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Patologia delinquente

Patologia delinquente

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A existência de um sistema de poder à sombra nas penitenciárias brasileiras e sua influência sobre a Lei.

Eu estava apenas substituindo o magistrado titular da Vara de Execuções Penais do Estado do Paraná, que na época tinha a competência exclusiva sobre todos os condenados do Estado e lá atuei por pouco tempo.

Ao chegar, já verifiquei que cada prisioneiro tinha um processo próprio de execução. Várias condenações, vários processos apensados. E, se havia algum pedido quanto a benefícios na execução da pena, esse estava ali, apensado aos outros todos.

Cada apenado, portanto, possuía vários processos, onde se podia ver que fora examinado várias vezes, existindo vários pareceres técnicos: de psiquiatria; de psicologia; de pedagogia; de assistência social e de segurança, para cada um dos internos.

Patologia sombra

Importante dizer que a Lei de Execuções Penais, no Brasil, traz uma interessante e bem direcionada técnica, que pode ser lida como uma ideologia para a ressocialização do apenado.

Ela estabelece os procedimentos a serem adotados para que os presos possam ir progredindo o regime de sua pena, do mesmo modo que propõe que esta progressão se dê conforme o tempo e o mérito do condenado. Na época a lei estabelecia que cada um deveria ser classificado e examinado - a fim de se verificar se estava ou não em condições de progredir.

De se observar que as Penitenciárias (no Brasil) foram construídas em alas (módulos ou pavilhões), isto porque os presos deveriam ser classificados por uma comissão de técnicos, assim que entrassem no sistema penitenciário[1].

Através disto os Reeducandos[2] deveriam ser colocados em celas referentes à classificação obtida, de modo que os mais perigosos deveriam ficar nas alas (módulos - pavilhões) mais ao fundo, para irem progredindo dentro destas alas (módulos - pavilhões) – sempre para mais próximo dos portões, a fim de que, psicologicamente, fossem (mesmo no regime fechado) se aproximando da liberdade.

Todas as penitenciárias possuem oficinas, que deveriam se situar nos locais mais próximos dos portões, isto para reforçar as ideias de que o trabalho liberta e que se pode progredir pelo trabalho.

Nos módulos, alas ou pavilhões, mais próximos da liberdade deveriam estar, portanto, os de maior mérito, os que estivessem trabalhando e ou em condições de progredir para o regime semiaberto.

Mas nada disso, na época, acontecia!

Para se falar em Prisão ou em sistema carcerário, impossível não citar o livro de Michel Foucault intitulado Vigiar e Punir, onde o autor afirma que o instituto da Prisão, desde os primórdios dos tempos, foi criticado, mas que se manteve até hoje em face aos meandros de poder que produz e também e principalmente porque cria o delinquente-objeto, assim entendido o infrator que pode ser controlado e a quem se pode atribuir patologias.

Para melhor analisar essas patologias a Lei de Execuções exigia um exame criminológico, para aferição do mérito indispensável para a Progressão de Regime.

Essa exigência foi modificada pela Lei nº 10.792/2003, que retirou a necessidade de parecer técnico para atestar patologias (deixando à sombra a tarefa de imputar patologias ao delinquente).

Na época, observei que os exames dos apenados, embora tivessem sido efetuados em datas diferentes, acabavam se assemelhando muito, ou seja, eles simplesmente diziam as mesmas coisas, repetiam os mesmos termos, eram, enfim, metodicamente repetitivos.

Verifiquei, também, que a leitura do exame era uma espécie de descrição do crime cometido.

Assim, para um condenado por roubo, a descrição era sempre a de que ele era um indivíduo que não respeitava o patrimônio alheio e que era voltado a atos violentos e, daí por diante.

Alguns apenados, que haviam pedido progressão de regime mais de uma vez, recebiam a mesma avaliação psicológica, psiquiátrica, etc, em ocasiões distintas, e embora para cada pedido tivesse sido feito um novo exame, os diagnósticos se assemelhavam, isto quando não eram uma repetição pura e simples do resultado anterior.

