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A responsabilidade patrimonial do empresário individual sem personalidade jurídica

A responsabilidade patrimonial do empresário individual sem personalidade jurídica

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Mesmo despido da personalidade jurídica, e ainda que a sua responsabilidade seja ilimitada, o empresário pessoa física conta com um simples e robusto sistema protetivo frente aos credores, a permitir que bem desenvolva sua atividade.

Introdução.

A atividade empresarial, fundamental à consecução dos princípios constitucionais que regem a atividade econômica, encontra no empresário individual um importante elemento a traduzir o espírito da livre iniciativa.

Justamente em razão da importância social e econômica do empresário, é que se tem por necessária a adequada a abordagem sobre os efeitos decorrentes do exercício da empresa individual, notadamente a título de responsabilidade patrimonial.

As incertezas do mercado, as variações da economia, as inconstâncias políticas e mesmo certa insegurança jurídica, impõem ao empresário justificada atenção aos limites da sua responsabilidade patrimonial, pelas obrigações da empresa exercida.

A delimitação de tal responsabilidade está diretamente relacionada à forma com que a atividade empresarial restou constituída, estabelecendo graus de maior ou menor responsabilização, conforme a estrutura legal adotada.

Embora a lei exija que o início de qualquer atividade empresarial seja precedido pela inscrição nos órgãos competentes, o simples atendimento a tal exigência não serve, por si, a conferir personalidade jurídica ao empresário, já que a personificação está a depender do modelo de empresa escolhido.

Sem olvidar do empresário informal, que opta por desenvolver a sua empresa sem atender à obrigação de regular inscrição nos órgãos de registro, o ordenamento oferece a alternativa de inscrição da empresa individual, com ou sem personalidade jurídica, e, a depender do modelo escolhido, decorrem diferentes níveis de responsabilidade patrimonial.

Sob tais aspectos, pelo método dedutivo, com pesquisa bibliográfica e documental jurídica, o presente estudo intenciona apontar as consequências patrimoniais da ausência de personalidade jurídica do empresário individual, comparativamente àquele que ostenta a personificação.


1. Do empresário. Opções de inscrição e efeitos.

Como concretização do princípio constitucional da Livre Iniciativa, preceito fundamental a reger a Ordem Econômica, previsto no artigo 170 da Constituição Federal, é dado a todos a oportunidade de livremente iniciar uma atividade empresarial, observadas certas limitações legais de ordem subjetiva e objetiva.

Garante-se, assim, o empreendedorismo, que bem se expressa pelo exercício de empresa, atividade própria do empresário ou da sociedade empresária, regida por todo um arcabouço jurídico próprio. 3224. 4026 A típica atividade empresarial, tal como delineada no caput do artigo 966 do Código Civil, pode ser desenvolvida por quem assim se manifestar interessado em aderir aos sistemas de inscrição ou registro que a lei faculta, seja de forma individual, ou com a participação de sócios.[1]

Não se ignora a existência de empresários irregulares ou informais, que são ordinariamente aqueles que não se inscrevem como tais nas Juntas Comerciais, em desobediência ao que determina o artigo 967 do Código Civil.[2]

Entretanto, reconhecendo uma clara realidade, e em atenção ao primado da Livre Inciativa, mesmo àqueles que, irregularmente, desenvolvem atividades empresariais pela falta de inscrição prévia, a Lei acaba por considerá-los típicos empresários, bastando que reúnam as características descritas no citado caput do art. 966 do Código Civil.[3]

Por óbvio, aos empresários irregulares não se conferem certas prerrogativas ou direitos que são inerentes à condição de regularidade empresarial, como a ausência de personificação, a responsabilidade ilimitada, a impossibilidade de requererem recuperação judicial etc.

Há, portanto, duas alternativas postas à disposição dos interessados em ingressar regularmente no mercado para o desenvolvimento de uma típica atividade empresarial, com a prévia inscrição na Junta Comercial: Iniciar uma atividade empresarial como empresário individual, sem se consorciar com outrem, ou, constituir uma sociedade empresária, ordinariamente plural quanto ao número de participantes.

