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JEF: As provas periciais no Brasil estão ameaçadas?

JEF: As provas periciais no Brasil estão ameaçadas?

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Por que as pericias médicas "simples", conforme proposta discutida atualmente no âmbito dos Juizados Especiais Federais (JEF), colocam em risco o sistema pericial baseado em ciência?

Este é o segundo artigo de uma série de três. O primeiro[1] abordou a urgência de se retornar as perícias médicas presenciais, única metodologia de implementação imediata, além de ter comprovada eficácia. Da mesma forma, mostrou a determinação dos peritos em propor medidas efetivas para resolver os problemas periciais e nosso firme compromisso com os hipossuficientes.

Este texto objetiva analisar a nova leitura da legislação que embasa a proposta das perícias não presenciais, suas consequências para todos os setores da vida civil, a efetividade das metodologias propostas e as consequências que trarão para o Juizado Especial Federal.


Dos Princípios:

A finalidade da justiça é, em essência, o ser humano. Nos dizeres de Mauro Schiavi[2] a Justiça visa a garantir: “máxime o acesso efetivo e real [...] à ordem jurídica justa, para garantia, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana...”

O objetivo se materializa na sentença, produzida pelo magistrado, em grande parte baseada no laudo pericial, que é fruto do trabalho do médico perito. Estabelece-se assim a seguinte cadeia de determinantes: médico perito – laudo pericial – juiz – sentença. A qualidade dos elementos dessa cadeia determina a qualidade da prestação jurisdicional. Essa qualidade é a regra a ser usada para avaliar o cumprimento da razão de ser da Justiça.

Em sendo o juiz portador dos conhecimentos necessários, hábil em seu manejo, perspicaz em identificar as situações onde o detalhe define a direção a ser seguida, capaz de identificar as armadilhas que lhe são postas a fim de distorcer a clara visão dos fatos, de não se deixar levar pelas emoções que possam influir em seu lúcido julgamento, outra não é a conclusão de se tratar de individuo virtuoso, pois somente nesses existe a força capaz de realizar os esforços necessários para atingir o grau de proficiência exigido pela carreira que livremente abraçou. Do médico perito se exige as mesmas qualidades e firmeza de propósitos, afinal, “”prum” bom companheiro não conto dinheiro”[3]

A complexidade técnico-científica da perícia médica pode ser depreendida dos dizeres de França, 10ª edição: perícia médica é “uma arte forçosamente científica [...] exigindo uma cultura maior e conhecimentos mais abrangentes do que em qualquer outro campo da Medicina. [...] E é Arte também porque, mesmo aplicando técnicas e métodos muito exatos e sofisticados em busca de uma verdade reclamada, necessita de qualidades instintivas”. Se assim não fosse, Hélio Gomes não teria asseverado que não basta ser médico para realizar perícia, por mais qualificado que seja na medicina assistencial, como não basta ser médico para realizar cirurgias. Desconsiderar essas exigências torna a perícia “improfícua e perigosa”. (sem grifos no original)

A simples possibilidade de mácula na perícia se transfere ao processo e invalida o julgado. Tanto é assim que as situações de impedimentos e suspeições são comuns a juízes e médicos peritos. A mera possibilidade de mancha deve ser evitada.


Da Barreira Legal Não Superada:

O ponto em questão é: as sociedades médicas, brasileiras[4],[5],[6] em conformidade com o entendimento internacional, definem que somente a perícia presencial é capaz de avaliar a capacidade laboral do indivíduo, seguindo métodos cientificamente válidos. Os Núcleos de Inteligência do TRF3 e TRF4 afirmam que esta avaliação pode ser feita por “perícias simples”, portanto, sem seguir os parâmetros científicos necessários. A expressão “perícias simples” está entre aspas por serem métodos sem base científica e abrange os diversos modelos propostos, como por exemplo, como teleperícia, pericia documental em indivíduo vivo, prova técnica simplificada.

