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Mais um capítulo na história da proibição de liminares

Mais um capítulo na história da proibição de liminares

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Tratamos do impacto que o pacote lançado pelo senador Renan Calheiros pode trazer para a saúde do brasileiro, principalmente com a restrição na concessão de liminares relacionadas aos planos de saúde privados.

Em fevereiro de 2015, o deputado Ivan Valente propôs uma CPI para investigar abusos dos planos de saúde. O pedido foi rejeitado pela presidência da Câmara.

Impressiona o fato, que aqui será relatado, de que se procura intimidar o acesso do cidadão ao Judiciário na busca do seu atendimento à saúde.

A esse propósito, relata Bernardo Mello Franco, em artigo publicado na Folha de São Paulo, “Um plano para os planos”:  

“O pacote lançado pelo senador Renan Calheiros não deve tirar a economia do atoleiro, mas tem tudo para aumentar os lucros de alguns empresários. Um dos setores mais animados é o dos planos de saúde, cujo lobby se espalha como vírus nos gabinetes de Brasília.

 A proposta prevê a "proibição de liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS". A ideia ganhou um apelido sugestivo no Congresso: "Emenda Qualicorp". Se virar lei, o paciente que paga a mensalidade na saúde e é abandonado na doença ficará impedido de recorrer à Justiça para garantir os seus direitos.

Volta-se à discussão com relação a dispositivos legais que pretendem restringir eventual concessão de liminares, sejam de conteúdo cautelar ou satisfativo.

Tal nos leva a discutir com relação à própria limitação do acesso ao Poder Judiciário.

A Constituição de 1988 prevê, em seu artigo 5º, XXXV, o livre acesso ao Poder Judiciário.  

Mas há discussões com relação legal à concessão de liminares.

"Pode a lei, também, proibir simplesmente as liminares. Desde que não vedado o direito à ação principal, o que ofenderia a Constituição, nada impede coíba o legislador, por interesse público, a concessão de liminares." (Galeno Lacerda, in Comentários ao CPC, VIII/188, t 1, 2ª ed., p. 341)

“Se examinarmos nossa garantia máxima em termos de direito de ação, assegurada pela Constituição, que é conhecida regra do parágrafo quarto de todas as declarações de direito desde a Constituição de 1946, ou hoje, do inc. XXXV do art. 5º da Constituição de 1988, teremos que a lei não pode impedir alguém de submeter ao Poder Judiciário uma lesão de direito. A rigor parece-me que proibir ou conceder a possibilidade de outorgar medidas cautelares não fere essa regra. O que o legislador constituinte quer é que toda pessoa possa ingressar em juízo e submeter seu litígio à apreciação do Poder Judiciário. Extrair-se daí que é constitucionalmente exigida a concessão de medida liminar, parece-me exagero . Não me consta que alguém tenha chegado a esse ponto, a que também não vou.” (Egas Muniz de Aragão, in Rev. de Direito do Proc. Geral de Rio de Janeiro, p. 51)

“A  mera restrição ao poder de cautela do juiz, em casos determinados e diante de razões plausíveis, não conflita com a regra geral do amplo recurso ao Judiciário. A apreciação da demanda é sempre permitida, inviabilizando-se apenas o seu atendimento imediato, nas situações especificadas em lei, como medida de proteção ao Erário Público". (Lázaro Guimarães, in As Ações Coletivas e as Liminares contra atos do Poder Público, Visão, Salvador, 1992, p. 28)

Ora, estamos diante de patética inconstitucionalidade. A providência fere o princípio da razoabilidade, ao cercear o direito constitucional à saúde.

A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:

a) razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;

b) razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;

c) a razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Ora, não se pode  eleger uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação estatal. Os princípios constitucionais do Estado de Direito (artigo 1º) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da Constituição) exigem o confronto com parâmetros externos a elas. 

Não se pode conviver com discriminações arbitrárias.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida e, ainda, uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins. No caso em tela há absoluta dissonância entre os motivos, meios e fins da medida, de forma a aduzi-la como fora do razoável.

Tais ilações foram, essencialmente, de cogitação do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, como bem ensinou Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo, ed. Saraiva, 2003, pág. 228), ao externar um outro qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou da necessidade da medida. Conhecido, ainda, como princípio da menor ingerência possível, consiste no imperativo de que os meios utilizados para consecução dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão. É o que conhecemos como proibição do excesso.

Há ainda o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, que se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do principio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de  fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.