No direito societário atual, decorrente das alterações introduzidas pela Lei 13.874 de 20 de setembro de 2019 (Declaração de Direitos de Liberdade Econômica), a atividade empresarial poderá ainda ser desenvolvida por uma única pessoa, natural ou jurídica, ao constituir uma Sociedade Limitada Unipessoal, como autoriza o novo §1º do artigo 1.052 do Código Civil.[4]

Excluída a hipótese de constituição de uma Sociedade Limitada Unipessoal, a pessoa natural que optar pelo exercício de atividade empresarial, sem sócios, contará atualmente com duas alternativas: Inscrever-se na Junta Comercial como empresário pessoa natural, ou como pessoa jurídica optante do sistema da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI.

Tal cenário, contudo, quanto às citadas opções de inscrição são relativamente recentes, pois até o advento da Lei 12.441 de 11 de julho de 2011, que introduziu em nosso sistema a existência da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada - EIRELI, a pessoa natural interessada em inaugurar por si uma atividade empresarial sem se consorciar com outrem, contava com apenas uma alternativa de inscrição junto aos órgãos regulares de registro de empresas, qual seja, a de se inscrever como empresário sem personalidade jurídica.

A EIRELI trouxe uma importante inovação, oportunizando à pessoa natural constituir regular empresa com personalidade jurídica e responsabilidade limitada, sem a necessidade de se consorciar com outrem, já que antes da vigência da Lei 12.441/2011, a única forma de personificação e limitação de responsabilidade se dava pela constituição de sociedades empresárias, pela sociedade Limitada ou Anônima.

Todavia, e a despeito dos evidentes atrativos que a EIRELI e a Sociedade Limitada Unipessoal anunciam aos interessados em aderir aos seus sistemas, faculta-se à pessoa natural que pretenda se tornar um regular empresário, simplesmente se inscrever na Junta Comercial sem que adira à sobredita Empresa Individual de Responsabilidade Limitada ou à Sociedade Limitada Unipessoal.

A pessoa natural, eventualmente não optante do sistema da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, conquanto cuide de regularmente se inscrever nas correspondentes Juntas Comerciais, como determina o sobredito art. 967 do Código Civil, e ainda que se torne por isso um típico empresário, em qualquer hipótese não adquirirá personalidade jurídica, e a sua responsabilidade empresarial será ilimitada.

Consequentemente, face à falta de personificação, o empresário submeter-se-á às incertezas decorrentes da comum confusão obrigacional e patrimonial entre as suas obrigações pessoais, próprias do cotidiano das pessoas naturais em geral, e aquelas obrigações decorrentes dos negócios realizados em razão da atividade empresarial.

Ausente a personificação jurídica, mesmo o patrimônio do empresário, este considerado como aquele destinado ao exercício da atividade empresária e consecução do seu objeto, não se separa ou se distingue legalmente do patrimônio particular  do titular da atividade, cuja destinação não se confunde com os objetivos empresariais.

De fato, a falta de personalidade jurídica, dentre outros efeitos, impede que haja formal e regular distinção entre os bens que integram a empresa e os bens que naturalmente destinam-se aos interesses diversos da pessoa natural que titulariza e exerce a empresa.

Embora se reconheça ser possível identificar quais bens integram o patrimônio da empresa, de fato e de direito, distinguindo-os dos bens particulares do titular da empresa, a ausência de personificação jurídica impede que tal distinção se concretize tal como se dá nas hipóteses em se tem presente a personalidade jurídica, o que acaba por vulnerar o empresário pessoa natural quando em comparação com o EIRELI ou com a Sociedade Limitada Unipessoal.

Afinal, a pessoa jurídica tem identidade, obrigações, responsabilidades e patrimônio próprios, que não se confundem com tais atributos ou interesses das pessoas naturais (ou pessoa) que a constituem e integram.

Independentemente da teoria a ser adotada sobre o que se deve compreender por uma pessoa jurídica, é certo que esse ente juridicamente personificado é patrimonialmente independente, sendo facilmente possível a identificação dos bens que integram o seu acervo patrimonial, distinguindo-o, portanto, daquele patrimônio das pessoas que titularizam a empresa.

