José. Princípios na relação entre Direito e moral. In: Revista dos Tribunais, RT 915, janeiro de 2012).

9       Cabe notar que Carozza critica McCrudden pelo número de “amostras” relativamente limitado de sua pesquisa (cf. CAROZZA, 2008, p. 935).

10     Quando se atinge o ótimo de Pareto, diz-se que os bens da vida estão com quem mais os valoriza (todos ganham) e “as partes não realizarão novas trocas voluntariamente”. Contudo, “são raras as situações nas quais o Poder Judiciário se vê diante da possibilidade de proferir uma decisão que resulte em ganho para todas as partes envolvidas”. Daí o uso da noção de Kalder – Hicks, que “admite a existência de uma mudança social eficiente mesmo quando o aumento do bem-estar de uma parte resulta na redução do bem-estar de outra (…). Pode-se dizer que uma decisão eficiente no sentido KALDOR-HICKS deve aumentar o bem-estar dos ganhadores em um montante tal que seja possível, ao menos em tese, a compensação da redução do bem-estar dos perdedores” (NIED, PAULO SÉRGIO). Em outras palavras, na noção de eficiência de Kaldor – Hicks, o “ganhador deve ganhar mais do que o perdedor deve perder”; as trocas consensuais devem “garantir ganhos mútuos” e nas não consensuais “aqueles que perdem em virtude de uma política [policy no original] ou decisão irão se beneficiar de outras e, no geral, todos ganham, à medida que a riqueza agregada aumenta”; “as mudanças na política ou na lei são eficientes se os ganhos excedem as perdas” (MICELI, 2009, p. 6). De todo modo, há que se salientar que o juiz brasileiro não poderá decidir em consonância com nenhum desses critérios, ao que parece, se existente norma legal aplicável ao caso, em sentido contrário a eles (NIED, PAULO SÉRGIO).

11    No Brasil talvez a situação não seja tão diferente, ao contrário do que se poderia pensar. Uma das críticas dos partidários brasileiros da análise econômica do Direito é a de que os juízes, influenciados pelo neoconstitucionalismo, têm, nos últimos anos, deixado muitas vezes de aplicar a lei positiva. Ou seja, pode-se dizer que a lei brasileira, em boa parte, traduz o ideal de eficiência econômica / maximização de riquezas (defesa da propriedade) e que alguns juízes, nos últimos anos, é que a estariam relativizando.

12    Cf. entrevista de Posner em http://www.nybooks.com/articles/archives/2011/sep/29/court-talk-judge-richard-posner/?pagination=false [acesso em 23/12/2013 – conteúdo parcialmente pago). Cf. também (POSNER, 2008, pp. 13 e 94).

13    Cabe referir (como se procurou demonstrar neste trabalho) que a noção de dignidade humana tem origens históricas na dignitas romana. Mas é verdade que foi fortalecida no interior de algumas tradições religiosas como o Cristianismo. Por outro lado, até em razão de estudos como os do psicólogo Paul Bloom, poder-se-ia concluir que as Religiões é que se beneficiam de uma moralidade humana inata (ou pelo menos rudimentos de moralidade inatos). Cf. “The moral life of babies”, disponível em: http://www.nytimes.com/2010/05/09/magazine/09babies-t.html? pagewanted=all&_r=0

14    Interessante notar que a Biologia evolutiva tanto tem embasado conclusões no sentido de que o homem não possui uma dignidade especial, quanto tem fundamentado ideias de que não apenas o homem, mas também os animais, possuem dignidade.

15    A pesquisa jurisprudencial teve como recorte temporal os anos de 1999 a 2013, em que foram produzidas cerca de 132 decisões sobre o binômio álcool e trabalho no âmbito do TST. Foram descartados da presente análise todos os acórdãos que não analisaram o mérito ou que não trataram especificamente da “embriaguez habitual” (alcoolismo), detendo-se, por exemplo, no tema da embriaguez em serviço ou no tema do ônus probatório acerca da responsabilidade do empregado quando da configuração de acidentes de trabalho envolvendo abuso esporádico de álcool, etc.

16 Há de se lembrar que o recorte temporal deste pequeno trabalho vai de 1999 a 2013.

17 Cf. “Managing alcohol problems in the workplace: treatment works” (JOSS, Bray): “Supporting an employee through to recovery is likely to result in a more loyal and more committed employee who is an asset to the organisation”. Disponível em http://www.hrmagazine.co.uk/hro/features/1075213/managing-alcohol-workplace-treatment#sthash.5BJiDP6B.dpuf. Também: “Since more than 7 percent of full -time 18 to 49-year-old workers had drinking problems during the past year, treating alcohol problems can curb health care costs and boost productivity” - A sound investment: identifying and treating alcohol problems (HARWOOD, Henrick, p. 10). Disponível em http://www.integration.samhsa.gov/clinical-practice/sbirt/A_sound_investment.pdf. Ademais, cabe acrescentar, quantoa o tratamento do alcoolismo, que “Dados mostram que a perspectiva de recuperação dentro da empresa é de 65 a 70%, enquanto centros de tratamento apresentam índices de abstinência de 30 a 35%” (MORAES, Gláucia T. Bardi e PILATTI, Luiz Alberto. Alcoolismo e as organizações: por que investir em programas de prevenção recuperação de dependentes químicos). Disponível em: http://editora.unoesc.edu.br/index.php/achs/article/viewFile/91/pdf_68.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Raquel Veras. Embriaguez, trabalho e o uso judicial da noção de dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3966, 11 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28178. Acesso em: 25 abr. 2024.