A legislação brasileira impõe às perícias as seguintes exigências, através do artigo 473 do CPC/2015, que diz:

Art. 473. O laudo pericial deverá conter:

II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito;

III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;

É dizer, perícia, “análise técnica ou científica”, que não está fundamentada em método científico “aceito pelos especialistas da área” não tem validade. Se não preenche este critério, não podem ser usada para fundamentar sentença, pois, uma vez usada, invalida o julgado. Este é o entendimento próprio do senso comum. Caso a tese das “perícias simples” vença, quais seriam as possíveis consequências? Cabem aqui diversas indagações:

Qual o fundamento legal para tirar dos especialistas o dever de definir o método adequado para avaliar questão técnica? Qual o fundamento legal que dá a parte do judiciário a competência para definir a metodologia a ser usada nas perícias? Se tiver competência, qual fundamento autoriza a proposição de método sem sustentação cientifica. Existe necessidade de se enfrentar três questões: Desautorizar os especialistas; assumir a competência para definir metodologia pericial e; desautorizar a ciência como base do método proposto.

Em tese, alguns podem alegar que as leis promulgadas na vigência da epidemia sustentam a realização de perícias não presenciais, mas o argumento é falho. Mesmo admitindo a hipótese, esses métodos alternativos necessariamente teriam de alcançar os mesmos resultados dos métodos cientificamente aceitos pois o artigo 473 do CPC não foi revogado.

Quais seriam as repercussões se estas “perícias simples”, sem base cientifica, fossem aplicadas? Tais julgados teriam validade? Se adotadas como norma, todo esse braço da justiça poderia ser questionado? Nesse caso, essa parte do judiciário correria o risco de perder credibilidade? Essa queda de credibilidade poderia ser de tal monta que sua própria existência possa vir a ser questionada?

Os benefícios assim conseguidos terão a necessária segurança jurídica? Haverá risco da obrigação de devolução de valores? Qual será a reação da parte vencida?

Por valerem para perícia médica, naturalmente complexa, vale por analogia, também, para as perícias em outras áreas. Se são aceitas na JEF, precisam ser aceitas nos demais ramos da justiça. Se isso ocorrer, teremos o fim da ciência no judiciário civil brasileiro?

As “perícias simples” são má prática médica. Se por interferência do judiciário, a má prática for instituída, por equiparação, isso pode um dia vir a atingir as demais especialidades médicas? Se existe o risco da má prática ser a regra na medicina isso pode vir a se estender para as demais profissões?

Há quem possa alegar que a demonstração acima é tão somente um desvario lógico, o que, em pura verdade, seria o meu desejo. Mas não se trata de delírio, posto que já há quem defenda oficialmente a má prática médica. A defesa da sistematização da má prática médica no Brasil foi feita pelo Ministério Público Federal, que “recomendou”[7] ao CFM que não tome qualquer medida contra médicos que realizarem essa má prática médica. Essa recomendação, além de defender a má prática, colocaria em dúvida a necessária auto regulamentação da medicina?

Havemos agora de considerar como a Justiça Estadual se pronunciará quanto aos possíveis pedidos de indenização por má prática.  Caso a Justiça Estadual, por analogia, decida que a má prática está institucionalizada, o que será da sociedade brasileira? Por outro lado, se considerar que a sociedade não pode viver à margem da ciência, o que ocorreria com os julgados feitos no JEF? E com a própria JEF? Os médicos que atuarem no sistema de “perícias simples” teriam que indenizar os que se sentirem prejudicados por suas decisões, posto que são frutos de má prática?

Penso eu que a simples possibilidade desses riscos é suficiente para nos afastar do abandono da ciência como norma, de se retirar competências de órgãos técnicos e as repassar a não especialistas.


A Perícia é um Ato Médico ou Ato Processual?

A questão é colocada partindo da premissa de que algo é o que é, não podendo ser outra coisa. A finalidade óbvia, ainda que não declarada, é dar credibilidade ao argumento: se perícia médica é ato processual, como defende quem levanta a questão, não segue as normas médicas.

Trata-se de uma falsa dúvida. Se é certo que a essência não muda, pois se mudar deixa de ser o que era, é igualmente certo que a essência não se confunde com seus acidentes (predicados). A essência tem muitos predicados e se relaciona com outras essências de diversos modos e intensidade.

A esfera deixa de ser esfera quando se transforma em quadrado, mas não deixa de ser esfera por passar de branca a vermelha. Da mesma forma, o amarelo pode ser predicado tanto da casa quanto do carro. O mesmo se diga do uso. Uma essência pode ter vários usos. Da mesma forma que uma finalidade pode fazer uso de várias essências para se concretizar.

Exemplo dessa última é a medicina, que usa diversas ciências, como física, química, matemática, biologia, dentre outras, na sua prática. Essas ciências, por certo, continuam existindo conforme suas próprias leis e termos, não perdem suas essências. Por seu turno, a medicina não pode pretender transformá-las, tanto por ser impossível, quanto por ser inútil. Se, hipoteticamente, pois que é impossível, a medicina transformasse a química, por exemplo, ela imediatamente deixaria de ser química e, portanto, passaria a ser inútil para a medicina.