Como consequência da personalidade jurídica, não se pode duvidar que aos credores da empresa personificada, inicialmente, e em regra, respondem apenas os bens dessa pessoa jurídica, que, reforce-se, não se confundem com os bens das pessoas naturais que a integram.

Referindo-se aos efeitos da personificação empresarial, embora relativamente às sociedades empresárias personificadas, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que “na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e a os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora de tais obrigações”.[5]

Apenas por essa razão, já se pode concluir pela compreensível predileção dos empresários ao desenvolvimento de suas atividades sob a forma de empresas personificadas, pois tais modelos indubitavelmente servem a definir a necessária e útil separação patrimonial entre os bens que pertencem à pessoa jurídica daqueles que são dos seus titulares.

É certo que a falta de personificação impede que haja uma clara distinção patrimonial entre o que pertence à pessoa natural e o que é do empresário, o que, como antes alertado, pode se transformar em fator de desestímulo àqueles que pretendem dar início às suas atividades de empresa sem aderir à EIRELI ou à novel Sociedade Limitada Unipessoal.

Assim, a pessoa natural que não adere à EIRELI ou à Sociedade Limitada Unipessoal, em tese não gozaria de qualquer limitação quanto à responsabilidade patrimonial frente aos credores da empresa que vier a desenvolver, ou seja, a sua responsabilidade pelas obrigações das empresas envolve a integralidade do seu patrimônio.

Como bem esclarece Sergio Campinho, o “exercício da empresa pelo empresário individual se fará sob uma firma, constituída a partir de seu nome, completo ou abreviado, podendo a ele ser aditado designação mais precisa de sua pessoa ou do gênero de atividade. Nesse exercício, ele responderá com todas as forças de seu patrimônio pessoal, capaz de execução, pelas dívidas contraídas, uma vez que o Direito brasileiro não admite a figura do empresário individual com responsabilidade limitada e, consequentemente, a distinção entre patrimônio empresarial (o patrimônio do empresário individual afetado ao exercício de sua empresa) e patrimônio particular do empresário, pessoa física.”[6]

Ao se anunciar como empresário individual, pois, a pessoa natural não goza de qualquer distinção patrimonial frente aos seus credores, e perante os mesmos, portanto, será instada a responder ilimitadamente.

Face à essa realidade, e antes do advento da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, já se percebia, com razoável frequência, a constituição de sociedades empresárias com evidentes distorções quanto à distribuição de quotas entre os sócios, sendo comum encontrarmos sociedades limitadas com apenas dois sócios, cabendo a um deles 99% do capital social, e o ínfimo remanescente ao outro.

Tais organizações claramente denunciavam a inexistência de qualquer affectio societatis, sendo mesmo patente, nesses casos, a ausência de interesse dos sócios em conjugar esforços à consecução de um objetivo empresarial comum. O que se percebia, em casos tais, era que o sócio detentor da ampla maioria das quotas, na verdade, intencionava desenvolver por si a atividade empresária sem se consorciar com outrem.

A justificar a opção pela constituição de sociedades ao invés de desenvolver por si a atividade empresarial, André Santa Cruz esclarece que “a responsabilidade dos sócios de uma sociedade empresária, além de ser subsidiária, pode ser limitada, o que ocorre, por exemplo, nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas. (...) Já o empresário individual, em nosso ordenamento jurídico, além de responder diretamente com todos os seus bens pelas dívidas contraídas no exercício de atividade econômica (inclusive seus bens pessoais), não goza da prerrogativa de limitação de responsabilidade. Portanto, enquanto a responsabilidade do empresário individual é direta e ilimitada, a responsabilidade do sócio de uma sociedade empresária é subsidiária (seus bens só podem ser executados após a execução dos bens sociais) e pode ser limitada, a depender do tipo societário utilizado. Do que se expôs acima, fica fácil entender porque, no Brasil, o exercício de empresa em sociedade é mais vantajoso do que o exercício de empresa individualmente. A constituição de sociedade empresária para exploração de atividade econômica permite que os sócios calculem melhor o seu risco empresarial, resguardando seus bens pessoais em caso de insucesso do empreendimento.”[7]

Atento a esse cenário, é que o legislador pátrio primeiro inseriu em nosso ordenamento a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, e, mais recentemente, a Sociedade Limitada Unipessoal, com a clara intenção de oportunizar à pessoa natural que pretendesse iniciar regularmente a sua atividade empresarial de forma individual, passar também a ostentar personalidade jurídica e a gozar de responsabilidade limitada, tal como a Sociedade Limitada.