Estranhei muito tal repetição, principalmente sobre aspectos e características psicológicas e\ou psiquiátricas, pois o natural é que as pessoas possuam características diferentes e que mudem com o tempo, nem que essa mudança seja para pior.

Claro que isto não ocorria sempre, às vezes o apenado, milagrosamente, melhorava seu comportamento e sua apreciação psicológica e psiquiátrica, o que fazia com que as outras análises (pedagógica, social e de segurança) também melhorassem, sendo que, diante disso, normalmente acabava recebendo a progressão de regime, caso tivesse cumprido o tempo necessário para usufruir tal benefício.

Nos demais casos, onde os exames não traziam melhoras, sendo repetitivos (dando a impressão que nem eram realizados), os pedidos acabavam sendo, irremediavelmente, indeferidos, vez que a decisão tinha que se fundamentar no que existia.

E aqui é de se salientar o quanto a imposição de patologias é um modelo de poder plenamente aceito, pois nenhum dos que atuavam naquela Vara questionava isto, nem mesmo os defensores daqueles que eram esmagados por um mal diagnóstico (os delinquentes-objeto).

Em face de minhas dúvidas, resolvi ir até a Penitenciária para verificar, pessoalmente, como eram feitos aqueles exames e se, afinal, eram mesmo feitos por técnicos especialistas e quem seriam eles.

Aquela ida a Penitenciária acabou sendo uma experiência única. Primeiro por que o Juiz Titular, bem como seu antecessor (que naquele cargo havia ficado por vários anos) nunca haviam visitado a penitenciária.

Eu não sabia disso e por isso não avisei ao diretor de que lá iria causando alguns transtornos indesejáveis.

Fui obrigado a me apresentar e me reapresentar, várias vezes, pois os guardas não acreditavam que o Juiz da Execução pudesse lá estar.

Acabei tendo que esperar nas dependências administrativas (que são separadas do resto da Penitenciária), antes de entrar no presídio central, porque o diretor não havia chegado e o chefe de segurança insistiu em que ele queria me mostrar tudo, pessoalmente.

Assim, para não ofender a quem se apresentou tão solícito, só depois de ver todas as dependências é que pude falar com os técnicos, verificando que eles tinham suas salas dentro do presídio, em local onde todos os presos tinham acesso.

Verifiquei, também, que não havia nenhuma classificação ou separação de espaço, conforme a filosofia abraçada pela lei de execuções. Que os presos possuíam cada qual seu endereço e que dali só saiam por ocasião de uma progressão da pena (ou do término dela).

O preso recém-chegado acabava ficando junto a seus conhecidos, ou, então, nos locais vagos, isto sem qualquer classificação. O número máximo de detentos por cela não era respeitado, sendo que algumas delas eram bem mais povoadas que as outras, havendo uma espécie de divisão inversamente proporcional, baseada em classes de poder.

Verifiquei que as oficinas de trabalho eram frequentadas por aqueles que assim quisessem, assim como as aulas escolares e as cerimônias religiosas. Que enfim, todos tinham acesso a todos os lugares dentro do presídio, inclusive às salas dos técnicos.

Ao falar com os técnicos, sempre acompanhado do chefe de segurança e do diretor do presídio, ouvi deles imensos elogios ao setor de segurança, principalmente por conseguir manter as coisas em ordem, sem o uso de armas.

O Chefe de Segurança me garantiu que ao tratar bem os presos, que se dividiam em gangues e quadrilhas, com comandos bem definidos, acabava conseguindo manter a ordem, principalmente em face ao bom relacionamento que possuía. Bom relacionamento conseguido na base da “camaradagem” e de “algumas pequenas concessões”.

O Diretor insistiu em me mostrar, desde o refeitório, até os antigos porões, que ele afirmou estarem desativados. Ao perguntar sobre a ocupação das celas e sobre a diferença de lotação, ele me disse que os presos se sentiam donos de seus espaços celulares, sendo que possuíam uma certa liberdade de escolha quanto a trocas de locais e que os respeitava nisso. Ao perguntar sobre os horários e outras nuances, ele citou o regulamento e seus artigos, alegando que os cumpria na medida do possível.