Desta, forma a medicina está para o direito. A medicina serve o direito através de atos médicos, sem jamais perder sua essência. Perícia médica é ato médico usado pelo Direito para bem desempenhar suas funções. Se o direito nisso interferir, a arte médica deixaria de ser o que é e, imediatamente, seria transformada em algo novo, indefinido, inútil ao Direito e desastroso para quem se utilize dessa deformação. Seria tão perigoso quanto se deixar operar por uma técnica cirúrgica definida por uma abstração jurídica, ou de aceitar ser periciado por metodologia estabelecida pela mesma abstração. Parafraseando Hendricks [8]: É seguro considerar a opinião daqueles (cirurgiões ou peritos) que apontam esses equívocos, mas deve-se temer os que não se importam.


Dos Vícios de Origem:

A proposta de impor que as perícias devem ser feitas ao largo dos conhecimentos científicos foi apresentada sob a tutela de vícios de origem, alguns deles abaixo descritos.

Uma Nota Técnica ostenta esse nome por ser adequada a duas finalidades: Diante de um problema, aplica conhecimentos técnicos a fim de resolvê-lo ou, partindo de um conceito técnico estabelecido e reconhecido, esclarece dúvidas. Pressupõe, nos dois casos, a imparcialidade e o estreito respeito aos conhecimentos técnicos. Por outro lado, quando uma área do conhecimento é usada para atingir um objetivo, recebe o nome de defesa ou contestação. Nessas não se espera imparcialidade e permite-se que teses sejam criadas, com o intuito de sustentar posição previamente definida.

A Nota Técnica NI CLISP 12, quando declara ter por finalidade “fornecer subsídios”, o que equivale dizer fornecer argumentos de defesa ou acusação de algo ou posição já definida, “para viabilizar a realização de teleperícia ou perícia virtual nas ações judiciais que tratam de benefícios por incapacidade”¸ revela a tese que vai defender (perícias médicas sem lastro científico) e consequentemente a tese que vai atacar (perícias presenciais baseada em ciência),  torna público que não é uma Nota Técnica e sim a defesa de um ponto previamente estabelecido, ou seja, peça de defesa e de acusação.

Como “parte” em uma contenda, a nota visa a “...possibilitar o devido trâmite de milhares de processos judiciais...”. O objetivo é melhorar o acesso ao judiciário. Tal objetivo, entretanto, se contrapõe à finalidade da Justiça que é garantir o acesso real e efetivo à ordem jurídica justa. Não basta garantir o acesso, é necessário garantir o acesso à ordem jurídica justa.

Comete erro na análise das causas da ociosidade do Judiciário, pois esta não se originou da pandemia propriamente dita, e sim, pelas condutas administrativas tomadas pelo judiciário, sem orientação técnica. O CNJ, através da RESOLUÇÃO Nº 322, 01/06/2020, reconhece a verdade desta análise pois, apesar de estarmos em uma etapa de maior atividade da pandemia, determina que os atendimentos presenciais devem ser mantidos, ou interrompidos, em função da situação epidemiológica de cada local. Soma-se a isso o parecer favorável para o retorno das pericias presenciais, expedido no bojo do pedido de providencias  Número: 0003451-62.2020.2.00.0000, nos seguintes termos: “não há razões para se obstar que as unidades judiciárias da 4ª Região  [extensível aos demais tribunais brasileiros]  que tenham comprovado condições para realização de perícias presenciais possam realizá-las”.

A Nota Técnica Nº 04/ 2020 – PRCTBCLIPR, emitida em 22.04.2020, TRF4, padece, em essência, dos mesmos vícios. Traz, entretanto, duas novidades: Advoga que duas outras modalidades de perícia não presenciais, igualmente sem base científica, a perícia indireta (documental) e a prova simplificada, podem ser usadas no lugar das perícias presenciais lastreada em ciência; propõe que as perícias não presenciais devem ser implantadas como rotina no judiciário especializado.

Ao longo das notas fica evidente a preocupação dos Centros de Inteligência com o bom andamento processual e com o hipossuficiente. Independente do conteúdo das propostas, o fortalecimento do intercâmbio entre esses importantes e produtivos centros com as instituições que os peritos temos hoje será muito fecundo na resolução desses e de outros problemas.