Com efeito, a Lei 12.441/11, além de definir a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, adicionando o artigo 980-A e seus seis parágrafos ao Código Civil, igualmente incluiu o inciso VI ao artigo 44 do mesmo diploma civil, criando um novo ente personificado, de forma a permitir que a pessoa natural pudesse enfim adquirir personalidade jurídica ao aderir à EIRELI.[8]

Também assim o fez a Lei 13.874 de 20 de setembro de 2019, ao permitir que uma única pessoa pudesse reunir a integralidade de quotas de uma sociedade limitada, constituindo assim uma pessoa jurídica de natureza societária empresarial.

Àqueles que optarem pelo modelo da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, passam a se escudar de seus credores pela responsabilidade limitada, tal como há muito já se protegiam os sócios de uma sociedade limitada plural frente às dívidas da empresa que integravam.

Dadas tais vantagens decorrentes da personificação e da consequente distinção patrimonial, aliadas à responsabilidade limitada, era de se acreditar que a EIRELI tomaria integral interesse das pessoas naturais que intencionassem desenvolver por si uma atividade empresarial. E a expressa previsão no parágrafo terceiro do art. 980-A, anuncia o estímulo da conversão daquelas falaciosas sociedades, cuja participação no capital social entre os sócios era evidentemente aparente, em EIRELI, com a concentração das quotas num único sócio.[9]

Entretanto, diante da exigência da integralização de capital em significativos valores definidos no caput do artigo 980-A do Código Civil[10], a pessoa natural que pretendesse iniciar uma regular atividade empresarial e não dispunha de tais valores, passava a contar apenas com a opção de se inscrever na Junta Comercial como empresário sem personificação. Esse cenário, contudo, e como já sabido, foi alterado, pelo novo parágrafo §1º do Art. 1.052 do Código Civil, trazendo consigo a opção de se constituir uma sociedade limitada singular, e sem a limitação quantitativa mínima de integralização do capital social como se exige na EIRELI.

Hodiernamente, portanto, por força da L. 13.784/2019, talvez a Sociedade Limitada Unipessoal se converta em modelo de preferência aos empresários que pretendam exercer a sua atividade sem se consorciarem com sócios, relegando a EIRELI a um papel secundário.

Independentemente das razões que podem motivar alguém a não aderir ao modelo da Sociedade Limitada Unipessoal, que não conta com a exigência de integralização mínima presente na EIRELI, é certo que permanece firme em nosso ordenamento a alternativa da pessoa natural se inscrever na Junta Comercial como simples empresário individual, mesmo que sem personalidade jurídica e com responsabilidade ilimitada do seu titular.

Em uma conclusão razoável, poderia então se cogitar de severa desvantagem e até mesmo algum prejuízo ao empresário não optante da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, já que não ostenta personalidade jurídica e responde ilimitadamente perante os seus credores.

Porém, a despeito da evidente distinção entre o empresário que adere à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada ou à Sociedade Limitada Unipessoal, daquele que não opta por tais modelos, considerando os dois principais fatores que os distinguem (personificação e responsabilidade perante credores), é possível afirmar que o empresário individual que optou por não ostentar personificação pode não estar em tão grande desvantagem, como poderia inicialmente parecer.


2. Da responsabilidade obrigacional e patrimonial do empresário.

Sabe-se que, em regra, e conforme o direito comum, o devedor responde perante os seus credores com todo o seu patrimônio, excepcionadas as hipóteses expressamente estabelecidas em lei.

Nesse sentido tanto o Código Civil em seu artigo 391, como o Código de Processo Civil no artigo 789:

“Código Civil, art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.”

“Código de Processo Civil, art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”

Considerando, pois, o regramento geral, a integralidade do patrimônio do devedor serve à satisfação das obrigações devidas aos seus credores, que se fiam nessa regra para avaliar a concessão de crédito.