Tais esclarecimentos me deram a certeza necessária para entender o que ocorria para que aqueles exames fossem sempre iguais.

A divisão e as concessões de poder ficaram claras: Os técnicos possuíam o poder de liberdade. Seus pareceres podiam trazer liberdade. Só que a vida deles, por trabalharem em local perigoso, estava constantemente ameaçada. Era o chefe de segurança que lhes garantia a sobrevivência e a tranquilidade no trabalho. Mas ele, por sua vez, só tinha condições de assegurar o trabalho alheio, assim como o próprio, graças ao bom relacionamento com os chefes de quadrilha.

Havia grande influência do Chefe de Segurança nos pareceres dos técnicos, pois eles o tinham em elevada conta. E é claro que os chefes de quadrilha, igualmente, tinham grande influência sobre o Chefe de Segurança.

O diretor do Estabelecimento, por sua vez, só atestava o comportamento do preso com base nas informações do chefe de segurança e no parecer desse.

Assim, se algum preso caísse nas graças do Chefe de Quadrilha esse acabava por influenciar o Chefe de Segurança, que por sua vez influenciaria aos técnicos e ao Diretor, sendo que, naturalmente, o parecer seria de melhora (isso tudo sem falar em nenhuma má-intenção - que, naturalmente, poderia ocorrer).

Explicadas as nuances deste poder à sombra, acabei por questionar todos aqueles exames.

Felizmente, como não era o titular daquela Vara, fui transferido dali para uma Vara Cível, deixando todos aqueles exames e seus nuances de poder para trás, pois nunca mais voltei a trabalhar ali.

As conclusões, confirmadas naquela malfadada visita, ratificam a existência do produto do cárcere – o delinquente objeto – controlado por um sistema de poder próprio e a quem se pode atribuir patologias (Foucault, 2013).

Entendo, também, a dificuldade em se modificar este estado de coisas, pois embora a lei institua todo um sistema de progressão, prevendo toda uma arquitetura desenhada nesse sentido, o simples sentimento de posse acaba pondo tudo a perder.

E, se disciplina há, com certeza é a ditada pelos que detém o poder espacial naquele recinto de segregação.

Mas, como afirma Foucault, mesmo que as prisões seguissem as regras da boa penitenciária que seu livro enuncia, o problema persistiria, pois sejam estes ou aqueles que dominem os meandros do poder, a substituição do sistema teria que enfrentar toda a imensa força de inércia que seria gerada.

Um excelente exemplo desse poder sombrio e desta força de inércia, é que posteriormente àquela minha visita, a Lei 10.793/2003 acabou trazendo a desnecessidade do exame criminológico para a verificação do mérito do condenado, sendo que muitos juristas entenderam isto como uma evolução.

Mas, sempre é bom observar que o que houve, na prática, foi uma simplificação das coisas, uma simples diminuição de intermediários entre os detentores do poder, pois a lei enunciou[3] que o mérito necessário seria, tão somente, atestado pelo Diretor do Estabelecimento (que naturalmente e como sempre aconteceu – acaba se servindo das informações do chefe de segurança, sendo que esse, por sua vez…).

Infelizmente toda essa patologia persiste à sombra e a iluminar as decisões judiciais.

Referências

Consultor Jurídico. (07 de fevereiro de 2015). PRISÕES EM EXCESSO. Vasconcelos, Marcos de. Obtido em 10 de fevereiro de 2015, de http://www.conjur.com.br/2015-fev-07/presidente-stf-ataca-política-encarceramento-brasil

Foucault, M. (2013). Vigiar e Punir. Lisboa: Edições 70 Ltda.

Silva, P. E. (1998). Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense.


[1] Art. 8º da Lei de Execuções Brasileira: O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução.

[2] Modo como os técnicos chamavam o condenado, que Foucault chamou de delinquente-objeto.

[3] Art. 112 da Lei de execucoes Penais Brasileira: A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Grifo nosso)


Autor

  • Francisco L Macedo Jr.

    Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestre das Relações Sociais da Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Direito na Universidade Nova de Lisboa - Portugal. Alguém que através de casos ocorridos na vida de magistrado tenta escrever sobre o direito.

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