Das Causas e Efeitos:

Advoga a nota do TRF4, que as perícias não presenciais devem ser adotadas na rotina no JEF como forma de “enfrentamento do problema que envolve a produção de prova técnica” mesmo depois de passada a pandemia. Entretanto, o “problema” não é definido. Mais adiante aponta a existência de um sintoma: “o enorme acúmulo de processos previdenciários aguardando a realização de perícias médicas”.

Usando os poucos dados apresentados e considerando o fato de o Tribunal ser o responsável por suprir a sociedade das necessárias perícias, o problema pode ser posto da seguinte forma:

“O judiciário não consegue suprir a sociedade do número de perícias necessárias para atender à demanda”.

Assim colocado, percebe-se que o problema tem quatro componentes: O Provedor (Judiciário – capacidade de prover); A necessidade (necessidade de avaliar incapacidade); Demanda (número de avaliações necessárias) e Oferta (quantidade de avaliações a disposição).

Isso evidencia que o objeto que supre a necessidade (perícia) faz parte do problema apenas em quantidade. A qualidade do mecanismo avaliador (perícia médica) é determinada pela necessidade (complexidade da avaliação de incapacidade no ser humano). A necessidade não muda; é a essência do que é posto para ser julgado. Essa necessidade, por imutável que é, está fora do controle do judiciário. Da mesma forma, o meio de avaliação, por ser determinado pela ciência, igualmente está fora do controle do judiciário.

Desta forma, diminuir a qualidade do método de avaliar incapacidade não resolverá o problema da morosidade do trânsito processual. Pelo contrário, método de avaliação ruim não supre as necessidades e compromete o julgado. É dizer, vai piorar a qualidade da ordem jurídica hoje ofertada, não vai acelerar o trânsito e, muito provavelmente, vai torná-lo mais lento ainda.

 A situação é a mesma do pai que não consegue prover seus filhos dos alimentos que necessitam. Diminuir o valor nutricional da alimentação não resolverá o problema. Por mais que o sofrimento paterno nos comova, pois sentimos tanto pelos rebentos quanto pelos pais, é nosso dever, como fornecedores de alimentos, informarmos que alimentação adquirida é inadequada, mesmo correndo o risco de sermos incompreendidos, e num primeiro momento, até acusados de falta de cooperação, desumanidade, e outros que tais. Devemos, mesmo assim, informar ainda que, se por infelicidade, toda a sociedade adotar a “solução” apontada por esse pai e passar a alimentar todas as crianças com alimentos sem valor nutricional, caminhará inexoravelmente para uma sofrida extinção.

Os três outros componentes do problema: Provedor, Demanda e Oferta, serão tratados no próximo artigo, pois neste precisamos tratar das deficiências específicas de cada alternativa proposta.


Das Insuficiências:

Alegando o artigo 464 do CPC como premissa, os propositores das perícias não presenciais tiram as seguintes conclusões: as perícias têm formato “bastante flexível”; a perícia pode se restringir apenas a inquirição do perito o que permite sejam feitas também por “procedimento intermediário” que consiste em análise de documentos e anamnese do “paciente” (termo do original). Tais conclusões são falsas.

O artigo 464 trata, a bem da verdade, das situações onde a perícia não se faz necessária. É dizer que o artigo trata do gênero “não perícia”. Esse gênero, “não perícia”, alberga as situações onde as perícias não são feitas por serem desnecessárias, ou porque as informações técnicas necessárias já estão presentes nos autos ou, porque necessitam de informações técnicas genéricas, fáceis de serem obtidas por simples perguntas, pois não precisam de “Exame, Vistoria ou Avaliação” para serem esclarecidas. Esses casos são resolvidos por procedimento simples chamado prova técnica simplificada.

Importa estabelecer que o nome “prova simplificada” retrata a simplicidade da prova, ou seja, simples arguição. É a prova que é simples. Por isso somente pode ser empregado em casos “de menor complexidade,” e consistem “apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido”.

Assim sendo, prova técnica simplificada não é perícia, pois não faz “EXAME, VISTORIA ou AVALIAÇÂO” e se constitui “apenas na inquirição de especialista, pelo juiz’. Nada além disso. As perguntas são respondidas com base nos conhecimentos científicos na área, ou seja, mesmo a prova simplificada não renuncia à ciência. Perícia médica, por outro lado, como dito, baseia-se na aplicação dos conhecimentos científicos ao caso concreto após complexa avaliação, investigação de fato controverso, seguindo rígida metodologia cientifica.  Nada tem de simples.

