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A irracionalidade como única garantia do sucesso do golpe de Michel Temer

A irracionalidade como única garantia do sucesso do golpe de Michel Temer

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A persistência da história é a única coisa que explica a destruição da nossa democracia pelos órgãos encarregados de protege-la.

Deve parecer estranho para muitos o fato das instituições criadas para instrumentalizar e defender a democracia estarem sendo utilizadas para criar uma nova tirania. Presidida por um marginal e controlada por uma maioria parlamentar composta de réus em processos criminais, a Câmara dos Deputados está dando um golpe de estado disfarçado de Impedimento. O Executivo recorreu ao judiciário, mas o STF se recusa a afastar Cunha do cargo e não vai interromper o golpe de estado.

Qual é a racionalidade jurídica do processo em curso? Para responder esta pergunta temos que fazer outra. Qual foi a racionalidade jurídica do processo de construção do Estado brasileiro?

Quando cá chegaram os portugueses estavam num estágio de desenvolvimento tecnológico mais avançado que os indígenas. E eles não tiveram dúvidas: usaram os argumentos jurídicos que tinham para exterminar os índios hostis e para ocupar o território. Os argumentos jurídicos dos colonos eram três: o sabre, o arcabuz e o canhão. Estes mesmos argumentos foram utilizados para garantir o transporte e o confinamento de negros africanos para a exploração econômica da terra.

Os negros, porém, estiveram sujeitos a outros argumentos jurídicos. Refiro-me aqui ao chicote, à canga, à mordaça e a vários outros instrumentos de tortura utilizados para brutalizar os escravos.

Durante o processo de ocupação e exploração colonial da terra, toda e qualquer resistência foi combatida não com argumentos e sim com a força bruta.  Os índios que não aceitaram o jugo luso foram exterminados junto com a Confederação dos Tamoios. O mesmo ocorreu com os mamelucos e cafuzos pobres e negros fugidos que ousaram desafiar o poder colonial, imperial e republicano. Cabanagem, Sabinada, Revolta dos Malês, Palmares, Canudos são exemplos sangrentos da racionalidade jurídica brasileira. A repressão feroz aos sindicalistas durante a Ditadura Vargas e Ditadura Militar são exemplos mais recentes da racionalidade jurídica brasileira.

O Estado brasileiro não é fruto de uma convenção pacífica. Ele foi criado a força com a exclusão de índios e negros e aperfeiçoado para produzir a exclusão dos descendentes daqueles que não são os herdeiros da Colônia e do Império. Nossa primeira república se caracterizava pelo voto censitário e de fato ela nunca deixou de existir no imaginário de personagens como o presidente da FIESP.

O sabre foi aposentado. O arcabuz foi substituído pelo fuzil e pela metralhadora. O canhão raiado é mais mortal, preciso e eficiente do que os antigos canhões de bronze utilizados pelos colonos portugueses. O mais novo argumento jurídico colocado à disposição do Estado brasileiro é o míssil de média distância, capaz de acertar seu alvo a 300 quilometros de distância.

Todas estas inovações não foram, contudo, capazes de destruir a natureza perversa e brutal do Estado brasileiro. A soberania popular como fundamento do poder político (tal como está prescrita na CF/88) é uma ilusão que está se desmanchando no espaço que existe entre a Câmara e o STF.

A persistência histórica das formas arcaicas de poder explica porque a Câmara quer depor a presidenta eleita pelos brasileiros e impor à nação o presidente dos empresários e dos bandidos ricos que comandam o Poder Legislativo. Nunca existiu um Estado de Direito no Brasil. A julgar pelo que ocorreu ontem, o STF segue sendo o principal órgão estatal a dar garantia institucional à irracionalidade jurídica tradicional.

Se chegar ao poder, Temer  será obrigado a usar todos os meios de violência à sua disposição. Ele certamente encontrará soldados dispostos a cumprir suas ordens. Não se enganem: os Juízes legitimarão a repressão aos adversários do golpe de estado. De fato, eles farão o mesmo que os juízes coloniais e imperiais fizeram quando legitimaram o extermínio de índios, de negros e de brasileiros pobres.

A racionalidade jurídica do golpe não existe. Justamente por ser desprovido de razão, o golpe é capaz de ressuscitar os aspectos mais doentios e deprimentes do processo civilizatório brasileiro. O fracasso do golpe representaria um novo estágio na História do Brasil? Só o tempo poderá responder esta pergunta. 



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