Uma vez eventualmente inadimplida a obrigação, portanto, o conjunto patrimonial do devedor servirá, como regra, mesmo que compulsoriamente, ao pagamento daquela obrigação que se convencionou cumprir, e que restou injustificadamente inadimplida.

Justamente por isso, é fundamental que se identifique o acervo patrimonial do devedor, de modo a permitir que os créditos eventualmente inadimplidos recaiam sobre os bens que o compõe, de modo a permitir a satisfação dos direitos do credor.

No caso da EIRELI e da Sociedade Limitada Unipessoal, inexistem dúvidas iniciais sobre a titularidade do patrimônio desses entes, já que, por se tratarem de pessoas jurídicas regulares, os seus bens não se confundem com os bens que integram o patrimônio das pessoas naturais que as titularizam.

À evidência, por uma simples observação documental, é possível se distinguir quais são os bens da empresa e quais os bens do sócio da Sociedade Limitada Unipessoal ou do titular da EIRELI. Trata-se, como antes mencionado, de uma vantagem conferida aos entes personificados, que, dado tal fenômeno, passam a ser titulares de bens que pertencem apenas a essas pessoas jurídicas.

Essa evidente separação patrimonial inegavelmente confere certo conforto aos titulares da EIRELI e da Sociedade Limitada Unipessoal, já que pelas dívidas da empresa responderão os bens desta, estando a salvo, em regra, os bens do respectivo titular.

Já em relação ao empresário que não optar pela EIRELI ou pela Sociedade Limitada Unipessoal, porque carecerá de personalidade jurídica, inexistirá a aludida distinção patrimonial entre os bens particulares e os que se destinam ao objeto de sua empresa, trazendo como consequência o risco de ter que responder com todos os seus bens pelas obrigações decorrentes dos negócios que realizou enquanto empresário, notadamente em razão da responsabilidade ilimitada.

Entretanto, e apesar da eventual vulneração patrimonial decorrente da ausência de personificação do empresário, não se pode ignorar a real possibilidade de se divisar quais bens se destinam à consecução do objeto empresarial, daqueles bens necessários, úteis ou mesmo supérfluos da pessoa natural.

Nesse sentido, é induvidoso que mesmo o empresário pessoa natural, não optante da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, conquanto sem personalidade jurídica, tenha duas massas patrimoniais distintas, uma destinada à sua empresa e outra relacionada aos seus interesses pessoais privados.

Igualmente, pelo mesmo raciocínio, não se olvida ser possível identificar quais são as obrigações negociais assumidas pelo empresário, enquanto no exercício da sua empresa, distinguindo-as das obrigações assumidas pelo mesmo em razão das suas necessidades cotidianas não empresariais.

Tal divisão obrigacional é facilmente perceptível pela simples identificação da operação negocial realizada, se de cunho empresarial ou particular. As operações de caráter empresarial, certamente, se identificarão com aquelas necessárias ao atingimento do objeto do empresário, enquanto as demais serão estranhas a esse propósito.

Há que se lembrar, por expressa disposição do artigo 968, II do Código Civil, que mesmo o empresário não optante da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal adotará um nome empresarial, com o qual assumirá e firmará as obrigações de sua empresa, nome este que certamente servirá a identificar e distinguir as obrigações de empresa das obrigações particulares, afinal, espera-se que o empresário utilize a sua firma apenas nos negócios de empresa, enquanto que para os negócios particulares utilize o seu nome civil.

Assim, seja pela análise do objeto da obrigação assumida (se empresarial ou particular) ou mesmo pela análise do nome utilizado pelo empresário ao assumi-la(se a sua firma ou seu nome civil), é possível identificar se essa obrigação se deu em razão do objeto empresarial, ou se tal se destinou a consecução de interesses privados do titular dessa empresa.

Assim, serão obrigações da empresa apenas aquelas contraídas pelo empresário enquanto utilizando a sua firma, e com evidente aderência à consecução do objeto da sua empresa, e serão particulares as obrigações assumidas pelo empresário ao utilizar o seu nome civil, e desde que tais operações estejam claramente destinadas e relacionadas à satisfação dos interesses próprios da pessoa natural do titular dessa empresa.