 Desta forma, a prova simplificada não se confunde com perícia e nenhuma delas renuncia à ciência. No caso da perícia médica tal confusão conceitual atinge patamares críticos pois tanto o método quanto o assunto estão distantes da simplicidade.  

Na prova técnica simplificada, o especialista não pode fazer Exame, Vistoria ou Avaliação. Se fizer, qualquer uma dessas atividades fará PERÍCIA e, como tal, deve seguir o determinado no Artigo 473 do CPC.

Todos os tipos de “perícias simples” defendidos, em alguma medida, fazem “AVALIAÇÂO, VISTORIA ou EXAME”, ou seja, necessariamente são perícias. Assim sendo, nenhuma das características da prova técnica simplificada pode ser aplicada a elas. Todas elas precisam seguir o rigor metodológico do artigo 473, seguir parâmetros científicos, e o não cumprimento da metodologia cientifica gera todas as indesejáveis consequências já descritas. Esta constatação invalida todas as modalidades de perícias não presenciais propostas.  

Como “prova simplificada” não é perícia, conclui-se que a legislação brasileira admite dois tipos de provas técnicas: Perícias feitas dentro de rigor científico aprovado pelos especialistas e simples arguição de técnico. Não existe espaço para abstrações, mesmo quando se considera tão somente o artigo 464. A legislação não autoriza que se abandone o rigor científico.

Caso o juiz elabore quesitos que possam ser respondidos sem que nenhuma avaliação ou exame seja necessário, então aplicará a prova simplificada para definir incapacidade. Essa probabilidade me parece inverossímil, porém, é teoricamente possível e, se ocorrer, o será em número tão pequeno de casos que não terá efeito algum no sistema.

Por conseguinte, é impossível dizer que a perícia médica tem formato “bastante flexível” por vários motivos: 1. Prova técnica simplificada não é perícia. 2. Mesmo a prova técnica simplificada não tem formato “bastante flexível”, pelo contrário, tem formato rígido e se constitui tão somente de uma lista de perguntas que possam ser respondidas por um técnico sem que seja necessário realizar exame ou avaliação alguma. 3. As perícias médicas seguem padrões, métodos científicos e esses, por sua natureza, são rígidos. Essa rigidez metodológica, obvia ao senso comum, foi prudentemente explicitada pelo legislador no artigo 473, que trata das perícias e se constitui, por isso, na única fonte de conclusões sobre elas.

Alegar que “perícia” pode se restringir a “inquirição do perito” é igualmente falso. Arguição não é perícia, pois não envolve Exame, Vistoria ou Avaliação e, por isso, se chama prova simplificada e não “perícia simples”. A prova simplificada somente tem indicação nos casos que não precisam de perícia para serem resolvidos. Nada sustenta que prova simplificada possa ser usada como sinônimo de perícia pois que nem espécie de perícia é. É espécie do gênero “não perícia” como já dito.

Impossível é concluir que o artigo 464, ao autorizar que o técnico inquirido na prova simplificada responda as perguntas por meio digital gere, por analogia, autorização para que a perícia médica seja realizada através de meio virtual. Além da impossibilidade de se equiparar perícia à prova simplificada, existe aqui erro formal, pois se confunde meio de comunicação capaz de transmitir informação simples, com meio adequado de investigar fato complexo e controverso. Se assim fosse, teríamos que admitir ser possível fazer perícia de incapacidade por telefone ou carta, pois estes são meios adequados de se esclarecer uma dúvida.

Fica claro que equiparar perícia médica com qualquer espécie de “não perícia” é uma simplificação inaceitável. Mas esta simplificação traz em si uma crueldade que passou desapercebida pelos defensores das “perícias simples”. Vou descrevê-la única e tão somente para evidenciar que partir de premissa equivocada gera consequências absurdamente inesperadas.

Todas as formas simplificadas de obter informação são utilizadas para esclarecer questões de menor complexidade, e se a proposta é usá-las para avaliar incapacidade nas ações previdenciárias, significa dizer que estes indivíduos são igualmente simples, desprovidos da natural complexidade humana, pois a ciência médica não admite que um ser humano pleno seja avaliado através de perícias não presenciais. Conclui-se que as propostas defendem que existem pessoas inferiores, um tipo de ser sub-humano, de segunda classe, que pode ser avaliado por métodos simples, “lidos” através de uma câmera de vídeo ou de um conjunto de documentos. Isso, por obvio, jamais foi a intenção dos propositores das perícias simples.