A medida proposta é fortemente desproporcional.

A Constituição Federal de 1988 consagra como direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros a igualdade, a dignidade da pessoa humana, os direitos à vida e à saúde, entre muitos outros, declarando, ainda, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas. Ainda, permite a Constituição que os serviços de saúde sejam executados por pessoas jurídicas de direito privado (Planos de Saúde).

E este tem cumprido sua missão constitucional de garantidor dos direitos sociais, compelindo o Estado ou os Planos de Saúde Privados a fornecerem os medicamentos necessários ao tratamento, inclusive através da concessão de medidas liminares, quando comprovada a necessidade do tratamento e a urgência na realização do mesmo.

Protege-se a vida independentemente  de cláusulas contratuais, a começar dos princípios da boa-fé, da autonomia da vontade, do consensualismo.

Ademais, a teor do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor é vedado ao fornecedor de produtos recusar atendimento às demandas, na exata medida de suas disponibilidades de estoque.

A participação da iniciativa privada na assistência à saúde ocorre basicamente de duas formas: a chamada “saúde complementar”, mediante convênio ou contrato de direito público firmado com o SUS, sendo privilegiadas as entidades filantrópicas e aquelas sem fins lucrativos; e a designada “saúde suplementar”, em que os cuidados são prestados diretamente pelas operadoras de planos de saúde, por meio de contrato de direito privado, regulada pela Lei nº 9.656/98, devendo estar, ainda, em conformidade com as diretrizes estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Constata-se, desde logo, que a primeira hipótese (saúde complementar) envolve uma atividade delegada à iniciativa privada (excluída a participação de empresas ou capitais estrangeiros), que atua em lugar da Administração Pública, mas está sujeita aos limites e diretrizes estabelecidos no convênio ou contrato administrativo (sendo vedada, contudo, a destinação de recursos a auxílios ou subvenções a instituições privadas com fins lucrativos) e submetida, portanto, aos princípios correntes do direito administrativo, inclusive no que se refere à eventual responsabilização na forma do artigo 37, § 6º, da CF.

Já os contratos firmados no âmbito da saúde suplementar, individual ou coletivamente, não se submetem integralmente ao mesmo regramento – o que não significa que o tema não mereça maior aprofundamento, até mesmo para justificar o reconhecimento, também em respeito ao princípio da autonomia da vontade, de uma liberdade (fundamental) de não contratação, no sentido de que ninguém é obrigado a contratar plano de saúde privado.

Além disso, resta a assistência prestada diretamente pelos profissionais da saúde, mediante consulta ou exame pago pelo próprio interessado, sujeita ao regime comum dos prestadores de serviços, notadamente o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90, doravante designada como CDC), e às exigências da vigilância sanitária.

Por várias razões, importa reconhecer a incidência de um sistema de tutela reforçada do usuário-consumidor-paciente, decorrente da convergência dos específicos deveres constitucionais (e fundamentais) de proteção do consumidor (art. 5º, XXXII, CF) e de proteção da saúde (art. 196, CF).

O princípio da proteção à saúde impede a limitação legal de concessão de liminares na matéria, algo que extrapola um direito fundamental.

Lembre-se que os serviços de saúde, mesmo quando prestados pela iniciativa privada e ainda que por meio de contratos, não perdem a “relevância pública” que lhes atribuiu o constituinte (art. 197, CF), não havendo dúvida no sentido de que a interpretação das cláusulas contratuais e o exame da responsabilidade pela execução adequada da assistência sanitária, devem estar submetidos à dupla incidência das normas de proteção, do consumidor e da saúde.

Se tudo isso não bastasse, o documento sugere mudanças no funcionamento do SUS e da Previdência Social, ampliando a idade máxima para a aposentadoria. A proposta pede que se avalie "a possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda". Ou seja, o sistema que hoje é universal e gratuito para pobres e ricos, indistintamente, passaria a cobrar de quem é mais rico pelos atendimentos oferecidos. Na prática, a medida poderia enfraquecer o sistema ao reforçar a migração da classe média para a saúde privada.

Em síntese, é inconstitucional a proposta de proibir liminares judiciais que determinem o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS, cujo intuito é, claramente, fazer com que hospitais e planos de saúde privados possam, mais facilmente, livrar-se de alguns atendimentos aos seus clientes, onerando ainda mais os cofres públicos.

Tudo isso é estarrecedor. 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Mais um capítulo na história da proibição de liminares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4429, 17 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41757. Acesso em: 18 abr. 2024.