Portanto, mesmo carecedor de personalidade jurídica, o empresário que optar por desenvolver a sua empresa sem aderir à EIRELI ou à Sociedade Limitada Unipessoal, ainda assim poderá opor aos seus credores uma evidente divisão de bens, e, consequentemente de responsabilidade pelas obrigações da empresa da qual é integralmente titular.

Nessa linha de argumentação, responderão pelas obrigações de empresa, estas compreendidas como destinadas ao atingimento do seu objeto, apenas os bens que servem à consecução desse mesmo propósito, sem que se confundam com outros bens da pessoa natural titular da empresa. 

Consequentemente, a par da inexistência de personalidade jurídica e das suas consequências e efeitos, poder-se-ia sustentar que, mesmo ao empresário que não aderiu à EIRELI ou à Sociedade Limitada Unipessoal, há que se reconhecer tanto a distinção da vinculação de obrigações, como do seu patrimônio particular frente ao patrimônio da empresa que integra.

Inexistem motivos, também, para que não se estenda ao empresário natural a novel regra do §7º do artigo 980-A do Código Civil:

“Art. 980-A.(...) §7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.    (Incluído pela Lei 13.784/2019)”

Ao se reconhecer a distinção patrimonial acima referida, especialmente quanto aos bens de empresa e particulares do titular, força reconhecer que a esse empresário pessoa natural será reconhecida a proteção do benefício de ordem de que tratam os artigos 1.024 do Código Civil e 796 do Código de Processo Civil:

“Código Civil, Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.”

“Código de Processo Civil, Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei.”

Embora tal dispositivo claramente se destine às sociedades em geral, é plenamente defensável que o mesmo benefício se estenda ao empresário pessoa natural, afinal, como já concluído, é possível identificar quais são os bens de empresa.

Nesse sentido o Enunciado nº 5 da I Jornada de Direito Comercial promovida pelo Conselho da Justiça Federal, com o seguinte teor: “Quanto às obrigações decorrentes de sua atividade, o empresário individual tipificado no art. 966 do Código Civil responderá primeiramente com os bens vinculados à exploração de sua atividade econômica, nos termos do art. 1.024 do Código Civil”.

Ora, sendo também identificável se uma dívida decorreu de uma obrigação assumida pelo empresário em favor da sua empresa, e sendo certo que pelas obrigações da empresa respondem primeiro os bens destinados à essa atividade empresarial, o benefício de ordem há de ser reconhecido igualmente em favor do empresário não aderente da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, tal como expresso no citado enunciado do CJF.

A reforçar tal conclusão, o Código Civil, em seu artigo 988, concedeu distinção patrimonial mesmo aos sócios de uma sociedade sem personalidade jurídica, eventualmente se registro ou mesmo irregular, denominada Sociedade em Comum, reconhecendo que se distinguem os bens que pertencem aos sócios e os bens que pertencem à sociedade (CC, art. 988):

“Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum.”

Frente ao que se constata, portanto, a ausência de personalidade jurídica, ao menos em relação à divisão de bens e de obrigações quanto às da empresa e do seu titular, não serve a conferir extrema vantagem à EIRELI ou à Sociedade Limitada Unipessoal frente ao empresário pessoa natural que não optou por tais modelos, senão apenas torna mais simples toda a argumentação relativa à extensão da responsabilidade por dívidas da empresa.


3. Da responsabilidade patrimonial do empresário que não aderiu à EIRELI ou à Sociedade Limitada Unipessoal.

Mesmo que se conclua pela possível identificação das obrigações assumidas pelo empresário, distinguindo-as entre empresariais e particulares, e ainda que se obtenha a certeza quanto à distinção dos bens de empresa e dos bens privados,  há que se considerar que ao contrário da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, o empresário pessoa natural responde ilimitadamente pelas obrigações de empresa.

A atividade empresarial, já submetida ao usual risco, quando desenvolvida sem qualquer limitação de responsabilidade patrimonial acaba por impor ao empresário um risco potencialmente maior, já que pelas suas obrigações respondem, em tese, todos os seus bens.