Teleperícias:

É transparente que muitos que defendem a teleperícia não fazem ideia do significado do termo e nem sequer do abrangente termo “Telemedicina”. Não sabem, inclusive, que este termo (teleperícia) não existe na literatura mundial, posto que a ideia é inconcebível nas sociedades que prezam por padrões técnico científicos mínimos. Tampouco sabem a diferença abismal que há entre primeiro atendimento em medicina assistencial (teleconsulta) e seguimento de paciente portador de doença crônica. Afastados desses conceitos básicos, formularam a crença de que teleperícia equivale a seguimento de pacientes com doença crônica.

A telemedicina é eficaz no seguimento e acompanhamento de pacientes portadores de doenças crônicas como o diabetes e a hipertensão.

O primeiro atendimento em medicina assistencial por meio digital só é permitido em situações extremas, fortemente regrado. São atendimentos de exceção dada a impossibilidade de sua realização como norma. Como assim o é, e como a perícia médica é ato médico mais complexo do que o atendimento assistencial, o que autoriza supor que a perícia virtual poderia ser implantada como padrão? A resposta é: Nada.

Abordarei aqui, para demonstrar o dito, unicamente o tema mais desprezado pelos defensores da teleperícia, pois o julgam perfeitamente exequível de ser realizado por meio digital. Esta crença revela tão somente o desconhecimento do que seja uma perícia médica, assunto que pretendem regular: Trata-se da anamnese.

Não percamos de vista que o atendimento médico presencial é baseado na confiança mútua, na livre escolha do profissional pelo paciente, na busca do mesmo objetivo. Essa é a síntese da relação médico-paciente. Esta relação é essencialmente estabelecida na anamnese, entretanto, não é fácil de se estabelecer, como apregoam alguns desconhecedores do assunto. Para se ter uma ideia pálida, mas creio que para o caso seja suficiente, das dificuldades de se estabelecer relação médico-paciente eficaz, vejamos o que alguns mestres dizem sobre a anamnese:

Surós[9] inicia o assunto afirmando que a “anamnese é o primeiro ato que conduz ao diagnóstico. É contato interpessoal do que sofre com quem ele confia e que procura em busca de cura ou alívio de seus males”. Acrescenta que “todos os médicos destacam seu valor clínico e fundamental importância para o diagnóstico”. Padilha, em tradução livre, afirma que “a anamnese é a base fundamental e insubstituível do diagnóstico. É a parte do exame clínico....que exige a maior ciência e experiencia do médico”. Quanto mais sabe o facultativo, mais dados obtém da anamnese de seus pacientes e mais aprecia sua importância, diz Siebeck. No mesmo sentido, Von Bergmann declara que quem se dedica ao estudo da anamnese com afinco, conduzindo seus diálogos com fino tato e sentido clínico, chegará a ser o melhor dos médicos.

Segundo Surós, o ato médico deve ser “isolado no tempo e no espaço, um diálogo singular entre dois únicos personagens. Começa com uma confidencia, uma confissão, prossegue com um exame, e finaliza na prescrição de um tratamento”. Continua afirmando que o paciente não é um objeto de estudo, devendo ser entendido nas suas emoções, no seu sofrimento, pessoa com a qual o médico está “espiritualmente vinculado”. “É a convivência cordial de duas almas, de duas pessoas”.

A anamnese, ainda segundo Surós, deve ser realizada em ambiente controlado, sem interferências externas, interrupções. O paciente deve ter ampla liberdade de se expressar e aqueles pouco expressivos devem ser inquiridos de forma a se revelarem. Em tradução livre, declara “O médico se sentará em frente ao enfermo e escutará seu relato olhando-o nos olhos, sem impaciência”, e continua: ouvir com sincero interesse, benevolência e ausência de julgamentos é a forma de apreender a realidade e conduzir a anamnese em sentido clínico.

Fica claro que a anamnese não é um bate papo de amigos, o relato frio de dados ou a leitura de um texto estéril de sentimentos. Nela nada há de rotineiro, estático ou certo. É arte fugidia, primorosa, minuciosa, de difícil estudo e aprendizado, aprimorada com os anos, baseada em esmerado tato, delicados nuances, pequenos gestos e expressões, exibidas ou ocultadas, conscientemente ou não. Acrescento que a anamnese é o caminho pelo qual o médico se torna especialista em gente.

Não é surpresa alguma que o primeiro atendimento em medicina assistencial por via digital somente é permitido em situações especiais que atendam a requisitos específicos de segurança. É exceção!

Em 2018, na discussão causada através da Resolução do CFM nº 2.227/2018, assim me referi sobre a anamnese[10]:

“Nenhuma das formas usadas para suprimir ou diminuir o tempo da anamnese foi capaz de substituir a anamnese conduzida presencialmente. As sutilezas do contato pessoal, a amplitude do campo de observação, o domínio do ambiente, a crescente empatia, a capacidade de ouvir e estabelecer relação de confiança, se mostrou insubstituível.”

A anamnese na perícia médica é mais difícil e importante. Na perícia não há relação de confiança entre as partes, não há livre escolha do perito, não há objetivos comuns. O médico perito não busca atender as necessidades do periciado e sim da justiça e o periciado vê o perito como uma barreira a ser vencida para que obtenha o benefício a que tem direito ou que julga ter. A relação médico-paciente é substituída pela relação perito-periciado. Por obvio, as imensas dificuldades do primeiro atendimento assistencial virtual são multiplicadas no ato pericial. Se o primeiro atendimento assistencial por meios virtuais somente é possível dentro de situações excepcionais, o atendimento pericial é impossível.

Como supor que o médico perito consiga estabelecer relação capaz de evidenciar a verdade, garantindo o direito dos que não são capazes de referir seus males, dos que tem pouco acesso a serviços de saúde - e, consequentemente, poucos dados objetivos a apresentar, ao mesmo tempo que, sem conflitar com a angústia dos necessitados ou daqueles que, mesmo não tendo, acreditam ter direito a algum benefício - através de uma câmera de vídeo? É possível se aventar a hipótese de que é possível “ler” um indivíduo desconhecido, de imediato, através de uma câmera de vídeo, em ambiente descontrolado, com a participação, ainda que oculta, de terceiros, o que compromete a transparência do ato processual, com todas as dificuldades já traçadas?


Perícia Documental:

A ciência já discutiu fartamente esse assunto, estando as conclusões científicas sumarizadas no Processo Consulta CFM nº 37/2015 e no Parecer CFM nº 4/2017, com a seguinte ementa:

É vedado ao perito médico assinar laudos periciais quando não tenha realizado pessoalmente o exame no requerente, salvo em caso de óbito quando poderá ser designado a realizar perícia indireta documental. Na impossibilidade do periciando comparecer ao exame médico pericial, o perito médico deverá proceder à visita hospitalar ou domiciliar para comprovação in loco da incapacidade laborativa.

É oportuno acrescentar que a ação previdenciária tem como base dois conjuntos de documentos que apontam em sentidos opostos. Ambos legalmente válidos e produzidos em atendimentos periciais. O senso comum rapidamente percebe que não é possível afastar um desses conjuntos apenas analisando os documentos.

Na prática, os documentos médicos gerados pela previdência, rarissimamente, estão presentes nos autos e os documentos médicos apresentados pelos segurados não costumam apresentar as informações necessárias para terem validade pericial (documental), pois não atendem à Resolução CFM 1851/2008. Ou seja, um conjunto de documentos não é apresentado e o outro é imprestável como documento pericial. O que há para ser avaliado na prática, no concreto?

Aqui existe uma sugestão a ser dada, exequível, e que melhorará a qualidade das perícias presenciais: 1. Tornar regra que a previdência encarte as perícias médicas realizadas, e não somente a parte administrativa que, às vezes, é apresentada e; 2. Tornar regra que o segurado apresente cópia integral do seu prontuário médico, quer seja de serviço público, quer seja de serviço privado.

Em uma análise estritamente documental, se a previdência apresentar os documentos médicos que produz, não será possível discordar das suas conclusões porque costumam estar de acordo com a Resolução CFM 1851/2008, o que não acontece com os documentos médicos trazidos pelo segurado. Ou seja, os documentos dos segurados teriam que ser descartados por serem imprestáveis do ponto de vista estritamente documental e a lide, se avaliada somente do ponto de vista documental, sempre seria favorável à previdência.