O empresário que não optar pela EIRELI ou pela Sociedade Limitada Unipessoal, portanto, ao desenvolver a sua atividade empresarial, será submetido a um regime de responsabilização patrimonial que não encontra qualquer limite previamente definido, vulnerando os seus bens frente aos credores da empresa.

Para tal empresário não há integralização de capital a limitar a responsabilidade, como ocorre na EIRELI ou na Sociedade Limitada Unipessoal, do que decorre a eventual exposição patrimonial do empresário frente aos credores da empresa.

E como não se tem por definida a plena distinção entre os bens particulares do empresário e os bens de empresa destinados à consecução do objeto empresarial, poder-se-ia cogitar de absoluta vulneração patrimonial daquele que se aventura a desenvolver a empresa sem aderir ao sistema da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal.

Com efeito, tal conclusão poderia mesmo servir ao desestímulo de qualquer atividade empresarial que não se desenvolvesse sob o pálio da responsabilidade limitada da EIRELI ou da Sociedade Limitada Unipessoal, pondo em dúvida a concreção do princípio da livre iniciativa.

Porém, e antes que se sentencie estar o empresário alijado de qualquer proteção patrimonial quando comparado com a EIRELI ou com a Sociedade Limitada Unipessoal, há que se refletir se o termo “responsabilidade ilimitada” espelha mesmo essa tamanha vulneração de todo o patrimônio frente aos eventuais credores da empresa.

Um olhar mais apurado sobre o tema, especialmente sob a ótica das normas processuais, revela que, a despeito da aludida “responsabilidade ilimitada”, o empresário que não optar pela EIRELI ou pela Sociedade Limitada Unipessoal, pode não estar assim tão vulnerável quanto aos seus bens particulares pelas dívidas da empresa.

Como a hipótese não contempla a limitação da responsabilidade pela integralização de capital, é certo afirmar que ao empresário não optante da EIRELI, sobre a responsabilidade por dívidas da empresa, recairá a regra geral dos já mencionados artigo 391 do Código Civil e artigo 789 do Código de Processo Civil.

É cediço, contudo, que as regras definidas nos sobreditos dispositivos legais não são absolutas, havendo expressas limitações legais à responsabilidade patrimonial do devedor, verdadeiros obstáculos aos interesses dos credores, as quais se aplicam integralmente ao empresário pessoa natural.

Nesse sentido, destaca-se o artigo 789 do Código de Processo Civil, que, a despeito de definir que responsabilidade do devedor se ampara em todos os seus bens, expressamente excepciona a existência de restrições legais quanto a essa responsabilização patrimonial.

E são justamente essas restrições legais que vem ao amparo do empresário pessoa natural que não optou pela EIRELI ou pela Sociedade Limitada Unipessoal, que embora não possa se escorar na responsabilidade limitada conferida por esses modelos de empresa, poderá amplamente se valer da hipóteses de impenhorabilidade de que trata o artigo 833 do Código de Processo Civil.

Especialmente ao empresário pessoa natural, cabe aplicar o inciso V do referido artigo 833 do Código de Processo Civil, sendo possível sustentar que todos os bens que se destinam à consecução da atividade empresarial estão a salvo dos credores:

“Art. 833. São impenhoráveis: (...) V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;”

É curioso notar que tal regra protetiva ao patrimônio se aplica apenas ao empresário pessoa natural, justamente porque, uma vez desprovido de personalidade jurídica, todos os seus bens inicialmente compõem um único acervo patrimonial, diferentemente dos bens da EIRELI e da Sociedade Limitada Unipessoal.

Desse modo, poder-se-ia vislumbrar até mesmo certa vantagem do empresário frente EIRELI e da Sociedade Limitada Unipessoal, já que o sobredito dispositivo legal se destina, precipuamente a proteger os bens da pessoa natural.