Ao fim e ao cabo, em igualdade documental (as partes não apresentam documentos válidos ou ambas apresentem documentos válidos), não é possível haver decisão médico-pericial fundamentada cientificamente, pois os dois conjuntos gozam de presunção de veracidade e foram emitidos em exames presenciais. Se apenas uma parte apresentar documentos médicos válidos, decidirá a lide a seu favor. Decisões fora desses padrões dificilmente estarão fundamentadas em dados científicos.

Prova Técnica Simplificada:

A prova técnica simplificada, que não pode ser confundida com perícia, visa à arguição do perito sobre ponto controvertido. Toda ciência trata de assuntos gerais e a medicina não é exceção. A medicina conclui o que é válido para as pessoas que se enquadram em determinada condição e é somente sobre isso que o médico pode ser inquirido. Para isso, o médico inquirido sequer precisa ter os conhecimentos exigidos e necessários do perito médico, pois elucidará questões gerais dentro do conhecimento médico assistencial. Em suas respostas, o médico pode dizer se uma patologia, em tese, pode ou não gerar incapacidade, mas nada poderá revelar se o segurado é realmente portador da patologia e menos ainda se a patologia, caso exista, está ou não gerando incapacidade.

Da Tramitação Processual no JEF:

O que se pode esperar se o modelo de perícias não presenciais for implantado como forma rotineira de avaliar incapacidade nas ações previdenciárias? É crível que o número de ações aumente substancialmente, pois é difícil supor que a parte prejudicada aceite sentença baseada em tão frágil fundamento. Pelos mesmos motivos, os CRMs e o CFM serão sufocados por inúmeras queixas de má prática, ao mesmo tempo em que a Justiça Estadual receberá inúmeros pedidos de indenização pela mesma má prática.

Por outro lado, caso não existam médicos dispostos a participar destes eventos, os processos sofrerão atrasos maiores do que os atuais.


Conclusão:

Por todo o exposto, espero ter esclarecido que as perícias médicas não presenciais são inúteis para atingir os objetivos a que se propõem, além de causarem sérios prejuízos aos JEFs que, inclusive, podem respingar na sociedade.

Mais importante que isso, entretanto, é a constatação da imensa importância que o judiciário dá ao assunto, não poupando esforços para resolvê-lo. O fortalecimento do intercambio entre o judiciário e os peritos, posto que agora dispomos de estrutura organizacional que suporte tal comunicação institucional, em curto espaço de tempo será capaz de construir e implantar soluções que aliviem os sofridos brasileiros que têm, na previdência, sua fonte de subsistência. Tais soluções devem contemplar tanto o tempo de tramitação, quanto a ordem jurídica justa. Os conhecimentos técnicos, médicos e jurídicos, juntos, haverão de superar os desafios postos e vindouros.

No próximo artigo abordarei os outros três componentes do problema: demanda, oferta e provedor.


Notas

[1] JEF: A Ascensão da Perícia Médica Previdenciária acessível em https://jus.com.br/artigos/82709/jef-a-ascensao-da-pericia-medica-previdenciaria-1-3.

[2] Acessível em https://www.trt7.jus.br/escolajudicial/arquivos/files/busca/2015/NOVO_CODIGO_DE_PROCESSO_CIVIL-_APLICACAO_SUPLETIVA_E_SUBSIDIARIA.pdf

[3] Peão, música, Almir Sater

[4] Nota conjunta CFM, AMB, ABMLPM e ANAMT. Acessível em https://abmlpm.org.br/telepericia/

[5] Nota Técnico 03, maio 2020 IBPM – Teleperícia na Avaliação de Capacidade Laborativa

[6] ABP sugere reanálise da Teleperícia autorizada pelo CNJ Acessível em https://www.abp.org.br/post/abp-reanalise-telepericia-cnj

[7] MPF, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC e dos Grupos de Trabalho “Direito à Assistência e Previdência Social”, “Inclusão para Pessoas com Deficiência” e “Saúde Mental”- , através da RECOMENDAÇÃO Nº 4/2020/PFDC/MPF, referindo o Procedimento Administrativo PA - PPB n° 1.00.000.007208/2020-56.

[8] A Revolta de Atlas, Ayn Rand, Editora Arqueiro, 2010

[9] Surós, 8ª edição, Língua Espanhola

[10] A Sociedade e a Precarização da Medicina. Acessível em https://www.saudeocupacional.org/2019/02/a-sociedade-e-a-precarizacao-da-medicina.html


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVAREZ, Marcos Antonio. JEF: As provas periciais no Brasil estão ameaçadas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6189, 11 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82947. Acesso em: 18 abr. 2024.