Destaca-se, sobre a questão em análise, o julgado de lavra do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, nos autos do Recurso Especial nº 1.697.313 - MG (2017/0225391-5), cujo trecho referente ao presente tema se transcreve:

“2. A empresa individual é mera ficção jurídica que permite à pessoa natural atuar no mercado com vantagens próprias da pessoa jurídica, sem que a titularidade implique distinção patrimonial entre o empresário individual e a pessoa natural titular da firma individual. Precedentes. 3. Pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de serem impenhoráveis os bens úteis ou necessários às atividades desenvolvidas por empresário individual ou pequena empresa, na qual os sócios atuam pessoalmente, na forma do disposto no art. 649, V, do CPC-73. Ademais, "legitima a inferência de que o imóvel profissional constitui instrumento necessário ou útil ao desenvolvimento da atividade objeto do contrato social, máxime quando se tratar de pequenas empresas, empresas de pequeno porte ou firma individual" (REsp 1114767/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX) 4.”

Vê-se, portanto, que, a despeito do aparente desequilíbrio frente à proteção que a personalidade jurídica, em tese, confere à EIRELI e à Sociedade Limitada Unipessoal, quando em comparação com o empresário pessoa natural, este não se encontra desamparado; ao contrário, é forçoso que se conclua por certa vantagem em seu favor, quando o tema é a extensão da responsabilidade patrimonial.

Afinal, além dos seus bens particulares serem em regra majoritariamente impenhoráveis, ante a proteção que lhe confere o artigo 833 do Código de Processo Civil, especialmente os incisos I ao IV, e também a Lei 8.009/90 (Bem de Família), igualmente os bens que integram o seu acervo empresarial passam a gozar de igual proteção, frente ao que dispõe o mesmo dispositivo processual, em seu inciso V.

Interessante notar que, no final das contas, o citado inciso V do artigo 833 do Código de Processo Civil acaba por se aplicar, praticamente, à integralidade dos bens de empresa pertencentes ao empresário pessoa natural, já que é a reunião daqueles itens que permitirá ao mesmo a consecução da sua atividade.

Portanto, mesmo despido da personalidade jurídica, e ainda que a sua responsabilidade seja ilimitada, o empresário pessoa natural conta com um robusto (e simples) sistema protetivo frente aos credores da empresa, a permitir que bem desenvolva a sua atividade.


Conclusão

Razões legais existem, pois, a sustentar que o empresário individual, não obstante não possa se escudar em qualquer responsabilidade limitada segundo o direito empresarial, ainda assim encontrará relevante proteção patrimonial, seja no direito processual ou em normas correlatas.

Diante desse cenário, conclui-se ainda haver razão que mantenha viva a figura do empresário pessoa natural, que, a despeito da ausência de personificação e da responsabilidade ilimitada, pode contar com um sistema de proteção patrimonial a lhe garantir o desenvolvimento das suas atividades, em prestígio ao princípio constitucional da livre iniciativa.


Referências

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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. Direito de empresa. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

CRUZ, André Santa. Direito empresarial. 8. ed.  rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.

I JORNADA DE DIREITO COMERCIAL. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-de-direito-comercial/livreto-i-jornada-de-direito-comercial.pdf Acesso em: 25 jun. 2020.

III JORNADA DE DIREITO COMERCIAL. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-de-direito-comercial/enunciados-aprovados-iii-jdc-revisados-2.pdf  Acesso em: 25 jun. 2020.


Notas

[1] Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

[2] Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.

[3] III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, Enunciado nº 98: “A inscrição do empresário na Junta Comercial não é requisito para a sua caracterização, admitindo-se o exercício da empresa sem tal providência. O empresário irregular reúne os requisitos do art. 966, sujeitando-se às normas do Código Civil e da legislação comercial, salvo naquilo em que forem incompatíveis com a sua condição ou diante de expressa disposição em contrário.”

[4] Art. 1.052. (...) § 1º A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas.    

[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. Direito de empresa. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 32.

[6] CAMPINHO, Sérgio. Curso de direito comercial. Direito de empresa, 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 26.

[7] SANTA CRUZ, André. Direito empresarial. 8 ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018, tem 2.1.

[8] Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: (...) VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada.

[9] §3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.

[10] Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Luís Inácio Carneiro. A responsabilidade patrimonial do empresário individual sem personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6210, 2 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83601. Acesso em: 23 abr. 2024.